O passado e o presente: ideologias clássicas, reflexões contemporâneas

Começo esse texto, sobre o momento que vivemos – ressaca eleitoral 2016, PEC 241 / 55, eleição de Trump nos EUA etc. –, lembrando três ideologias clássicas da modernidade ocidental, tentando estabelecer uma ponte com o passado, ou entender no que ele ainda nos influencia hoje: liberalismo, conservadorismo e socialismo. O primeiro emerge, em suas três dimensões (filosófica, política e econômica), no âmbito da revolução francesa, situando meio grosseiramente numa linha de tempo simplificada.
A burguesia ascendente queria poder político, uma vez que o econômico já estava conquistando; John Locke foi o contratualista responsável por elaborar a justificativa filosófica para o acúmulo de lucro, ligando a propriedade privada ao direito natural; e também à liberdade, sendo essa conexão levada a um extremo de fundir ambos os conceitos num só, como se fossem sinônimos (propriedade privada = liberdade). Esse processo é justamente a preponderância do liberalismo econômico sobre as duas outras dimensões, às quais a ideia de igualdade de oportunidades e de direitos políticos era cara.
O estado liberal organizou-se, assim, de forma excludente; pela liberdade e igualdade, mas prioritariamente – ou seria somente? – dos proprietários, da “casta superior” que detinha propriedade privada. Mesmo que esta tivesse se constituído por um processo violento de expropriação da produção familiar, artesanal, camponesa e corporativa, na dissolução da sociedade feudal; e por outro lado através de saques, especulação comercial, tráfico de escravos e monopólios mercantis, que foram enormes oportunidades de enriquecimento rápido para uma parcela da burguesia em ascensão. Mas o que é feio, o capitalismo sempre escondeu; como hoje esconde a sonegação das grandes empresas, a exemplo da mídia local que nada noticia sobre a operação Zelotes. Ou que 45% do orçamento nacional no Brasil vai para os rentistas, via juros e amortizações da “dívida pública”. Psiu…! Temos que vender a ideia de que quem é muito rico o é por merecimento, muito trabalho, qualidades excepcionais…!
Mas esse negócio vem de antes do capitalismo ser “inventado”, a bem da verdade. A “tradição” da concentração de privilégios para os “superiores” vem desde os tempos da democracia grega, que era para poucos, apenas homens brancos, livres e atenienses, que não precisavam ocupar-se do trabalho braçal efetuado pelos escravos, ou de reprodução da vida, efetuado pelas mulheres, podendo dedicar-se à deliberação democrática na sua Ágora por horas a fio. Tsc, tsc,tsc… parece que o nosso mundo ocidental não consegue mesmo se livrar da sua obsessão exclusivista e de particularismos excludentes. O capitalismo, ao tornar-se hegemônico, traz, contudo, algumas novidades a essa tendência atávica da civilização ocidental.
O processo de acumulação primitiva do capital possibilitou a expropriação das terras e meios de produção dos camponeses e dos artesãos, que viraram o famoso proletariado, possuidor apenas da sua força de trabalho, concentrando nas mãos de uma parcela minoritária a propriedade da riqueza. Bom, alguns passaram a considerar injusta e irracional a economia de mercado capitalista, competitiva e excludente. Foram os socialistas utópicos, que acreditavam na fraternidade universal e na vida em comunidades. Depois veio o intitulado socialismo científico de Marx e Engels, que alguns procuradores hoje confundem com Hegel, aquele elitista, mas que tanto influenciou Marx (risos!).
Meu professor de filosofia, Carlos Roberto Cirne Lima, contava em aula que no tempo da ditadura foi interrogado pela polícia, agressivamente, e perguntado que história era aquela de fazer uma tese sobre Hegel, “esse aluno de Marx”! Ele respondeu, “Olha, é mais ou menos o contrário, e ainda tinha o Feuerbach no meio…” (Mais risos!).
O objetivo do capitalista é a procura do maior lucro possível e quanto maior for o capital, mais elevados serão os lucros, sendo a acumulação o meio para atingir esse fim. Esta característica distingue o capitalismo dos sistemas anteriores de sacanagem institucionalizada e legitimada como “merecimento” – seja por herança, seja por esperteza – da “casta superior”.
As ideias de liberdade – esta identificada com a propriedade privada – tinham de ser defendidas por um novo regime político, diferente do teocrático e absolutista, que se fundamentava na ideia da origem divina do poder e da justiça. Mas o objetivo era garantir a ordem e a conservação da propriedade privada, e os ecos desse passado a gente ainda ouve hoje, quando a Regina Duarte vai na mídia dizer que “o direito à propriedade é inalienável”¹, com a tragicidade costumeira de suas personagens…!
O conceito de liberdade, aqui, é fundamental de ser discutido; a liberdade de cunho liberal é negativa, limitando-se à ausência de interferência. A liberdade positiva relaciona-se com a criação de condições para que as pessoas sejam livres, e implica em fazer algo, em participar e agir. A concepção de Amartya Sen permite complementaridade entre as abordagens, trazendo tanto a ativação das capacidades, quanto a ausência de dependência e de interferência, envolvendo uma pluralidade de conceitos inter-relacionados, como liberdades substantivas, capacidades e oportunidades. Para ele uma teoria da justiça pode atentar para todos esses aspectos. O autor tenta buscar fundamentos do que seria uma sociedade justa (Locks Filho, 2014).
Mas voltando à época passada em questão, diante das mudanças que revolucionavam e tentavam enterrar o Ancién Régime, o conservadorismo buscava por sua vez afirmar que havia uma “ordem natural das coisas”; que a sociedade não era fruto da construção humana, mas sim da vontade divina ou da tendência natural e inata dos homens, a depender da crença do conservador em questão. Desse modo, tentar transformá-la – ainda mais radicalmente -, era imoral, errôneo e até criminoso. Era subverter a natureza das coisas; e o subverter tinha de ser transformado em crime. A construção da figura do “subversivo” talvez tenha começado com Edmund Burke, o “pai do conservadorismo”…
Para os conservadores, a sociedade e as formas de vida são calcadas na autoridade da ordem vigente. As noções de família, propriedade, pátria, religião, são “eternas”, não devem mudar e expressam a “real” inclinação humana. A autoridade é imanente e deve ser cultuada, para a ordem das coisas prosperar (“ordem e progresso” diz algo pra vcs, lembra o governo golpista atualmente instalado no Brasil? Isso que nem vou citar o positivismo de Auguste Comte nesse texto. Fica pra um próximo…).
O arquétipo geral do autoritarismo pode ser identificado com a direita política. A direita não gosta de mudanças, muito menos das radicais e não planejadas pelas elites. Agora vou estabelecer uma óbvia relação entre o conservadorismo e um tipo especifico de liberalismo (existem vários, assim como existem vários socialismos), hostil à promoção da igualdade de oportunidades: o neoliberalismo. Não é à toa que Hayek e Burke são tidos como irmãos de alma e pensamento: os caras tinham muito em comum². Reivindicavam um tipo de “acesso privilegiado ao real”, o “realismo” que simplesmente sabia como as coisas são! E como são naturalmente determinadas. Por isso que o neoliberalismo de Hayek parte de uma visão de ser humano determinada: somos egoístas e buscamos maximizar nosso lucro. Nossa natureza é esta. E como alterar uma ordem natural? Impossível! A ordem natural é imutável, sendo tolice ou ingenuidade tentar fazê-lo. Neoconservadores jovens costumam ficar ofendidos quando os nomeio como “conservadores”. “Somos libertarianos”, clamam, indignados! Ah, essas ideias sociais e seus paradoxos e ambiguidades. Saudades de ministrar essa disciplina no curso de Economia. O curso de meu pensamento parece um tanto caótico, rápido demais?
É que eu acho tudo isso fascinante, pois adoro – embora seja impossível estudar tudo – história, filosofia, sociologia, antropologia, ciência política, economia e psicologia social. Minha vida como docente e pesquisadora gira em torno de estudar esses campos e analisar a realidade através de diferentes lentes teóricas. Gosto muito da minha vida de professora universitária, que segue apesar dos pesares da política institucional e da virada conservadora, embora a recessão econômica prejudique as universidades, evidentemente; e a liberdade de cátedra esteja cada vez mais ameaçada pela nova direita, pelo neoconservadorismo (defendido inclusive por quem não se beneficia dele).
Resta saber se os moradores da Restinga em Porto Alegre, que elegeram majoritariamente Marchezan, o filhote da ditadura; ou os do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, que votaram no “bispo” Crivella, estão satisfeitos com suas vidas também.
Acusam-me frequentemente de “romantizar as classes populares”. Na verdade eu apenas convivo com elas e admiro a resiliência e demais qualidades daqueles e daquelas com quem entro em contato. Não compartilho, por origem de classe, seus sofrimentos cotidianos causados pela pobreza ou miséria. Mas minha luta política é calcada na ideia de que tod@s deveriam ter iguais condições de almejar e construir uma vida boa e digna, de diferentes maneiras. Valores caros ao liberalismo clássico, não é? Pois então! Jeremy Bentham, um dos expoentes dessa perspectiva, dizia que o propósito de nossas vidas é o de satisfazer o prazer e de evitar a dor. Será mesmo, seu Jeremy, se damos tiro no pé o tempo todo?! Chamem o Freud pra ajudar nesse ponto!
Me questiono se há uma parcela dos pobres, moradores das periferias e usuários de programas como o Bolsa-família (nunca esqueço uma criança, cuja mãe era usuária do programa, me contando feliz da vida que, quando ela recebia o benefício, podia tomar iogurte, comer maçã e comprar canetinha hidrocor pro colégio), que está satisfeita de passar horas em transportes lotados e ruins, que enriquecem barbaramente um punhado de empresários do setor, eternamente mancomunados com prefeituras mantenedoras da ordem vigente; se estão satisfeitos com seus salários, ou com as mortes de seus filhos na “guerra às drogas”; ou com a eventual repressão à prática de religião de matriz africana por parte do fundamentalismo neopentecostal.
Será que essa parcela se sente feliz em ficar refém do tráfico de drogas, negócio lucrativo para alguns, que precisam manter a proibição das drogas para continuar lucrando, mesmo que a juventude pobre esteja sendo encarcerada e morta por causa dela? Afinal, a vida não vale nada diante do lucro; que, lembrem-se, para alguns equivale à liberdade. Mas somente à liberdade de uns poucos que lucram, sendo que milhões de outros são condenados à ausência de liberdade para que possam lucrar.
Aparentemente, pelo que digitaram nas urnas nas últimas eleições municipais, a resposta é sim. Parece que seu pragmatismo de “interesse imediato” tem tudo para prejudicar ainda mais seus interesses, imediatos e futuros. É tiro no pé e auto-açoite com chicote de ponta envenenada pra todo lado, do Sul ao Norte do globo, questionando seriamente a tese de Bentham. Chamem logo o Dr. Freud, que a gente precisa de mais ajuda para entender melhor essa bagaça.
¹http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2009/05/19/regina-duarte-tem-medo-de-indio/
²Locks Filho, Pompílio. Liberdade e Justiça em Amartya Sen. Anais do II Simpósio Nacional sobre Democracia e Desigualdades, Brasília, 2014. Disponível em http://www.sndd2014.eventos.dype.com.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=4149.
³ Raeder, Linda C. The Liberalism/Conservatism Of Edmund Burke and F. A. Hayek: A Critical Comparison, in Humanitas, Vol. X, N.º 1, 1997. Disponível em http://www.nhinet.org/raeder.htm.

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