O Sentido do Igualitarismo

Duilio de Avila Bêrni – Professor de economia política (UFSC e PUCRS, aposentado). Coautor de “Mesoeconomia” (Bookman, 2011) e “Teoria dos Jogos” (Saraiva, 2014).
Vivemos uma quadra peculiar na vida comunitária do Brasil, aliás, mais apropriado é falar naqueles dois brasis de Jacques Lambert. Num deles, o das lideranças empresariais e seus ventríloquos, há estado em excesso. No outro, veem-se ignorância, violência, corrupção, crime contra o pobre: óbvios indícios de estado escasso. No primeiro, paga-se muito imposto, enquanto que, no Brasil dos miseráveis e pobres, não se observa o princípio tributário de arrecadar conforme capacidade de pagar do indivíduo.
O igualitarismo, a rigor, é uma doutrina político-econômica que quer acabar com qualquer diferença, deseja uma população conformada por indivíduos de renda e atributos idênticos. Quer? Não, claro que não, pois a desigualdade é um fenômeno natural: gordos, possivelmente comem mais que magros, e baixinhos seguramente gastam menos tecido em uniformes escolares que jerivás. Ainda assim podemos defender a concepção de que o alisamento do consumo per capita, ou melhor, as sociedades que garantem a seus membros pequenas diferenças no consumo per capita têm melhor desempenho que as demais. Entretanto apresento dois avisos de alerta. Primeiramente, não defendo o igualitarismo da pobreza, em que todos são iguais perante uma ou duas magras refeições por dia. Além disso, tampouco penso em igualitarismo numa sociedade com baixo grau de cultivo à liberdade pessoal. O crescimento econômico permanente é um projeto de enorme número de simpatizantes, mas, claro, sem unanimidade, pois um crescente número de neomalthusianos considera que é ele que está levando o planeta aos desequilíbrios ambientais que – alegam – culminarão por arruiná-lo. Estes antagonistas do crescimento econômico não percebem que o desenvolvimento sustentado não é incompatível com o capitalismo, podendo servir-se de suas virtudes produtivas para garantir qualidade de vida, ou seja, maior consumo de bens e serviços, mais educação e cultura e, principalmente, maior longevidade.
Unindo o direito à liberdade com os cânones da igualdade, vemos a concepção da sociedade justa concebida por John Rawls (1971). O filósofo americano apresenta um resumo na seguinte listagem:
1. Todos têm igual direito à mais ampla liberdade compatível com a dos demais indivíduos.
2. A desigualdade social e econômica deve ser organizada de modo a:
a) permitir que as oportunidades de emprego sejam abertas a todos e
b) gerar o maior benefício aos detentores de menos posses.
Segue-se que, na sociedade justa, não posso ser dono de escravos nem – ainda bem – deixar-me predar, como uma fração da humanidade tem sido desde tempos imemoriais até o presente. Ponto positivo: não podemos ser escravizados. Mas que dizer de um indivíduo e sua família que gozam da liberdade de praticar um consumo conspícuo, de pompa e ostentação, contrastando com bilhões de pessoas que não transcendem mais que a existência bruta? Estarão eles gozando de um grau de liberdade compatível com as demais famílias? Além da falta de liberdade, a definição de Rawls fala diretamente na desigualdade como inimiga da sociedade justa, mostrando caminhos constitucionais para diminuí-la. O primeiro deles é o combate às sociedades de classes, castas ou estamentos poderosos, como ainda são a indiana e a chinesa, cabendo registrar o nepotismo brasileiro. Espraiando-se pelos três poderes da república, inclusive entrecruzam-se conluios entre juízes e deputados sobre empregos cruzados (parente de um no gabinete do outro, e vice-versa), entre governadores e senadores sobre como distribuir os “cargos em comissão”, e por aí vai.
Por fim, quando Rawls fala em manejo da desigualdade com o objetivo de beneficiar os menos aquinhoados, sou levado a crer que ele está falando numa legislação que contemple um imposto de renda progressivo: uma faixa de isenções para todos, sucedida por uma alíquota reduzida para ganhos reduzidos, mas superiores àquele mínimo que garante a isenção, sucedida por outra alíquota maior para os mais ricos, não incidindo sobre os rendimentos capitulados nas duas alíquotas anteriores, e assim sucessivamente. No tempo dos militares, alíquota máxima era de 50%, tendo caído no governo Sarney aos atuais 27,5%.
Ao refletirmos sobre os contornos rawlsianos da sociedade justa, tomo a liberdade (compatível com a dos leitores…) de apresentar a concepção de David Harvey (1980):
1. Desigualdade intrínseca: todos têm direito ao resultado do esforço produtivo, independentemente da contribuição.
2. Critério de avaliação dos bens e serviços: valorização em termos de oferta e demanda.
3. Necessidade: todos têm direito a igual benefício.
4. Direitos herdados: reivindicações relativas à propriedade herdada devem ser relativizadas, pois, por exemplo, o nascimento em uma família abastada pode ser atribuído apenas à sorte.
5. Mérito: a remuneração associa‑se ao mérito; por exemplo, estivador e cirurgião querem maior
recompensa do que ascensorista e açougueiro.
6. Contribuição ao bem comum: quem mais beneficia aos outros pode clamar por mais recompensa.
7. Contribuição produtiva efetiva: quem gera mais resultado ganha mais do que quem gera menos.
8. Esforços e sacrifícios: quanto maior o esforço, maior a recompensa.
Sem expor contradições quanto à concepção de Rawls, o geógrafo americano confronta-nos com o mecanismo da renda básica universal, estabelecida no Brasil por meio da lei 10.835/2004, muito adequada para substituir o Programa Bolsa Família criado no ano anterior. Com a renda básica, por exemplo, os pobres poderiam comprar alimentos e roupa, ao passo que os ricos podem deixá-la diretamente nas mãos do tesouro nacional à espera do ajuste da declaração do imposto de renda.
Ainda assim, a verdadeira chave da manutenção do traço igualitário não é a renda básica, mas o emprego. Todavia, na sociedade capitalista, a chave do emprego localiza-se no nada livre mercado de trabalho, no jogo das forças da oferta e procura por trabalho. Pois é precisamente aí que reside a fábrica da desigualdade, pois há critérios díspares de remuneração entre as empresas e entre as pessoas. Além disso, os excedentes de oferta de trabalho são proverbiais, sendo raros os períodos em que se observam salários crescendo sob a impulsão de maior demanda por trabalho, e corriqueiros momentos em que alguém deseja um emprego e não encontra. Para este desequilíbrio fundamental na chamada distribuição primária da renda (entre trabalhadores, capitalistas e arrecadação de impostos indiretos pelo governo) criado pelo mercado, só há uma saída: tentar consertá-lo, atribuindo ao governo o papel de empregador de última instância, ou seja, com ações alheias ao mercado de trabalho.
A primeira, mais moderna e necessária, é a criação do Serviço Municipal proposto pelos estudiosos das finanças públicas. Não se trata de “emprego”, no sentido tradicional de trabalho assalariado, salários e ordenados. Sua existência torna-se necessária nos países com tradicionais excedentes de mão de obra, a fim de organizar a vida em sociedade em torno das dimensões econômica e solidária. Não que estas sejam as mais importantes, mas por serem elas dirigidas às necessidades materiais cujo atendimento como resultado da livre ação do mercado é insuficiente. Por exemplo, cuidados sociais (não necessariamente dos familiares) para com jovens e velhos. Além deles, a jardinagem urbana, nas margens de avenidas, estradas e rodovias, etc., são fontes inesgotáveis de ocupação de mão de obra. Ilustra a carência desse encaminhamento do igualitarismo a proliferação do mosquito Aedes Aegyptii, retratando a irresponsabilidade do setor público na coleta e processamento do lixo (perversamente “terceirizado” pelas prefeituras a detentores de empregos precários), do esgoto e da mata ciliar. Seu enquadramento requer trabalho para lixeiros, pessoal de manutenção e jardineiros.
Mesmo neste exemplo ilustrativo, o círculo virtuoso aparece altaneiro: o filho do lixeiro pode estudar violino e o professor de violino pode comprar no açougue do bairro, cujo proprietário está juntando um dinheirinho, contratando uma agência de viagens a fim de enviar sua filha a um passeio no Beto Carreiro (ou na Disneylândia, por quê não?). O despachante da agência de viagem também se beneficiará por ter um emprego, impulsionando o fluxo da renda com a que ele próprio gera, apropria e absorve.
Ainda que idílico, este mundo urdido pelas políticas igualitárias é complementar ao funcionamento do mercado de recursos, em particular, o de trabalho. Mas não precisamos ir muito longe para entender que a distribuição da renda nele engendrada não é capaz de eliminar a desigualdade. Resta, em menor grau, a ação comunitária. E ao estado, além do papel de empregador de última instância, a ação em três frentes: a tributação, o gasto público e o crédito ao emprego autônomo de pequenos empresários. Mas que temos visto durante esses meses de interinidade de Michel Temer e seu governo?
Políticos. São esses os homens que, enquanto estamento, têm uma vida fácil de gravata e ar condicionado no país tropical, que terão régias aposentadorias autoconcedidas e outros privilégios inconcebíveis, disfarçados em direitos. São eles que avalizam as iniciativas de nulo conteúdo fraterno, tratando os pobres, a classe trabalhadora despossuída, como se fosse o inimigo de guerra. São esses homens que estabelecem os “salários” dos juízes e, ao fazê-lo, têm os ganhos destes automaticamente escorrendo sobre si.
Controle reacionário do gasto público por 20 anos? Homens que foram ungidos ao comando com grande ilegitimidade alardeiam o desejo de permanecer por mais de dois anos à frente do poder usurpado. Eles expressam a intenção de condicionar uma geração inteira com reformas malévolas que retiram um bom grau de autonomia decisória dos pilares da despesa pública, a forma regressiva de combater a desigualdade. E no front da redistribuição da renda na linha de John Rawls? Precisamente o oposto: anúncios frequentes de impostos regressivos, como a CPMF, manutenção das isenções fiscais, e uma taxa de juros sobre o crédito à pequena empresa verdadeiramente proibitiva, Ou seja, nem uma palavra sobre uma reforma tributária que substitua os impostos regressivos pelo imposto de renda, sistemáticos anúncios de redução nos gastos públicos, promessas de combate à inflação com a contração da oferta monetária e corte nos direitos trabalhistas e previdenciários.
Com um perturbador índice de desigualdade de Gini, superior aos já elevadíssimos 0,50 de 1959, o Brasil permanece um campeão da falta de oportunidades à maioria da população de todas as idades. Durante os governos Lula e Dilma, houve algumas medidas tíbias na linha de reduzi-la, sendo gradualmente revertidas pelo movimento político que ufana-se de pregar liberdade e democracia, mas permitindo prever mais desigualdade, maus tratos e morte. Recorrem à velha quimera de que o emprego e a renda serão gerados com o crescimento econômico, milagre que nem os vigorosos crescimentos da China ou da Índia têm sido capazes de garantir. Não se dão conta de que a única forma de resgatar as populações carentes é por meio da renda básica, além de emprego publico que seja um colchão voltado à produção de bens públicos (segurança, saneamento) e de mérito (educação, saúde).
Com a saída temporária da presidenta Dilma, o que estamos testemunhando é uma colossal reversão daqueles padrões ameaçados de cortes nos gastos em educação e saúde, na moradia popular e na previdência. Pelo lado da receita, não se profere uma única palavra sobre a transformação de sua estrutura trocando os impostos regressivos por progressivos. Ao contrário, a necessidade de usar impostos regressivos para combater o déficit público. Nada se fala sobre o trio igualitário: imposto sobre a renda, sobre a riqueza e sobre a herança. A matança de pobres especialmente negros tende a continuar, a covarde e sistemática agressão de homens sem caráter à mulher brasileira é uma realidade, a moralidade rançosa no trato da questão do aborto é criminosa e o abatedouro humano em que se transformaram os transportes é formidável. As perspectivas são tristes, o futuro provável é amargo e nossa tarefa na contestação ao golpe é hercúlea.
 

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