Por que tanta dor?

Jorge Barcellos – Doutor em Educação/UFRGS
O suicídio de Plínio Zalewski Vargas aponta para a urgência de rever o modo como Porto Alegre faz política.
Conhecia Plínio Zalewski Vargas há mais de 30 anos. Sua trajetória política e intelectual impecável e seu humor caracterizavam um cidadão que amava a vida, sua família e a cidade. Seu suicídio precisa ter sentido, pensei imediatamente quando soube da tragédia.  Fui pesquisar o assunto: na base Scielo encontramos 235 artigos a respeito do tema e não encontrei nenhum estudo que trate de motivações políticas do suicídio. Nenhum. Alguns apontam pessoas viúvas e aquelas ocupadas na agropecuária com um índice maior; outros apontam o aumento dos suicídios na população masculina para homens com menos de 40 anos mas as idades variam conforme os estudos; outros defendem como fatores determinantes o desemprego, o estresse econômico e a instabilidade familiar.  Plínio não se enquadrava em nenhuma delas “O suicídio enquanto objeto de reflexão teórica apresenta-se como um universo avesso a classificações excessivamente constritivas” afirma Meneguel (2004).
Mesmo os estudos que associam o suicídio com depressão não encaixam no caso de Plínio ou os que optam por linhas de investigação menos formal, ditos “pós-modernos”. Moraes (2006) tentou identificar as características da mente suicida a partir da narrativa do filme “As horas” de Stephen Daldry que trata de pessoas com quadros depressivos em diferentes épocas. Mesmo a personagem Laura Brown, interpretada por Juliane Moore, opta por um suicídio por ingestão de comprimidos como forma de não sentir dor ou ferimentos, ao contrário de Plínio. No entanto, estudos apontam que pelo menos 10% da pessoas que cometem suicídio são aparentemente normais e os psiquiatras denominam de “autópsia psicológica” o diagnóstico a partir de depoimentos de fontes próximas.Os depoimentos de amigos nos jornais tem dificuldade de acreditar no que aconteceu.
Então como isso foi possível? A melhor hipótese que encontrei para mim foi a dada por Flavia Pinhal de Carlos e Marta Regina de Leão D’Agord em seu estudo “O lugar obsceno do suicídio”. Se o obsceno é o que não pode ser mostrado, a ideia é que o suicídio pode ter um lugar obsceno. Como na sexualidade, o obsceno é o “momento mítico, onde uma narrativa é criada para dar conta desse real inapreensível”. Fora de cena, o que não pode ser mostrado, o que não pode ser falado, a cena fantasmática é o que “distingue os registros do mundo e da cena”. Toda a vida de Plínio foi marcada pelo significante político, era o mundo da urbe e da civitas que davam os marcos de seu mundo: sua dedicação à cidade era sua forma de não sucumbir na vida e a defesa da civilidade era o anteparo que funcionava como um fantasma que não deixava seu mundo cair. Mas o mundo político que Plinio vislumbrou nas eleições era totalmente diverso, estava além da cena a qual estava acostumado, era, numa palavra, obsceno.
O obsceno é caracterizado por uma perda de distância e o excesso de proximidade de Plínio com os ataques políticos, a perseguição de que foi vítima, a suposta invasão a seu celular e seu computador e as ameaças a sua família lhe mostraram que algo estava fora do lugar, do jogo político  “O obsceno é duplo, se encontra entre dois”, e no caso, entre Plínio e seus perseguidores. Como o obsceno, o que mais o afligia era que estes conflitos escapassem, que escorregassem para sua vida privada, exatamente como veio a acontecer nos movimentos das redes sociais “O obsceno é aquilo ao qual se dá uma olhada e depois se rechaça”: não foi exatamente assim que reagiu Plínio ao vídeo que circulou nas redes e apontado como motivo de depressão e que provocou, para surpresa de seu criador, que se demitisse da assembleia, pois “exibiu o que o espectador não consegue ver, se nega a ver”?
Mas há diferenças. Enquanto as autoras tecem considerações sobre as relações entre suicídio, obsceno e o campo das artes, é preciso ver as semelhanças do obsceno com a política.  Isso é fácil. Enquanto o obsceno mostra e força o olhar, a política seduz, busca convencer. Trata-se portanto, de um encontro possível, já que a política quer dar ao olhar uma direção. Ao vislumbrar a dimensão perversa da política, conflito no campo pessoal que seu olhar não pode apreender, que estava fora “do campo visível [que] trazem consigo o horror” como o olhar a morte e o sol e que “implica o desaparecimento do sujeito, na cegueira”. O que isto significa: que Plínio vislumbrou o lado obsceno da política, em maior ou menor grau, de um lado e de outro, algo foi colocado na cena da política que não poderia ali estar “como Édipo ao ver seus próprios olhos no chão”. Ao contrário do que defende seu diretor, o vídeo foi sim o disruptor de sua depressão: enquanto que para o cinegrafista o vídeo era  gozo,  o schaulust de que falam os autores, o gozo do espetacular,  para Plínio era o horror, esse ultrapassamento de todos os limites, foi a visão obscena em que se transformou a política da capital que o matou, ela se transformou naquilo que ele não podia ver “O signo que conduz a vida, à existência, é o mesmo que conduz a morte (…) o evento fatal não é aquele que se pode explicar por suas causas, e sim aquele que, em um dado momento, contradiz todas as causalidades, aquele que vem de algum outro lugar (..) mas apelar para as causas a fim de justificar os meios é sempre um álibi: não esgotaremos dessa maneira o sentido, ou a falta de sentido, de um acontecimento” diz o filósofo Jean Baudrillard em Senhas (Difel, 2001).
A campanha política jogou com a vida de Plínio colocando-o numa “experiência silenciosa” (p.47) e ainda que a autora remeta a figuras da psicanálise, o que está em jogo é a “experiência limite” vivida pelo escritor, onde lhe faltaram imagens em que pudesse se reconhecer. Culpa do partido e do candidato que apoiava por não perceber a fragilidade de seu mais devotado apoiador; culpa do partido e do candidato opositor que permitiu que grupos radicais de extrema direita o apoiassem. Assim como o obsceno tem relação com o que ataca o pudor, Plínio viu uma política sem pudores, sem regras, uma dimensão que nunca havia visto e que não imaginava pudesse existir em tamanha intensidade.  Como a obscenidade que exige uma vontade de mostrar, Plínio viu-se diante do horror de imagens e palavras que se dirigiam a ele e sua família “o obsceno seria o que permite jogar com a morte mediante imagens” dizem as autoras, quer dizer, estava tudo ali, a política colocada para ele mostrava tudo, expunha suas entranhas ao inesperado, as agressões à família “o que há de obsceno na política não é a pornografia de seus gestos, mas a relação com a sua morte que anuncia”.
Como pensar o encontro voluntário com a própria morte? Essa contingência que levou Plínio, essa confusão dos signos do mundo, do amor à política a recusa ao gozo do Outro repete estruturas apontadas por Ferreira (2012) ”quando algo falha, que o desejo não pode ser o desejo do Outro, quando alguém não pode fazer o seu desejo como o desejo do Outro, quanto isto falha, isto é fatal com respeito ao suicídio” (p.22). O suicídio de Plínio é o alerta a sociedade que, do jeito que a política está não pode ficar, o que está em jogo no campo simbólico de seu gesto é o grito de que nossas práticas políticas precisam mudar.  Urgentemente. Seu ato é um significante para toda uma capital, estamos todos de alguma forma vinculados a sua trágica morte por nossas ações ou omissões. Seu ato é contra esta forma de fazer política caracterizada por disputa sem limites, ética e valores “Esse signo, contudo, não é para quem comete o ato, mas sim para os que ficam. Trata-se do signo da existência de alguém” (p.51). Nossos ódios via internet, nossa falta de debate de ideias, nossa falta de respeito, a tudo isto Plínio respondeu com seu silêncio, uma lição de amor à política como ela deve ser e que fez da única forma que encontrou “a ruptura absoluta, uma não mediação do outro, no silêncio”. Para Plínio, a política se tornou um horror que só dando esse passo a mais, acessando um horror mais fundamental – a morte – ele poderia se tranquilizar. Essa é a mensagem: precisamos urgentemente reformar a vida política na cidade, lição de um pai amoroso que queria um mundo melhor para seus filhos.
Para as autoras “o suicídio  é um ato no qual por mais que se pretenda decifrar os motivos que levam a um sujeito a realizá-lo, este não está ali para ser interpelado”.  Se para Plínio, como revela seu bilhete, sua inquietação é que ele não podia lidar com as consequências de sua ação – a tristeza da família e dos amigos – cabe aos sobreviventes lidar de alguma forma com os significados dela. Para mim, sua mensagem eterniza na nossa memória que vivemos tempos de uma política absurda e que isso tem de parar. Seu gesto molesta a todos nós e isso é bom, convoca nosso olhar, convoca o olhar dos candidatos e suas equipes e os obrigam a perguntar “porquê”: como afirmou Sebastião Melo, o candidato a que dedicou seu trabalho e amizade, sua morte não pode ser em vão. Mas em que sentido: ela precisa desvelar a tela que encobre o vazio e a agressividade de nossa política, ela precisa ser um apelo à paz nas campanhas políticas, um apelo à paz na vida nas cidades e em nosso modo de vida,  que ele tentou  tantas vezes cultivar com suas reflexões sobre convivialidade.

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