L. A. T. Grassi
Engenheiro
Quando escrevo, faz poucos minutos que foi aprovada em primeira votação, pela Câmara Federal, a PEC 141, também chamada PEC da Morte ou da Paralisia, que subordina aos interesses das finanças internacionais, o crescimento da economia e o resgate social brasileiros. É mais um lance da grande operação destinada a repor o Brasil na rota determinada pelo Império, executada interiormente pela vis e subservientes “elites” parlamentar, judiciária, policial, financeira e empresarial com o apoio da imprensa servil.
Há poucos dias, foi a entrega do petróleo e, com ele, todas as expectativas de redenção da educação, da saúde e da previdência social.
E antes, o processo que abriu caminho para tudo isso, o golpe travestido de rito legal enfeitado com missangas judiciárias e rotos véus pseudolegais.
A consolidação do governo ilegítimo e do cumprimento de seus desmandos foi favorecido com a coincidência não tão ocasional com o período das campanhas eleitorais dos municípios. Essas próprias campanhas já tinham sido, com a “mini-reforma política”, reduzidas aos propósitos despolizantes dos novos poderosos (com o impedimento de verdadeiro debate político) e com a campanha midiática em favor dos “novos gestores”, com seu ícone máximo, o prefeito eleito de São Paulo. O processo eleitoral municipal ofereceu, além da distração, para o eleitorado, da preocupação com o grande desmanche nacional, o espetáculo de, mais uma vez, as esquerdas perderem a oportunidade de avançar para uma unidade, mesmo que provisória, em termos de prioridades comuns e tentativas de alianças que efetivamente fizessem frente ao avanço do retrocesso.
No segundo turno, seguem as eleições municipais a ocupar o lugar privilegiado no debate político. Segue a disputa entre os defensores do “útil” com os que defendem a negação de voto a qualquer um dos candidatos da direita. Os graves e sucessivos acontecimentos nacionais ficam em segundo plano.
Defendi, imediatamente após a vitória, em Porto Alegre, dos candidatos identificados com o lado golpista, que o mais sensato e politicamente oportuno seria um movimento unitário, suprapartidário, em favor de um voto nulo bem definido, politicamente, contra esse retrocesso que nos leva às piores previsões. Os dois candidatos e seus apoiadores representam exatamente a mesma reprovação e negação de todos os esforços, de todas as medidas, de todas as conquistas e de todas as expectativas vividas nos últimos treze anos. O processo do segundo turno poderia oportunizar a denúncia do que eles representam, as outras faces da tragédia política que vivemos e uma alimentação à retomada da mobilização e, de outra parte, das discussões e reflexões necessárias à qualificação da militância. O voto nulo poderia sinalizar, coletivamente, a oposição a cada uma das medidas já tomadas, ou por tomar, para destruir o projeto de um país mais inclusivo e menos injusto.
As diversas fases do processo de impeachment oportunizaram, contra todas as dificuldades, ações e movimentos de mobilização e de conscientização (com todos os percalços, com os pequenos ganhos e com as grandes derrotas que ocorreram). Movimentos sociais despolitizados, atores políticos subordinados ao pragmatismo dos acordos e uma militância adormecida, quase toda uma geração encantada por avanços sociais efetivos e indicadores econômicos animadores, muitos desses atores ou segmentos foram despertados, a partir do movimento golpista, para um renascimento de participação e de reencontro com o protagonismo político.
O susto do processo do impeachment, vestido de legalismo e alimentado pelo messianismo lava-jatista e pela mídia comprometida, trouxe à tona uma nova vitalidade da esquerda que já esquecera o que é luta social.
Mas a mobilização através das manifestações de rua, de ocupações, de manifestos e de atos culturais, como debates, palestras, lançamento de livros, de comunicação pelas redes sociais etc, tudo isso, que pode e deve continuar, também apresenta seus limites. O “Fora Temer” pode ser ainda válido, mas não basta por si só. Nesse contexto, o movimento pelo voto nulo, como oportunidade de mobilização ganharia sentido de alimentar, em Porto Alegre e algumas outras cidade, uma nova fase da luta contra o golpe e, mais ainda, contra a operação mencionada inicialmente, de reocupação dos destinos nacionais por interesses externos.
A essas alturas, já ficou bem evidente que a dita operação já obteve mais um êxito, ocasional ou não, ao menos em termos locais. O “grande debate”, a “grande luta” foi substituída pela disputa entre os “pragmáticos” e os “nulistas” (em evidente depreciação do que poderia até ser um debate instrutivo, se auto-limitado).
E ganha destaque não o debate sobre a tragédia crescente, mas a comparação entre o grau de prejuízo local de cada um dos candidatos. Discutem-se seus currículos políticos, ideológicos, administrativos, suas biografias e até a herança paterna do pretensamente mais moderno. Coteja-se o grau de “populismo” ou de “elitismo” de cada um. Importam os apoios e a possibilidade de contradições nas chapas (em uma; a convivência entre o partido que fez o golpe e o que foi contra; em outra, entre o partido que quer se implantar no estado e o que já está implantado mas não na capital).. Supõe-se que o “menos pior” poderá mudar os rumos de uma política local que tem representado a projeção local dos desmandos estaduais e nacionais.
Faz-se o prognóstico de que, sem os votos de esquerda, ganhará o “mais pior”, embora não haja nenhuma pesquisa que aponte o favorito. E se já houver esse favorito, não se sabe porquê os ditos votos de esquerda poderão inverter a situação.
A essas alturas, mais uma vez as esquerdas (é sintomático que se as nomeie assim, enquanto se fala em “a” direita) estão conseguindo o consenso da desunião. Faltando uns vinte dias para o segundo turno, obviamente perdeu-se a oportunidade de um movimento unitário de resistência ao bloco biface que representa, localmente, todas as forças contra as quais a militância, movimentos sociais e muita gente que foi tocada pela gravidade do golpe foi às ruas, reuniu-se, comunicou-se, lutou e, acima de tudo, manteve as esperanças.
Certamente, ganhe quem ganhar, mesmo seu projeto local não contemplará mais participação, gestão ambiental, qualificação da educação, política habitacional justa, política urbana não subordinada aos interesses especulativos, sistema de transporte coletivo adequado, redução da violência, atendimento a pessoas em situação de rua etc. Qualquer das chapas concorrente está longe de corresponder a essas expectativas. E no contexto da política de austeridade, de negação à participação e de privatização incentivadas pelo poder central, essa negação da democracia participativa será acentuada e demandará mais resistência, denúncia e oposição.
Resta a expectativa de que, passadas as eleições, a cidade volte a ser motivada por todos que lutam contra os golpes contra a educação, a previdência social, a saúde e, com toda a probabilidade dentro em pouco, contra outros atentados à legalidade democrática e aos direitos de cidadania. E que, mesmo os que votaram contra “o menos pior”, tenha ganhado ou não, possam voltar a incluir, nas lutas de nível nacional ou estadual, a luta por uma cidade que possa voltar a ser a cidade da esperança e do “outro mundo possível” que já foi um dia.
Meu voto nulo tem esse significado.