O novo governo (interino) do Brasil e os (des)caminhos da política externa

Diego Pautasso*
O Brasil está numa encruzilhada. Não faz muito, se cacifava para ser protagonista da cena internacional. Liderava, não sem sobressaltos, a integração sul-americana (UNASUL, CELAC, MERCOSUL), intensificava sua presença na África, atuava com desenvoltura junto aos emergentes (BRICS, IBAS), articulava coalizões e cúpulas importantes (G20, Cúpula América do Sul-África e América do Sul-Países Árabes), buscava ativamente um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e conquistava a condição de sede dos dois mais relevantes eventos esportivos do mundo (Copa e Olimpíadas).
Em âmbito interno, segundo o IBOPE, a popularidade da Presidenta Dilma Rousseff havia alcançado 79% em março de 2013, sendo que 63% consideravam o governo Dilma ótimo ou bom, 29% regular e apenas 7% ruim ou péssimo1. A economia terminou o ano apresentando trajetória confortável (DANTAS; JABBOUR, 2016), com superávit primário do setor público (1,9%); inflação moderada (5,9%), crescimento do PIB (2,5%) e baixo desemprego (5,4%); poder de compra e massa salarial em ascensão; solidez internacional com reservas de 375,8 bilhões de dólares; créditos dos bancos públicos e investimentos em infraestrutura (228,6 bilhões) crescentes; entre outros.
A partir das manifestações de junho de 2013, a situação se deteriorou. Os movimentos foram capturados e impulsionados pela grande mídia, desembocando nas manifestações contra a Copa do Mundo de 2014. O sucesso da organização do evento e a reeleição da Presidenta, garantindo o quarto mandato para a coalizão liderada pelas forças progressistas, cindiram o país. Enquanto o governo cedia e assimilava a agenda macroeconômica do candidato derrotado, ao nomear Levy para a Fazenda, as forças conservadoras e neoliberais aprofundavam a ofensiva. Distanciada a Presidenta de sua base política, a crise socioeconômica se aprofundou e criou as condições para o golpismo – que até convivia com o governo em razão do desempenho econômica e da popularidade. Em âmbito internacional, a diplomacia do governo Dilma mantivera, essencialmente, a mesma linha do antecessor, mas com menor ênfase e significativos acenos a pautas usualmente identificadas com o campo liberal-conservador, como a aproximação com a OCDE e o acordo de liberalização comercial com a União Europeia. Esses movimentos coexistiram com outros de forte valor simbólico, como o cancelamento da visita aos EUA após a revelação de Snowden e a abstenção, na AGNU, a respeito da resolução sobre a integridade territorial da Ucrânia, acompanhando os demais BRICS. Chanceleres com menor protagonismo, o desinteresse da presidência e, depois da reeleição, a crise e a espiral golpista, fez a política externa perder relevância. De todo modo, manteve-se o que chamamos de ‘autonomismo com diferenças de ênfase’ (PAUTASSO; ADAM, 2014).
O PMDB, que já dominava o maior número de prefeituras, governos estaduais, deputados e senadores, além da presidência das duas casas, chegava pela terceira vez à presidência sem voto popular. Apesar da hegemonia política, a um só tempo, o partido criticava o governo do qual fazia parte e apresentava-se como solução política e moral. Assim, o novo governo (interino) de Temer não retomou a confiança, com atestam a popularidade inferior à da Presidenta deposta e o desempenho das bolsas e do dólar, nem logrou a propalada “união” nacional, vide o pipocar de protestos por todos os cantos do país. As principais forças vivas da sociedade, intelectuais, juristas, movimentos sindicais e operários, estudantes e artistas têm realizado sistemáticas manifestações por todo o país.
Ademais, em duas semanas de governo, o ministro do Planejamento e principal articular político, Romero Jucá, seus dois indicados no IBGE e IPEA2 e o ministro da Transparência3, Fabiano Silveira, foram exonerados em razão de escutas que revelavam as maquinações políticas que levaram ao golpe, expondo as vísceras da vida política nacional. Deve-se destacar que as sinalizações do governo vão na direção de política econômica liberalizante e asfixia das políticas sociais, anunciando o recrudescimento dos conflitos de classe.
Em âmbito internacional, notícias na mídia internacional dão conta majoritariamente de que houve um golpe e o governo goza de pouca legitimidade. Nota-se que chefes de Estado não têm ligado para o reconhecimento protocolar do novo governo ou mantido distanciamento, enquanto eurodeputados exigem que a União Europeia não negocie com o governo Temer. Além disso, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, reitera que o ocorrido no país foi golpe4; e sua Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publica comunicado expressando preocupação com “retrocessos” 5. A mesma reação ocorreu por parte do Secretário-Geral da UNASUL, Ernesto Samper, e dos governos da Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua, assim como da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América/Tratado de Comércio dos Povos (ALBA/TCP). Até o Papa Francisco manifestou preocupação com os ‘golpes brancos’ na América do Sul e o risco de escalada de conflitos sociais em países como Brasil, Venezuela, Bolívia e Argentina6.
Diante desse quadro, as medidas do chanceler interino Serra causam apreensão. Primeiro, as duas notas7 do MRE repudiando as declarações de Samper da UNASUL e dos governos vizinhos revelam o viés da condução da diplomacia para a região. Segundo, a decisão do Itamaraty de instruir embaixadores a combater ativamente a tese do golpe8 é reveladora das percepções internacionais. Terceiro, outra medida sintomática das escolhas internacionais, foram as notícias relacionadas à encomenda de estudo sobre os custos das embaixadas na África e no Caribe9, assim como a disposição prioritária do chanceler interino de participar de reunião da OCDE10. Há, inegavelmente, uma mentalidade colonizada manifesta no silêncio diante de grandes embaixadas em países inexpressivos da Europa e na incapacidade de compreender o sentido estratégico da região e do Atlântico Sul-África para o país, seja em âmbito econômico-comercial e/ou diplomático-securitário.
No discurso de posse, o novo chanceler disse que a diplomacia não mais seria conduzida conforme as “conveniências e preferências ideológicas”. Essa é uma narrativa, contudo, eivada de ideologias, ao supor-se portadora dos interesses da sociedade e do Estado, como destacou o ex-Assessor Especial para Assuntos Internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia11. A diplomacia é uma política de Estado, com necessários traços de continuidade, mas, sobretudo, é uma política e deve refletir as opções de cada governo. Ademais, enquanto Lula e Dilma nomearam como chanceleres quatro diplomatas de carreira com sólida trajetória no Itamaraty, Temer nomeou um presidenciável líder da oposição. Basta observar as declarações de alguns de seus formuladores, como Rubens Barbosa12 e Rubens Ricupero, para perceber a prioridade por restringir o Mercosul à liberalização comercial, diminuir a ênfase dada ao BRICS e priorizar acordos de livre comércio com o centro do sistema (EUA e UE). Nesse último caso, como diz o ex-ministro Celso Amorim, as negociações podem culminar na entrega de “todas as suas joias” sem sequer receber “bijuterias”13. Em suma, tudo indica que a disposição de buscar – utilizando os conceitos de Vigevani e Cepaluni (2007) – ‘autonomia pela diversificação’ a partir do fortalecimento das relações Sul-Sul, dará lugar ao retorno do alinhamento com os polos centrais.
Enfim, o novo governo Temer, cuja permanência se torna incerta em função desse quadro político e econômico, deverá alterar os rumos da política externa. O possível saldo, contudo, é preocupante, pois a grave crise atual atingiu o país em cheio, acabando por cindi-lo politicamente, desacreditar as instituições, fragilizar setores-chave da indústria nacional (petróleo e construção civil), paralisar a economia e desacreditar sua imagem internacional. Em âmbito internacional, há o risco de o Brasil retomar a diplomacia discreta dos anos 1990, pois seu chanceler vê o Itamaraty como trampolim político e sequer reconhece suas tradições. Resta acreditar no provérbio chinês, ao se deparar com sombrias aflições, que de nuvens mais negras cai água límpida e fecunda…
[avatar user=”X-CDD – Diego Pautasso” size=”original” align=”left” /]* Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política, professor de Relações Internacionais da ESPM Sul e UNISINOS, autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria, editora Juruá, 2011. E-mail: dgpautasso@gmail.com
 
Bibliografia
AMORIM, Celso. Entrevista “Somos vistos como ponto de equilíbrio do continente. Não podemos perder isso”. In: El País. 23/05/2016. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/17/politica/1463513447_190209.html.
DANTAS, Alexis; JABBOUR, Elias. Economia, dinâmica de classes e Golpe de Estado no Brasil. In: Texto para Discussão. nº 3, maio, 2016, disponível em: http://plataformapoliticasocial.com.br/wp-content/uploads/2016/05/Artigo-Brasil-Alexis-e-Elias1.pdf. Acesso em 03/06/2016.
PAUTASSO, Diego; ADAM, Grabriel. A política da política externa brasileira: novamente entre a autonomia e o alinhamento na eleição de 2014. In: Conjuntura Austral. vol. 5, n° 25, pp. 20-43.
VIGEVANI, Tullo  and  CEPALUNI, Gabriel. A política externa de Lula da Silva: a estratégia da autonomia pela diversificação. In: Contexto Internacional. 2007, vol. 29, n°2, pp. 273-335.
Notas

  1. Ver notícia no site Último Segundo. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2013-03-19/popularidade-de-dilma-bate-novo-recorde-e-sobe-para-79-diz-ibope.html
  2. Ver notícia em O Globo disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/apos-saida-de-juca-temer-troca-comando-do-ipea-do-ibge-19411414
  3. Ver notícia em Agência Brasil disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-05/ministro-da-transparencia-pede-demissao-do-cargo
  4. Ver notícia em Estadão disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,secretario-geral-da-oea-defende-garantia-do-mandato-de-dilma-e-continuacao-da-lava-jato,10000022530
  5. Ver notícia no site da OEA disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2016/067.asp
  6. Ver notícia em O Dia disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2016-05-25/papa-diz-que-pode-estar-ocorrendo-golpe-branco-na-america-do-sul.html
  7. Ver notícia no site G1 disponível em: http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/noticia/2016/05/itamaraty-critica-governos-de-5-paises-por-propagar-falsidades-sobre-brasil.html
  8. Ver notícia em Estadão disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,secretario-geral-da-oea-defende-garantia-do-mandato-de-dilma-e-continuacao-da-lava-jato,10000022530
  9. Ver notícia em Folha de São Paulo disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/05/1771982-serra-pede-estudo-de-custo-de-embaixadas-na-africa-e-no-caribe.shtml
  10. Ver notícia em O Globo disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/serra-embarca-para-paris-onde-participara-de-reuniao-da-ocde-19386876
  11. Ver notícia no Estadão disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,marco-aurelio-garcia-rebate-serra-e-ironiza-cabecas-iluminadas,10000052419
  12. Ver entrevista na Exame disponível em: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/04/rubens-barbosa-acao-do-pt-no-exterior-e-pessima-para-o-brasil.html
  13. Ver entrevista no El País disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/17/politica/1463513447_190209.html

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