Os significados da violência do governo Sartori

A ação do governo José Sartori sobre os estudantes que ocupavam a Secretaria da Fazenda e os atos praticados contra o jornalista da Já Editores mostra o quanto o Estado é o ator social mais violento. Quer dizer, o Estado, detentor do monopólio da violência, quando praticou atos contra estudantes e a imprensa, não pode ter suas ações consideradas legítimas, ao contrário, devem ser criticadas como arbitrárias. Primeiro porque a violência de Estado só é legitima quando está no limite de construções jurídicas e práticas que a limitem, no caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que garante a presença de Conselheiro Tutelar e a Constituição Federal, que garante a liberdade de imprensa, que a prisão do jornalista contraria. Quer dizer, o Estado só pode ser detentor da violência se ela for sempre, uma violência contida. Segundo, os fatos revelam que o governo Sartori adotou a lógica de repressão pura e simples dos movimentos sociais, o que significa, que trouxe para o interior do Estado uma lógica do plano externo para a administração interna, a lógica da guerra, que é bastante diferente da lógica da resolução dos conflitos internos.
Para os marxistas ortodoxos como para os neomarxistas, o Estado é sempre um instrumento violento porque é expressão de dominação, no caso, da classe burguesa no poder. O exercício da violência, nesta visão, é sempre para proteger posses econômicas e manter à distância as camadas exploradas. Mas o que o governo Sartori conquista ao manter a distância e reprimindo estudantes? Minha resposta: o questionamento sobre um projeto de governo que se baseia no desmonte das políticas públicas de educação. De fato, a atenção dada as possibilidades de privatização de diversos campos e estruturas do estado acena para uma aliança, que o governo quer esconder, entre o projeto neoliberal e partido no poder. Xavier Crettiez, em sua obra “As formas da violência”(Loyola, 2011), chama a atenção para a ideia seminal de Trotsky, de que “Todo Estado está fundado na força”: da mesma forma que a aliança entre fisco e exército no passado permitiu o enriquecimento do Senhor por meio da imposição a todos os súditos de um recolhimento de impostos, agora, sucessivos parcelamentos salariais e negativas de reajuste como no caso dos professores atualizam a estratégia de que o governo só pode governar se explorar uma classe, no caso, a dos servidores públicos.
A questão evolutiva, de um estado que monopoliza a violência interna, realizada pela função da polícia, com a lógica da administração da violência externa, realizada pela administração da guerra, confunde estas duas dimensões, tratar o espaço interno público como espaço de guerra, e o que o governo Sartori dissemina é o sentimento de insegurança, modifica a economia psíquica de seus cidadãos, que agora tem como característica, ao menos nos serviços públicos e no âmbito escolar, um aumento do medo, ao mesmo tempo que veem no Estado que tem o compromisso de os proteger, o recuo das dimensões de honra e coragem – só um covarde bate em estudantes. Quer dizer, ao mesmo tempo que o governo Sartori recusa a afirmação de que é um governo violento – ele foi a imprensa dize-lo -, ele sanciona ações violentas contra jovens na capital. Crettiez lembra a famosa fórmula de Julien Freund: “O Estado verdadeiramente forte é aquele que consegue dissimular a força nas formas, nos costumes e nas instituições, sem ter de exibi-la incessantemente para ameaçar seus membros ou intimidá-los” (FREUND, J. L’Essence du politique. Paris, Dalluz, 2004).
Por que a referência ao Direito e a norma não foi suficiente no caso dos estudantes que ocuparam a Secretaria da Fazenda, mas o foi no caso dos professores que ocuparam o CAFF? É que o consenso dos grupos envolvidos foi diferente em cada caso: no primeiro, os estudantes revelaram uma total perda de fé na política, na possibilidade de atendimento das reivindicações pelo Estado; no segundo, os professores foram capazes de depositar fé nas promessas do mesmo Estado. Mas é esta recusa a legitimidade do Estado que chama a atenção, a recusa do cumprimento de uma ordem judicial, a recusa de cumprimento de uma ordem de saída do espaço público: ele revela a recusa de uma identidade, a recusa do reconhecimento da autoridade do Estado. Ele revela a descoberta feita pela sociedade de que a legitimidade do Estado como monopólio da violência é, ao final, uma ficção jurídica, de que não tem sentido. Ele o deixa de reconhecer como instância de valor.
Quando o Estado pratica atos de violência que a população considera ilegítima, ele atrai a desconfiança da sociedade para si. Quando brigadianos batem em alunos ou professores, o que se tem é não é a produção da ordem, mas a produção da desconfiança. Para o cidadão, que vê tais atos, o Estado perde sua legitimidade simplesmente porque vê que o Estado não reconhece o individuo como pessoa portadora de direitos: não foi simplesmente bestial retirar estudantes da Secretaria da Fazenda a base de gás de pimenta? Sob nenhum aspecto foi uma violência regrada e controlada, como exigem as democracias, ao contrário, foi uma violência típica de situações de guerra.
Trata-se de compreender o que significa o termo “manutenção da ordem”. Surgido com a III República Francesa, a regulação pacifica das ruas foi uma exigência da questão operária, forma de substituir a fúria camponesa pelo ritual da passeata pacificada. As passeatas modernas nascem, afirma Crettiez, da necessidade de legitimar a democracia pelo afastamento da agitação popular. Exige-se uma gestão democrática dos conflitos, e daí, diversos agentes são criados com o objetivo não de aniquiliar o inimigo, mas reconduzir o cidadão “momentamente extraviado” à ordem republicana. A negociação com organizadores de manifestações vem antes do uso de agua, gás ou outros mecanismos de repressão.
Desde os movimentos de Maio de 68, a expressão “manutenção da ordem” era a filosofia baseada no distanciamento dos protagonistas do conflito, justamente o contrário do visto nas cenas que difundiram-se na internet do momento de retirada dos manifestantes. Quer dizer, o que é base do Estado Democrático de Direito, o uso da violência legítima não se realizou. O governo não consegue reconhecer que não há lugar para violência ilegítima porque ela abala a confiança do cidadão no seu Estado. Por isso, a adoção de formas não negociadas, formas adotadas para forçar os estudantes a abandonarem o espaço público assemelha-se a formas do terrorismo: não foi o que sentiram os estudantes, o uso da força como forma de tortura? Não foi relatado inclusive um abuso sexual à uma estudante nas redes sociais? Esse tipo de abuso no entanto, nunca é feito sem planejamento, o Estado sabe que pode obter um resultado mais rapidamente do que aquele conquistado mediante a legalidade. É uma opção o uso da violência.
Claro que muitas vezes, o uso da violência pelo estado não é premeditada, mas provém de um contexto que escapa aos agentes de Estado. Pelo menos é essa a visão passada pelas lideranças policiais, no caso de abusos. Pode-se acreditar nela? É claro que não! São ações nas quais falta discernimento pelas corporações encarregadas da repressão policial, daí o uso desproporcional do uso da força; ações onde é visível, pelas atitudes das forças policiais, da obstinação furiosa visível na intensidade da violência que muitas vezes pode ser encarada como válvula de escape inconsciente dos próprios policiais, vítimas de rebaixamento de salários ou de certa perversidade de alguns indivíduos no cargo, etc; finalmente, são ações que revelam a onipotência do Estado, raro nas democracias, onde a corporação policial faz uma ação completamente sem fundamento legal ou jurídico.
O governo Sartori, por esta razão, oscila entre a manutenção da ordem e a repressão. Pode-se notar a duplicidade do discurso, entre um governador que afirma respeitar os estudantes e um aparelho policial cuja ação é imediatamente repressiva. É verdade que o modus operandi dos novos movimentos sociais é problemática, ao retirar a centralidade de uma autoridade da gestão dos movimentos sociais. Mas o Estado deve encontrar uma forma de se relacionar com movimentos de múltiplas lideranças. Foi o que se viu quando uma fração dos estudantes, sob o orgumento de autonomia, resolveu, após um acordo que se entendia geral, invadir a Secretaria da Fazenda. Esta é uma realidade que exige ao Estado criar novas formas de administrar os conflitos. A comunicação entre o Estado e a sociedade não pode ser resumida a força, ela precisa mais uma vez ser renovada. Caso contrário, estudantes, sociedade e Estado estarão cada vez mais distantes dos objetivo constitucionais porque incapazes de chegar a termos de acordos comuns para a conquista de direitos e expressão de reivindicações.

Deixe uma resposta