O Brasil pelo qual lutamos: a propósito de crucifixos em tribunais

O tema aqui em pauta – a presença de crucifixos em tribunais – pode não ter qualquer relação com a situação política atual no Brasil. Gostaria de mostrar o contrário, a partir de um comentário de uma decisão recente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Estão em jogo duas questões cuja discussão me parece fundamental para compreendermos e reagirmos ao quadro que tem como marco o governo interino presidido por Michel Temer: o Brasil que queremos vislumbrar e as formas de resistência a situações com as quais discordamos.
Em 2012, foi amplamente divulgada a decisão do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que ordenou a retirada de crucifixos e quaisquer outros símbolos religiosos das salas dos tribunais no estado gaúcho. Foram assim atendidas as demandas levantadas pela Liga Brasileira de Lésbicas e outras entidades feministas. Foi uma decisão inédita, uma vez que a tendência dominante no Judiciário brasileiro ia em direção contrária ou simplesmente considerava o assunto como de menor relevância. Agora em 2016, com repercussão muito menor, o CNJ, acionado por certos grupos, entre eles a Arquidiocese de Passo Fundo, revoga a decisão de 2012, com base em argumentos já expostos em momentos anteriores.
O principal dos argumentos para a manutenção de crucifixos em recintos estatais – como tribunais ou plenários de parlamentos – é que eles representam o papel do catolicismo na formação da nação brasileira. Esse papel é algo inegável. Com aspectos positivos e outros nem tanto. De toda forma, justificar dessa maneira a presença dos símbolos é optar por uma visão que consagra uma parte do nosso passado para falar da totalidade de nosso presente. O papel social do catolicismo é algo que pode ser reconhecido e contemplado por meio de instrumentos como as políticas de patrimônio e os conselhos de direitos. Templos e festas católicas têm sido objeto de tombamento e outras formas de patrimonialização. Expoentes católicos, ao lado de outros atores da sociedade civil, têm participado como membros de conselhos na área social, educacional, de saúde, etc. Por essas razões, não há necessidade de manter crucifixos em lugares como parlamentos ou tribunais para dar o devido reconhecimento ao papel do catolicismo na sociedade brasileira.
Diante disso, o que significa sua presença nesses recintos estatais? Significa optarmos por uma certa representação acerca do que seja o Brasil. Esses símbolos afirmam que o Brasil continua a ser cristão. O problema não está na afirmação em si, mas no que ela não nos deixa enxergar. Pois além de ser cristão, o Brasil é muitas outras coisas, mas os únicos símbolos religiosos que ganham o privilégio de serem vistos em parlamentos e tribunais são os crucifixos católicos. Em outras palavras, o Brasil que é representado pelos crucifixos não se define pela diversidade, e sim por uma imagem pretensamente homogênea, que recorre a uma condição do passado – o catolicismo que fez parte da formação nacional – para definir o presente. O Brasil dos crucifixos em recintos estatais corresponde, pois, a uma imagem semelhante àquela que vimos quando nos foi mostrada a foto do ministério formado por Temer. Em ambos os casos, temos um retrato muito parcial do que seja o Brasil do presente. É lamentável que um país que queira abraçar a diversidade como valor fique preso a imagens tão parciais.
Outro argumento levantado pelos que defendem a permanência de crucifixos em recintos estatais é de que sua presença não implica em coação sobre as consciências individuais. Os críticos da existência de crucifixos apontam que eles podem influenciar as decisões de juízes, parlamentares ou jurados. Concordo que essa alegação só às vezes corresponde aos fatos. Ela me parece tão limitada quanto a suposição – mantida pelos defensores dos crucifixos – de que estes podem inspirar legisladores e julgadores ou consolar réus. Mas a impossibilidade de supormos uma coação generalizada não anula a possibilidade de cidadãos específicos expressarem seu incômodo e seu desacordo com a presença desses objetos.
É importante deixar claro que desacordo e incômodo podem se fundamentar em motivos e condições diversas. Temos visto coletivos de feministas, defensoras de direitos sexuais, associações de valorização do ateísmo e do agnosticismo se posicionarem, em nome de certa concepção de laicidade, contra a presença de símbolos religiosos em recintos estatais. Mas um posicionamento na mesma direção pode ser percebido em grupos e pessoas religiosas. Por exemplo, há protestantes ou evangélicos que estranham o privilégio a um símbolo católico. E mesmo entre católicos, há os que pensam que crucifixos ficam melhor em outros lugares e que em tribunais e parlamentos acabam perdendo o sentido e a sacralidade que deveriam ter. Seria muito importante que esses religiosos descontentes tivessem suas opiniões mais enunciadas e disseminadas.
Em suma, há vários motivos para fundamentar desacordo ou incômodo com a presença de crucifixos em tribunais e parlamentos. Fica então a sugestão: que os dissidentes e incomodados expressem suas opiniões. Mais especificamente: que isso seja feito nos próprios recintos onde estão esses objetos durante as atividades para as quais são previstos. Se você for um jurado ou um advogado, expresse sua discordância e peça para o crucifixo ser retirado enquanto atuar ali. Se você for convidado a estar em um parlamento, expresse seu incômodo e o transmita aos vereadores, deputados e senadores. Talvez a insistência propicie o que o CNJ e outras instâncias se recusam a decidir. Pois aqueles que fazem questão de ter símbolos religiosos em tribunais ou parlamentos podem trazê-los em seus corpos – como muitos católicos fazem com crucifixos. E assim a todos fica assistido um direito sem privilégios.
No quadro atual, a resistência aos argumentos que defendem a presença de símbolos religiosos em recintos estatais ganha novos sentidos. Ela significa a afirmação de um Brasil plural, com um futuro que não se limita a repetir o passado. Ela significa a afirmação de nossa capacidade crítica, exercitada diante do que nos incomoda ou contraria, a mesma capacidade que nos faz refutar a legitimidade das medidas de um governo que atua como se não fosse provisório.

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