O posicionamento ideológico de Dilma Rousseff e de Michel Temer visto por meio dos discursos de posse

Embora os posicionamentos ideológicos da Presidenta Dilma Rousseff e do presidente interino Michel Temer já não sejam novidade para a maioria, nem sempre se faz uma análise acurada, do ponto de vista linguístico, dos elementos que comprovam esses posicionamentos. Neste artigo, buscamos contrastar o discurso de posse do segundo mandato de Dilma Rousseff, em 2015, e o de Michel Temer, em 2016, salientando alguns aspectos que situam esses atores políticos, a partir da identificação dos seus interlocutores.
O texto de Dilma Rousseff foi pronunciado no Congresso Nacional em 1º de janeiro de 2015 e apresenta as propostas de governo para o novo mandato. O discurso de Temer foi pronunciado ao assumir como presidente interino e dirigido a um conjunto de convidados no dia 12 de maio de 2016.
Neste artigo, escolhemos apenas um dos aspectos possíveis de serem analisados nos dois discursos: a quem eles se dirigem e de que forma o fazem. Aparentemente, são formas simples, como brasileiros, brasileiras e amigos. Mas uma análise mais aprofundada revela o real significado dessas palavras neste contexto.
Após dirigir-se ao público presente – presidentes do Senado e da Câmara, vice-presidente, ministros, governadores e representantes de delegações estrangeiras, entre outros –, Dilma Rousseff inicia seu discurso utilizando a forma meus queridos brasileiros e brasileiras; as variações desse vocativo (queridas brasileiras e queridos brasileiros, queridas e queridos brasileiras e brasileiros) repetem-se quatro vezes ao longo do texto. A Presidenta também utiliza duas vezes a forma amigos e amigas.
Michel Temer, por sua vez, ao cumprimentar os ministros empossados, governadores, parlamentares, familiares e amigos, utiliza a expressão meus amigos, repetida oito vezes ao longo de seu discurso. Temer não faz menção aos brasileiros e brasileiras.
Mas a quem, de fato, fazem referência as formas brasileiros e brasileiras e amigos? Como podemos ler esse endereçamento?
No discurso de Dilma Rousseff, é possível verificar, pela sequência da informação apresentada após o uso do vocativo, que brasileiros e brasileiras referem-se ao país, ao conjunto da população ou à parcela pertencente às classes sociais mais desfavorecidas, como se pode ver nos exemplos abaixo, indicados em itálico:
Queridas e queridos brasileiros e brasileiras,
O Brasil vai continuar como o país líder, no mundo, em políticas sociais transformadoras. Aos beneficiários do Bolsa Família continuaremos assegurando o acesso às políticas sociais e a novas oportunidades de renda.
Queridos brasileiros e queridas brasileiras,
O Brasil não será sempre um país em desenvolvimento. Seu destino é ser um país desenvolvido e justo, e é este destino que estamos construindo e buscando cada vez mais, com o esforço de todos, construir.
 
No primeiro exemplo, segue-se a referência ao Brasil, às políticas sociais e aos beneficiários do Bolsa Família em particular. No segundo, ela menciona novamente o país, qualificando-o como desenvolvido e justo, construído com o esforço de todos. Essa referência fica mais evidente ainda quando correlacionada a outras partes do discurso, como no trecho a seguir, em que se faz menção a toda a população sem exclusão de nenhum tipo:
Só a educação liberta um povo e lhe abre as portas de um futuro próspero. Democratizar o conhecimento significa universalizar o acesso a um ensino de qualidade em todos os níveis, da creche à pós-graduação. Significa também levar a todos os segmentos da população dos mais marginalizados, aos negros, às mulheres e a todos os brasileiros a educação de qualidade.
Mesmo quando a Presidenta emprega a forma “amigos e amigas”, trata-se de um “chamamento” a seus interlocutores, mas o conteúdo do texto refere-se ao coletivo (sociedade, movimentos sociais e povo), como vemos na passagem seguinte:
Amigos e amigas,
Tudo que estamos dizendo, tudo que estamos propondo converge para um grande objetivo: ampliar e fortalecer a democracia, democratizando verdadeiramente o poder. Democratizar o poder significa lutar pela reforma política, ouvir com atenção a sociedade e os movimentos sociais e buscar a opinião do povo para reforçar a legitimidade das ações do Executivo.
Além do estabelecimento dessas correlações, que indicam um endereçamento ao coletivo, a Presidenta sempre utiliza conjuntamente a forma feminina (brasileiras, amigas) e a forma masculina (brasileiros, amigos), nunca exclusivamente a forma masculina. Isso revela sua preocupação por incluir as mulheres em seu discurso. Essa perspectiva inclusiva é clara no trecho reproduzido abaixo:
Sinto alegria por ter vencido os desafios e honrado o nome da mulher brasileira. O nome de milhões de mulheres guerreiras, mulheres anônimas que voltam a ocupar, encarnadas na minha figura, o mais alto posto dessa nossa grande nação.
É exatamente essa perspectiva que o presidente interino busca suprimir ao vetar recentemente a forma de tratamento “presidenta” na televisão e na agência de notícias Brasil.
Posse de Michael Temer
No discurso de Michel Temer, não há uma única referência a brasileiros e brasileiras. Quando emprega a forma amigos, sempre no masculino, dirige-se aos seus correligionários de partido e apoiadores (colegas parlamentares, senhores governadores) e decorre da longa convivência ao longo do tempo. Isso pode ser visto no trecho a seguir:
Amigos,
Senhoras e senhores,
Eu pretendia que esta cerimônia fosse extremamente sóbria e discreta, como convém ao momento que vivemos. Entretanto, eu vejo o entusiasmo dos colegas parlamentares, dos senhores governadores, e tenho absoluta convicção de que este entusiasmo deriva, precisamente, da longa convivência que nós todos tivemos ao longo do tempo.
Ele fala também aos investidores, aos empresários e ao setor privado, como se vê abaixo:
Eu quero, também, para tranquilizar o mercado, dizer que serão mantidas todas as garantias que a direção do Banco Central hoje desfruta para fortalecer sua atuação como condutora da política monetária e fiscal. É preciso, meus amigos, – e aqui eu percebo que eu fico dizendo umas obviedades, umas trivialidades, mas que são necessárias porque, ao longo do tempo, eu percebo como as pessoas vão se esquecendo de certos conceitos fundamentais da vida pública e da vida no Estado.
Ao Estado compete – vou dizer, aqui, o óbvio -, compete cuidar da segurança, da saúde, da educação, ou seja, dos espaços e setores fundamentais, que não podem sair da órbita pública. O restante terá que ser compartilhado com a iniciativa privada, aqui entendida como a conjugação de ação entre trabalhadores e empregadores.
Mesmo quando faz menção ao povo brasileiro ou à sociedade, esses não são seu foco, pois sempre aparecem referidos em último lugar numa enumeração de vários atores, como vemos a seguir:
Reitero, como tenho dito ao longo do tempo, que é urgente pacificar a Nação e unificar o Brasil. É urgente fazermos um governo de salvação nacional. Partidos políticos, lideranças e entidades organizadas e o povo brasileiro hão de emprestar sua colaboração para tirar o país dessa grave crise em que nos encontramos.
Ninguém, absolutamente ninguém, individualmente, tem as melhores receitas para as reformas que precisamos realizar. Mas nós, governo, Parlamento e sociedade, juntos, vamos encontrá-las.
E é por isso que hoje nós estamos na fase da democracia da eficiência, com o que eu quero contar com o trabalho dos senhores ministros, do Parlamento e de todo o povo brasileiro.
Por meio desta breve análise aqui apresentada, as expressões brasileiros e brasileiras e amigos e seus contextos já são suficientes para evidenciar a presença de duas posições antagônicas. Por um lado, a da Presidenta Dilma Rousseff, que se dirige ao povo brasileiro, à nação brasileira sem distinção de gênero, raça ou posição social. Seu pronunciamento se endereça ao povo e indica que ela pretende governar com ele. Por outro, o discurso de Michel Temer é endereçado diretamente aos amigos, todos do sexo masculino, o que também se comprova pela escolha de apenas homens para os ministérios. E mesmo que essa forma linguística possa incluir as mulheres, pragmaticamente a referência é a um grupo seleto, os amigos presentes em sua posse, do mesmo que quando emprega senhoras e senhores. Constata-se ainda que, embora faça referência ao povo brasileiro e à sociedade, em primeiro lugar são sempre mencionados outros setores, como os investidores, o setor privado, os empresários.
Por fim, salientamos a individualidade expressa no pronunciamento do presidente interino – que se contrapõe à expressão de coletividade manifesta no da Presidenta – por meio de seu lapso do pronome meus em um dos trechos finais do discurso:
Farei muitos outros pronunciamentos. E meus ministros também. Meus ministros é exagerado, são ministros do governo. O presidente não tem vice-presidente, não tem ministro, quem tem ministro é o governo.
Em que pese a retomada imediata – “meus ministros é exagerado” –, palavra pronunciada é como flecha lançada… Esse fato é indício concreto de que, assim como a linguagem pode nos libertar, ela também pode nos trair. Esse lapso evidencia que, ao invés de se posicionar como mandatário, a quem cabe governar em nome do povo e para o povo, ele se coloca na posição de dono do poder, ou seja, a res publica é algo que lhe pertence – a ele e a seus amigos.
Fontes:
Discurso de posse de Dilma Roussef no Congresso Nacional, 2015 Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/discursos/discursos-da-presidenta/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-compromisso-constitucional-perante-o-congresso-nacional-1 Acesso em 06/06/2016
Discurso de posse de Michel Temer, em 13 de maio de 2016. Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/presidente-interino/discursos/discursos-do-presidente-interino/discurso-do-presidente-da-republica-michel-temer-durante-cerimonia-de-posse-dos-novos-ministros-de-estado-palacio-do-planalto Acesso em 06/06/2016
Cleci BevilacquaCleci Regina Bevilacqua: professora do Departamento de Línguas Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Letras.
Patrícia ReuillardPatrícia Reuillard: professora do Departamento de Línguas Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Letras.
 

Deixe uma resposta