Começo esse texto, sobre o momento que vivemos – ressaca eleitoral 2016, PEC 241 / 55, eleição de Trump nos EUA etc. –, lembrando três ideologias clássicas da modernidade ocidental, tentando estabelecer uma ponte com o passado, ou entender no que ele ainda nos influencia hoje: liberalismo, conservadorismo e socialismo. O primeiro emerge, em suas três dimensões (filosófica, política e econômica), no âmbito da revolução francesa, situando meio grosseiramente numa linha de tempo simplificada.
A burguesia ascendente queria poder político, uma vez que o econômico já estava conquistando; John Locke foi o contratualista responsável por elaborar a justificativa filosófica para o acúmulo de lucro, ligando a propriedade privada ao direito natural; e também à liberdade, sendo essa conexão levada a um extremo de fundir ambos os conceitos num só, como se fossem sinônimos (propriedade privada = liberdade). Esse processo é justamente a preponderância do liberalismo econômico sobre as duas outras dimensões, às quais a ideia de igualdade de oportunidades e de direitos políticos era cara.
O estado liberal organizou-se, assim, de forma excludente; pela liberdade e igualdade, mas prioritariamente – ou seria somente? – dos proprietários, da “casta superior” que detinha propriedade privada. Mesmo que esta tivesse se constituído por um processo violento de expropriação da produção familiar, artesanal, camponesa e corporativa, na dissolução da sociedade feudal; e por outro lado através de saques, especulação comercial, tráfico de escravos e monopólios mercantis, que foram enormes oportunidades de enriquecimento rápido para uma parcela da burguesia em ascensão. Mas o que é feio, o capitalismo sempre escondeu; como hoje esconde a sonegação das grandes empresas, a exemplo da mídia local que nada noticia sobre a operação Zelotes. Ou que 45% do orçamento nacional no Brasil vai para os rentistas, via juros e amortizações da “dívida pública”. Psiu…! Temos que vender a ideia de que quem é muito rico o é por merecimento, muito trabalho, qualidades excepcionais…!
Mas esse negócio vem de antes do capitalismo ser “inventado”, a bem da verdade. A “tradição” da concentração de privilégios para os “superiores” vem desde os tempos da democracia grega, que era para poucos, apenas homens brancos, livres e atenienses, que não precisavam ocupar-se do trabalho braçal efetuado pelos escravos, ou de reprodução da vida, efetuado pelas mulheres, podendo dedicar-se à deliberação democrática na sua Ágora por horas a fio. Tsc, tsc,tsc… parece que o nosso mundo ocidental não consegue mesmo se livrar da sua obsessão exclusivista e de particularismos excludentes. O capitalismo, ao tornar-se hegemônico, traz, contudo, algumas novidades a essa tendência atávica da civilização ocidental.
O processo de acumulação primitiva do capital possibilitou a expropriação das terras e meios de produção dos camponeses e dos artesãos, que viraram o famoso proletariado, possuidor apenas da sua força de trabalho, concentrando nas mãos de uma parcela minoritária a propriedade da riqueza. Bom, alguns passaram a considerar injusta e irracional a economia de mercado capitalista, competitiva e excludente. Foram os socialistas utópicos, que acreditavam na fraternidade universal e na vida em comunidades. Depois veio o intitulado socialismo científico de Marx e Engels, que alguns procuradores hoje confundem com Hegel, aquele elitista, mas que tanto influenciou Marx (risos!).
Meu professor de filosofia, Carlos Roberto Cirne Lima, contava em aula que no tempo da ditadura foi interrogado pela polícia, agressivamente, e perguntado que história era aquela de fazer uma tese sobre Hegel, “esse aluno de Marx”! Ele respondeu, “Olha, é mais ou menos o contrário, e ainda tinha o Feuerbach no meio…” (Mais risos!).
O objetivo do capitalista é a procura do maior lucro possível e quanto maior for o capital, mais elevados serão os lucros, sendo a acumulação o meio para atingir esse fim. Esta característica distingue o capitalismo dos sistemas anteriores de sacanagem institucionalizada e legitimada como “merecimento” – seja por herança, seja por esperteza – da “casta superior”.
As ideias de liberdade – esta identificada com a propriedade privada – tinham de ser defendidas por um novo regime político, diferente do teocrático e absolutista, que se fundamentava na ideia da origem divina do poder e da justiça. Mas o objetivo era garantir a ordem e a conservação da propriedade privada, e os ecos desse passado a gente ainda ouve hoje, quando a Regina Duarte vai na mídia dizer que “o direito à propriedade é inalienável”¹, com a tragicidade costumeira de suas personagens…!
O conceito de liberdade, aqui, é fundamental de ser discutido; a liberdade de cunho liberal é negativa, limitando-se à ausência de interferência. A liberdade positiva relaciona-se com a criação de condições para que as pessoas sejam livres, e implica em fazer algo, em participar e agir. A concepção de Amartya Sen permite complementaridade entre as abordagens, trazendo tanto a ativação das capacidades, quanto a ausência de dependência e de interferência, envolvendo uma pluralidade de conceitos inter-relacionados, como liberdades substantivas, capacidades e oportunidades. Para ele uma teoria da justiça pode atentar para todos esses aspectos. O autor tenta buscar fundamentos do que seria uma sociedade justa (Locks Filho, 2014).
Mas voltando à época passada em questão, diante das mudanças que revolucionavam e tentavam enterrar o Ancién Régime, o conservadorismo buscava por sua vez afirmar que havia uma “ordem natural das coisas”; que a sociedade não era fruto da construção humana, mas sim da vontade divina ou da tendência natural e inata dos homens, a depender da crença do conservador em questão. Desse modo, tentar transformá-la – ainda mais radicalmente -, era imoral, errôneo e até criminoso. Era subverter a natureza das coisas; e o subverter tinha de ser transformado em crime. A construção da figura do “subversivo” talvez tenha começado com Edmund Burke, o “pai do conservadorismo”…
Para os conservadores, a sociedade e as formas de vida são calcadas na autoridade da ordem vigente. As noções de família, propriedade, pátria, religião, são “eternas”, não devem mudar e expressam a “real” inclinação humana. A autoridade é imanente e deve ser cultuada, para a ordem das coisas prosperar (“ordem e progresso” diz algo pra vcs, lembra o governo golpista atualmente instalado no Brasil? Isso que nem vou citar o positivismo de Auguste Comte nesse texto. Fica pra um próximo…).
O arquétipo geral do autoritarismo pode ser identificado com a direita política. A direita não gosta de mudanças, muito menos das radicais e não planejadas pelas elites. Agora vou estabelecer uma óbvia relação entre o conservadorismo e um tipo especifico de liberalismo (existem vários, assim como existem vários socialismos), hostil à promoção da igualdade de oportunidades: o neoliberalismo. Não é à toa que Hayek e Burke são tidos como irmãos de alma e pensamento: os caras tinham muito em comum². Reivindicavam um tipo de “acesso privilegiado ao real”, o “realismo” que simplesmente sabia como as coisas são! E como são naturalmente determinadas. Por isso que o neoliberalismo de Hayek parte de uma visão de ser humano determinada: somos egoístas e buscamos maximizar nosso lucro. Nossa natureza é esta. E como alterar uma ordem natural? Impossível! A ordem natural é imutável, sendo tolice ou ingenuidade tentar fazê-lo. Neoconservadores jovens costumam ficar ofendidos quando os nomeio como “conservadores”. “Somos libertarianos”, clamam, indignados! Ah, essas ideias sociais e seus paradoxos e ambiguidades. Saudades de ministrar essa disciplina no curso de Economia. O curso de meu pensamento parece um tanto caótico, rápido demais?
É que eu acho tudo isso fascinante, pois adoro – embora seja impossível estudar tudo – história, filosofia, sociologia, antropologia, ciência política, economia e psicologia social. Minha vida como docente e pesquisadora gira em torno de estudar esses campos e analisar a realidade através de diferentes lentes teóricas. Gosto muito da minha vida de professora universitária, que segue apesar dos pesares da política institucional e da virada conservadora, embora a recessão econômica prejudique as universidades, evidentemente; e a liberdade de cátedra esteja cada vez mais ameaçada pela nova direita, pelo neoconservadorismo (defendido inclusive por quem não se beneficia dele).
Resta saber se os moradores da Restinga em Porto Alegre, que elegeram majoritariamente Marchezan, o filhote da ditadura; ou os do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, que votaram no “bispo” Crivella, estão satisfeitos com suas vidas também.
Acusam-me frequentemente de “romantizar as classes populares”. Na verdade eu apenas convivo com elas e admiro a resiliência e demais qualidades daqueles e daquelas com quem entro em contato. Não compartilho, por origem de classe, seus sofrimentos cotidianos causados pela pobreza ou miséria. Mas minha luta política é calcada na ideia de que tod@s deveriam ter iguais condições de almejar e construir uma vida boa e digna, de diferentes maneiras. Valores caros ao liberalismo clássico, não é? Pois então! Jeremy Bentham, um dos expoentes dessa perspectiva, dizia que o propósito de nossas vidas é o de satisfazer o prazer e de evitar a dor. Será mesmo, seu Jeremy, se damos tiro no pé o tempo todo?! Chamem o Freud pra ajudar nesse ponto!
Me questiono se há uma parcela dos pobres, moradores das periferias e usuários de programas como o Bolsa-família (nunca esqueço uma criança, cuja mãe era usuária do programa, me contando feliz da vida que, quando ela recebia o benefício, podia tomar iogurte, comer maçã e comprar canetinha hidrocor pro colégio), que está satisfeita de passar horas em transportes lotados e ruins, que enriquecem barbaramente um punhado de empresários do setor, eternamente mancomunados com prefeituras mantenedoras da ordem vigente; se estão satisfeitos com seus salários, ou com as mortes de seus filhos na “guerra às drogas”; ou com a eventual repressão à prática de religião de matriz africana por parte do fundamentalismo neopentecostal.
Será que essa parcela se sente feliz em ficar refém do tráfico de drogas, negócio lucrativo para alguns, que precisam manter a proibição das drogas para continuar lucrando, mesmo que a juventude pobre esteja sendo encarcerada e morta por causa dela? Afinal, a vida não vale nada diante do lucro; que, lembrem-se, para alguns equivale à liberdade. Mas somente à liberdade de uns poucos que lucram, sendo que milhões de outros são condenados à ausência de liberdade para que possam lucrar.
Aparentemente, pelo que digitaram nas urnas nas últimas eleições municipais, a resposta é sim. Parece que seu pragmatismo de “interesse imediato” tem tudo para prejudicar ainda mais seus interesses, imediatos e futuros. É tiro no pé e auto-açoite com chicote de ponta envenenada pra todo lado, do Sul ao Norte do globo, questionando seriamente a tese de Bentham. Chamem logo o Dr. Freud, que a gente precisa de mais ajuda para entender melhor essa bagaça.
¹http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2009/05/19/regina-duarte-tem-medo-de-indio/
²Locks Filho, Pompílio. Liberdade e Justiça em Amartya Sen. Anais do II Simpósio Nacional sobre Democracia e Desigualdades, Brasília, 2014. Disponível em http://www.sndd2014.eventos.dype.com.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=4149.
³ Raeder, Linda C. The Liberalism/Conservatism Of Edmund Burke and F. A. Hayek: A Critical Comparison, in Humanitas, Vol. X, N.º 1, 1997. Disponível em http://www.nhinet.org/raeder.htm.
Tag: EUA
Quatro projetos de Brasil e suas relações com a América Latina
Bruno Lima Rocha – Professor de Ciência Política e de Relações Internacionais
Se pensarmos tanto em termos geopolíticos, como nas teorias do desenvolvimento tardio, não encontraremos especificamente as chaves de interpretação para o processo incompleto pelo qual o Brasil atravessa. Temos de ir além das reproduções de manuais produzidos nos países do centro do capitalismo, EUA, Europa e os países anglo-saxões. Assim, partindo dessas afirmações, neste breve texto de caráter ensaístico, exponho o problema da colonialidade das identidades, da colonização do poder de Estado e o sentido de pertencimento esquizofrênico que organiza as elites dirigentes e classes dominantes nacionais ou atuando no Brasil.
Brasil e América Latina, um processo inacabado
Dentro do Sistema Internacional (SI), os Estados e seus domínios territoriais formalizados são os agentes preferenciais – mas não exclusivos – dos grandes foros e instâncias. Entre Estados – e não apenas governos de turno – se constroem alianças, acordos de cooperação e processos de integração econômica dentro dos marcos do capitalismo. As relações internacionais terminam sendo confundidas com relações interestatais ou então entre Estados e suas transnacionais (TNCs). Infelizmente, o que vale para o cálculo político externo acaba sendo revalidado para o cálculo doméstico, sendo o efeito ainda mais nefasto.
Mesmo com todas as críticas – merecidas por sinal – a Teoria da Dependência nos aporta uma constatação. Para além do envio de lucro e da subordinação dentro da Divisão Internacional do Trabalho (DIT), a reprodução da dependência é intrinsecamente ligada aos domínios internos. Assim, pela triste tradição dos europeus de América, os antigos súditos dos reis de Portugal e Espanha, ao ocuparem os postos-chave das instituições pós-coloniais, terminam aprofundando a dependência externa, trocando de metrópole e mantendo a base de economia primária ou de industrialização incompleta. No Brasil ocorre isso, sendo que o Império Luso-brasileiro substitui no século XIX e depois no XX, a potência diante da qual nosso país se subordinava. Primeiro fomos avassalados da Inglaterra e depois dos Estados Unidos, sendo que em termos de sistemas culturais, a França ocupou um espaço privilegiado do período do Reino Unido até os anos ‘30.
A partir da década de 1930, com a fase da Industrialização pela Substituição de Importações (ISI), nossos países entraram na aventura do desenvolvimento tardio, sendo que este era confundido com políticas de modernização baseadas em indústria, urbanização, educação massiva e agricultura de intensidade. Além dos fatores econômicos, o desenvolvimento implicava na construção de um aparelho de Estado que coordenasse o caminho do “progresso”, tomando a natureza (os biomas) como inimiga, e tendo como meta permanente a conquista do território para garantir o domínio do Estado sobre as dimensões do país. A utopia do desenvolvimento, marco do nacionalismo estatista, atravessa o conjunto da América Latina, tendo como expressões máximas a Vargas no Brasil (1930-1945 e depois entre 1951 e 1954), Perón na Argentina (1946-1955, o segundo governo, de 1973 a 1974 realmente não conta como sendo desenvolvimentista) e Lázaro Cárdenas no México (1934-1940).
Este foi o paradigma máximo do “desenvolvimento” – Estado, exército, indústria, fronteiras agrícolas, substituição de importações, burguesia nacional – cujo problema foi aprofundado por brilhantes intelectuais latino-americanos, como Celso Furtado, que destoava da média por reconhecer a categoria de cultura como chave para o futuro coletivo de nosso país. Podemos, sem exageros, aplicar as generalizações vulgares e comparar o mapa político do Brasil pós-golpe branco de 2016 e seus alinhamentos com os poderes externos. Tomando como base a dualidade metrópole-colônia e centro-periferia, vemos alguns projetos conflitivos coexistindo já dentro do período lulista: o entreguismo transnacional; o crescimento liberal-periférico; o desenvolvimento estratégico dentro do capitalismo e os projetos emancipatórios.
Os projetos emancipatórios – cujo eixo central é o controle territorial por comunidades inteiras – não passaram de alguns momentos de enunciação, tendo como auge as tímidas políticas de reconhecimento (como a de cotas). O desenvolvimento estratégico pouco se viu, porque nas cadeias de valor sensível, como por exemplo na escolha do padrão de TV digital, o país em um período do governo Lula (2006-2007), perdeu a oportunidade de ter ciência de ponta e em escala, ao definir por decreto o padrão japonês de alta definição. Já o crescimento foi a via escolhida, sem romper com o modelo liberal-periférico, aprofundando a importância de commodities de exportação (como soja, minério de ferro, petróleo bruto, açúcar de cana, café, carne de frango, resíduos de soja e pastas químicas de madeira) e expandindo a fronteira agrícola para regiões como o oeste baiano, o sul do Piauí e do Maranhão e o norte do Tocantins. Na esteira da comodificação ainda maior de nossa economia, o latifúndio e o agronegócio ousaram entrar em choque com o marco constitucional onde temos – ainda – mais de 40% de nosso território preservado (dando andamento na PEC 215, a chamada PEC do genocídio) e antes modificando o Código Florestal Brasileiro, em dezembro de 2011. Por fim, o modelo de adesão total aos capitais transnacionais, anda lado a lado com o rentismo, sendo que este conviveu com o crescimento liberal-periférico, e agora, na fase pós-golpe, ultrapassa o problema da desindustrialização e aponta para a desnacionalização de todas as cadeias de valor, incluindo a propriedade de terras agriculturáveis.
Fazendo o paralelo de sistemas culturais com as projeções de futuro do país – e por tabela, de nossas estratégicas relações dentro da América Latina – identificamos o entreguismo transnacional com o viralatismo clássico e a adesão aos padrões estadunidenses, anglo-saxões e europeus; já o crescimento liberal-periférico é essencialmente eurocêntrico, mas tenta a criação de um empresariado com pretensões de poder no SI e um Estado que sustente esta expansão; o desenvolvimento em termos estratégicos e sistêmicos implica em disputar poder no SI com padrões semelhantes aos das potências médias, logo, torna-se uma potencial hostilidade à superpotência, mesmo que também reproduza padrões eurocêntricos de sistemas culturais.
O projeto emancipatório é a única saída de longo prazo
Já os projetos emancipatórios são a base do protagonismo popular de um país e Continente que está ao Sul do mundo e tem o perfil indo-afro-latinoamericano. Dentro dos quatro, forma o único conjunto que ultrapassa tanto as teses estadocêntricas como as entreguistas, apontando para o acúmulo de poder popular possível em etapas distintas rumo à uma ruptura da reprodução da colonialidade e, por consequência, do colonialismo interno que se verifica – em distintas escalas – nos três projetos anteriores.
O futuro de nossas sociedades está diretamente vinculado à descolonização interna, a valorização dos saberes e fazeres originários e tradicionais e à proteção das cadeias de valor – como fármacos e sementes nativas – que possam ser desenvolvidas a partir destas comunidades decoloniais por sua própria resistência histórica.
(www.estrategiaeanalise.com.br / blimarocha@gmail.com para E-mail e Facebook)
Resquícios da Casa Grande em tempos de conquista de direitos pela Senzala
Movido por um desejo insaciável de acumulação de riqueza abstrata (BELLUZZO, 2013), o capitalismo vai engendrando novas formas de organização, buscando eliminar quaisquer obstáculos ao seu livre trânsito. No Brasil, por exemplo, as políticas sociais públicas inclusivas, o Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho. Não à toa, em recursos extraordinários, está sendo postulado do STF que “roube a fala” do TST para que este, em suas decisões, não ofereça limites “à livre iniciativa”, como se estivéssemos no século XIX, em tempos da Constituição liberal de 1891.
Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, desnudou o caráter despótico da sociedade escravocrata brasileira. Uma sociedade centrada na vontade e no poder do senhor da Casa-Grande, o qual não conhece o bem e o mal; apenas seus desejos, a tudo e a todos objetivando para realizá-los (BIAVASCHI, 2007).
Em 1888, a Abolição livrou o país de seus inconvenientes. Quanto aos negros, porém, abandonou-os à sorte. Nesse processo, consolidou-se a exploração de uma mão de obra barata, em uma sociedade cujo tecido era costurado pelo signo da desigualdade e da exclusão (OLIVEIRA, 1990). As dificuldades de integração à sociedade eram atribuídas à inferioridade racial: marcas de uma herança que acabaram inscritas na estrutura social, econômica e política deste Brasil de mil e tantas misérias[1]. Assim, a relação entre escravo e senhor apenas formalmente acabou por culminar no homem “livre”, sem que fossem superadas as condições instituintes da dominação e sujeição (BIAVASCHI, 2007).
Ainda hoje há resquícios dessa herança que se expressam, por exemplo, na ausência de uma política eficaz de democratização do acesso à terra e à renda; nas dificuldades enfrentadas para regulamentar a “PEC das domésticas” e a PEC 57A/1999 que permite a expropriação da propriedade quando evidenciada exploração da força de trabalho análoga à de escravo; nas tentativas de flexibilização do conceito de trabalho escravo; nas formas de preconceito e discriminação presentes na formação da sociedade brasileira que, extrapolando a esfera doméstica, volta e meia afloram em diversos setores da sociedade, da política e do Judiciário (BIAVASCHI, 2007).
A partir de 1930, em processo não linear completado pela Constituição de 1988 – que elevou os direitos do trabalho à condição de direitos fundamentais sociais e condicionou a livre iniciativa aos princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho -, mulheres e homens trabalhadores, a ferro e fogo, foram conquistando o status de sujeitos de direitos trabalhistas, passando pela: criação das Juntas de Conciliação e Julgamento, em 1932; CLT, em 1943; regulamentação da Justiça do Trabalho em 1939, instalada em 1941 e integrante do Judiciário em 1946.
Justiça essa incumbida de concretizar um direito novo, profundamente social que, desde sua gênese, buscou compensar a assimetria nas relações de poder entre empregado e empregador, colocando diques à ação trituradora do movimento do capital. Daí porque esse Direito e as instituições aptas a dizê-lo têm sofrido duros golpes em tempos de regresso liberal (BIAVASCHI, 2007).
Nos governos Lula e Dilma, a política de valorização do salário mínimo, os programas sociais como Bolsa Família e outros, os benefícios da Previdência, o Pro-Uni, os sistemas de quotas, enfim, constituíram um patamar civilizatório que melhorou a vida dos menos favorecidos. Mesmo assim, ainda que os dados da distribuição de renda evidenciem melhoras, o Brasil permanece entre as piores posições, como os gráficos a seguir mostram-no em relação a alguns países do mundo e a evolução recente do índice no País.

Ainda que muito se precise andar para completar a caminhada de superação das heranças coloniais, interesses econômicos e financeiros internos e externos ao Brasil interromperam esse processo. O impeachment da Presidente Dilma, sem prova de crime que o justifique, golpeou a democracia brasileira.
As forças que se aglutinam em torno dele deixam a cada dia evidente que, além dos temas relacionados à soberania nacional, a questão que as move é introduzir uma agenda ultraliberal, com potencial altamente desigualador e impacto negativo às políticas inclusivas, justo em tempos em que as desigualdades são acirradas pela ditadura dos mercados financeiros (BIAVASCHI, KREIN, 2016).
A PEC 241, aprovada na Câmara, é estruturante do modelo que buscam implementar, como também: a reforma da Previdência; a prevalência do negociado sobre o legislado; o PLC 30/2015 (PL 4330/04 na Câmara) que libera a terceirização para quaisquer atividades; a flexibilização do conceito de trabalho escravo; a redução da idade para o trabalho, entre outras.
Os que as defendem apostam no aprofundamento do ajuste fiscal, com severo corte de gastos públicos. E ao argumento falacioso da conquista da “modernidade”, maior produtividade e competitividade, clamam pela “quebra” da “rigidez” das normas da CLT de 1943, verticalizadas pela Constituição de 1988. O movimento é de regresso. Nessa dança, a Casa Grande dá o tom e o som.
O programa “Uma Ponte para o Futuro”, do PMDB, fundamenta muitas das propostas do governo Temer. Acaso aprovadas, mais uma vez serão colocados obstáculos à difícil caminhada superadora das heranças coloniais rumo a uma nação moderna e industrializada, hoje integrante do G20 e dos Brics. Sua não adoção pela então Presidente – segundo o Presidente Temer referiu nos EUA em encontro com empresários – teria sido uma das razões do impeachment.
Daí causarem perplexidade as declarações do Ministro do STF, Gilmar Mendes, incumbido de zelar pela Constituição, sobre Bolsa Família, afirmando ser “compra de voto”, e sobre a Justiça do Trabalho. Em liminar, que se confia não terá chancela da Corte, suspendeu o andamento das ações sobre ultra-atividade de normas coletivas, forte na Súmula 277 do TST, assinalando que essa interpretação atende a uma “lógica voltada a beneficiar apenas os trabalhadores”, cogitando de “fraude hermenêutica”, “jurisprudência sentimental”.
Em São Paulo, vaticinou: “Tenho a impressão de que houve uma radicalização da jurisprudência, no sentido de uma hiperproteção do trabalhador, tratando-o quase como um sujeito dependente de tutela”, afirmando que o Brasil é “desenvolvido industrialmente” com “sindicatos fortes e autônomos” e, inclusive, um Presidente “vindo da classe trabalhadora”.[2]
Em um país de profundas desigualdades, com desemprego novamente alarmante e formas de contratação burladas que retiram da proteção social milhares de brasileiros, tais afirmações privilegiam um dos polos da relação, o capital. Opção que, contraposta ao princípio constitucional do valor social do trabalho que fundamenta a ordem social e a econômica (artigos 1º, IV e 170), acirra as inseguranças, fomenta a violência e traz sérias dificuldades à construção de uma sociedade civilizada e democrática. Sonho do qual a humanidade ainda não acordou. Muito menos o Brasil.
Publicado originalmente no site Brasil Debates.
Referências bibliográficas
BELLUZZO, Luiz Gonzaga. O capital e suas metamorfoses. São Paulo: UNESP, 2013.
BIAVASCHI, Magda Barros. O direito do trabalho no Brasil – 1930-1942. São Paulo: LTr, 2007;
BIAVASCHI, Magda Barros; KREIN, José Dari. O retorno ao passado II: o canto da sereia e os desencantos na nova ordem. In: RAMOS, Gustavo Teixeira; MELO FILHO, Hugo Cavalcanti, LOGUERCIO, José Eymard, RAMOS FILHO, Wilson (Orgs.). A Classe trabalhadora e a resistência ao golpe de 2016. Baurú: Editorial Praxis, 2016.
BARBOSA DE OLIVEIRA, Carlos Alonso; HENRIQUES, Wilnês. Cadernos do CESIT. Texto para discussão nº. 03. Determinantes da Pobreza no Brasil. Campinas, julho de 1990
PIKETTY, Thomas. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
PMDB. Uma Ponte para o Futuro. São Paulo: Fundação Ulisses Guimarães, 2015. In. http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf. Acessado em 25 de abril de 2016.
Nota
[1] Em referência a Guimarães Rosa, Grande Sertão:Veredas.
[2] Disponível em: http://www.valor.com.br/politica/4752055/gilmar-mendes-acusa-justica-trabalhista-de-hiperprotecao.
Magda Barros Biavaschi – Desembargadora aposentada do TRT4, pós-doutora em Economia do Trabalho pelo IE/UNICAMP e pesquisadora no CESIT/IE/UNICAMP.
Miguel Soldatelli Rossetto – Vice-governador do Rio Grande do Sul (1999/2003) e ministro do Desenvolvimento Agrário e do Trabalho e Emprego, respectivamente, nos governos dos presidentes Lula e Dilma Rousseff.
A volta do capitão Ahab e a caça aos países-baleia ou A III Guerra Fria chega ao Brasil no golpe
Walter Morales Aragão – Professor de Filosofia
Há uma teoria na História Contemporânea a qual afirma que as bombas atômicas lançadas sobre o Japão serviriam mais para conter o avanço soviético sobre as ilhas do que para derrotar o combalido império nipônico de então (Vizentini, P. Da guerra fria à crise. Ed. da UFRGS). Assim, impediram a divisão em um Japão do sul e um do norte, de modo que o Pacífico tornou-se um lago do império estadunidense. Logo, foram mais o primeiro tiro da I Guerra Fria do que o último da II Guerra Mundial. Processos similares verificaram-se posteriormente e, hipoteticamente, agora em 2016.
Nos anos 80 e 90 do século XX, por exemplo, as chamadas Décadas Perdidas, viu-se inicialmente um avanço das lutas de descolonização, sobretudo na África, e de combate ao neocolonialismo, principalmente na América Central. Ambos os processo contavam com respaldo da URSS e de seu bloco de aliados. O neoliberalismo foi, então, um forte contra-ataque desenvolvido pelos países centrais do sistema capitalista mundial. Daí a plausibilidade de falar-se numa II Guerra Fria, após a distensão dos anos 60.
Com a auto-dissolução da URSS nos anos 90, abriu-se uma perspectiva que apontava para um largo período de domínio unipolar dos EUA. Mas já a primeira década do séc. XXI destacou um conjunto de países com grandes territórios, população e recursos naturais que passaram a exercitar um certo “retorno ao Estado”, destoante da adesão total aos dogmas neoliberais. Eram os denominados “países-baleia”: a China, a Índia, uma Rússia em rápida recuperação, o Brasil e a África do Sul. Os quais passaram a ser referidos pelo acrônimo BRICS e estabeleceram um sistema de consultas mútuas e alguma concertação política e econômica.
A continuidade e o aprofundamento da crise mundial econômica, agravada pela energética e pela ecológica, aumentaram a disputa por recursos básicos, naturais e agrícolas, realçando a importância da alternativa de um mundo multi-polar apontada pelos BRICS. Um novo esforço de contenção militar e disputa por recursos e influência passa a ser desenvolvido pelos EUA e seus aliados do centro do sistema capitalista mundial, principalmente sobre a Rússia no Oriente Médio, na Ucrânia e no Leste europeu e sobre a China no Mar do Sul da China e na disputa de influência na África. Conjunto de fenômenos que configuram algo como uma III Guerra Fria.
Nesta síndrome de capitão Ahab, ou III Guerra Fria, em que é aberta uma caçada aos recursos dos países-baleia, é possível observar-se uma sinergia notável com acontecimentos na América do Sul, a exemplo dos golpes brancos em Honduras, no Paraguai e no Brasil e a reativação da IV Frota estadunidense para operações no Atlântico sul. Chossudovski e outros postulam, mais gravemente, a existência de indícios dos preâmbulos de uma III Guerra Mundial.
A ver, portanto, o final deste romance histórico com consequências práticas estruturais para a atualidade e o futuro imediato. Algo entre novas Cartagos que precisam ser destruídas pelo império dominante ou para Mobi Dick e o afundamento de Ahab enrolado em suas próprias cordas.
Alguns pontos à sombra, autocrítica e alternativas
Guto Leite – Professor de Literatura Brasileira (UFRGS), poeta e compositor, parte do coletivo Frente de Professores da Letras em Defesa da Democracia
De início esclareço o leitor que não vou tentar repetir as tão frequentes e imprescindíveis análises que vêm sendo feitas por historiadores, jornalistas, cientistas sociais, filósofos etc.[1]. Sou somente um professor de literatura e conto com a segurança desse lugar, recusando voos mais altos. Pretendo, contudo, indicar alguns aspectos da atual conjuntura que não têm surgido nos textos que leio ou novas facetas de aspectos comumente abordados, no intuito de tentar construir uma visão mais complexa do golpe de Estado, refletir um pouco sobre nossa posição e responsabilidade diante do ocorrido, como pessoas que pensam o processo, e aventar algumas saídas para recuperarmos as bases mínimas de um debate democrático.
Vale dizer, primeiramente, que mais uma vez, como no golpe de 64[2], a burguesia brasileira preferiu o conforto subordinado ao capital internacional aos riscos de uma disputa por maior autonomia decorrente de arranjo interno. Isso torna evidente que são muito estreitas as possibilidades de conciliação entre classes e do modo como foi feito até hoje no país, notadamente a partir do governo Lula, ficamos à mercê de uma reviravolta brutal que não só nos tome os direitos obtidos, mas avance no aumento da assimetria. CLT, Previdência, SUS, Enem; está tudo em jogo. O combate à corrupção e uma reforma política efetiva são alguns dos instrumentos que poderiam agir nessas relações em favor dos mais oprimidos, no entanto a elite brasileira está sempre atenta na manutenção de seus privilégios. Fica claro também que Dilma não errou mais ou menos do que outros presidentes, ou mais paradoxal do que isso, seu erro político foi certa intransigência a aspectos fisiológicos do Estado brasileiro. Em síntese: seu erro foi seu acerto, ou vice-versa. Não tão intransigente quanto a outras conciliações, como em relação ao agronegócio e às comunidades indígenas ao lucro dos bancos, ao defender autonomia do Ministério Público – afinal, ela não deve, nem Teme – ou bloquear as influências de Eduardo Cunha em Furnas, ela se tornou elemento estranho ao universo político nacional, cercando-se de aliados que não lhe bastaram no processo de impedimento. Que golpes de Estado passem por dentro da constituição cordial da República brasileira, também parece evidente na observação de quantos governos eleitos conseguiram completar seus mandatos. Fica, portanto, a dúvida se estamos falando do fim de um projeto de esquerda ou do fim de um projeto de República, já que alianças pragmáticas, sempre mais fortes do que oposições, demonstraram que mais cedo ou mais tarde fazem a serpente quebrar o ovo.
Diferente de 1964, no entanto, dessa vez o conluio externo-interno contava com a máquina da grande mídia para se impor, aliás, boa parte dela, formada justamente quando da flagrante obstrução autoritária anterior. Essa terceira perna midiática foi fundamental porque construía consensos e fazia querer a derrubada da presidenta, como publicidade política, ou simplesmente propaganda, aos moldes do que houve na Rússia, na Alemanha ou nos Estados Unidos em quadros semelhantes. Milhares de pobres diabos canarinhos foram às ruas achando que queriam estar ali e que falavam por si – uma parte desses experimentam agora aquela sensação conhecida de propaganda enganosa, constrangendo-se ou silenciando suas participações. Cabe acrescentar que o papel da mídia no golpe está ligado a, pelo menos, dois pontos importantes do Brasil pós-1985 e, também, do capitalismo, razoavelmente a partir do mesmo marco. No primeiro caso, parte da conta precisa ser paga pelo regime civil-empresarial-militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, provocando transformações importantes no Ensino Básico, como também na composição geral do imaginário do brasileiro – houve tempo que em certos horários a Globo contava com Ibope de 100%![3]. Em geral, essa geração que hoje tem entre 20 e 50 anos, aproximadamente, portanto, formada entre a Reforma Educacional de 1971 e o Governo Fernando Henrique Cardoso, é pouco educada politicamente, nacionalista, familista e religiosa, facilmente influenciável por discursos que mobilizem esses valores, que se esquivem da realidade material para manipuláveis abstrações. No segundo caso, parte da ilusão contemporânea constrói-se por certa liberdade absoluta do sujeito diante do mercado, visto que esse mercado, ultrarramificado, se movimenta com bastante facilidade para atender às mais variadas demandas[4]. Assim, não basta dizer o que deve ser feito, mas é necessário que o consumidor, também das notícias, acredite ser autor e protagonista daquela ideia. Creio não ser necessário mergulhar nas relações entre narcisismo, superficialidade, espetáculo, fetichismo, falso gozo e angústia permanente para analisar os fogos de artifício ouvidos quando da grotesca sessão do Congresso de votação do impeachment[5].
Discriminados esses nós, avancemos um pouco pela dimensão internacional da intervenção em nossa democracia. Não hesito em dizer que há um duplo despiste sobre a palavra “impeachment”. Evidentemente não é impeachment. Não houve crime de responsabilidade e, se houve algum eventual equívoco da presidenta, ele não justifica a perda de mandato. Só canalhas, ingênuos ou ineptos defendem a tese de impedimento. Os senadores “julgaram” pela volta da impunidade, com o fim da Lava-Jato, e/ou por sinecuras para si ou para os seus, apoios eleitorais etc. Indo adiante, defendo, entretanto, que também a palavra “golpe” não é suficiente. Trata-se de um ataque do capital internacional, centrado nos EUA, às nossas riquezas, nomeadamente: Pré-sal, Aquífero Guarani, Amazônia, mercado consumidor, entre outros. Por isso, tampouco é golpe, mas “guerra”. A palavra mais precisa é guerra. Estamos assistindo à nova maneira de se fazer guerra a uma nação, modus operandi que já tinha sido testado com sucesso em nações menores – desestabilização, cooptação de agentes públicos do executivo, do legislativo e do judiciário, mudança conveniente de governo; tudo absolutamente “dentro dos ritos legais”. Se essa atualização do software da violência resulta de aumento de tecnologia ou de perda de uma hegemonia global clara por parte dos Estados Unidos, é um tanto cedo pra dizer. Mas vale a reflexão, novamente, de Chomsky, nos alertando de que os Estados podem conseguir impedir a ação das instituições em que resistem os modelos de servidão e escravidão do passado, as grandes corporações[6]. A metáfora do linguista é intrigante: de certa maneira o Estado nacional é uma jaula que nos protege da selva das corporações. Com o êxito do ataque, seremos explorados para a manutenção dos privilégios dos mais ricos em escala global – sendo um “país classe média”, digamos –, e internamente os mais pobres serão explorados primeiro para a manutenção dos privilégios da elite, mas, acreditem, também chegará a hora a classe média manobrada.
Como citei no parágrafo anterior, já toco no assunto: é nítido que a justiça brasileira – juízes, advogados e promotores –, da porta da cadeia ao STF, está aparelhada, sem nem mesmo precisarmos aludir ao treinamento de juízes e promotores nos EUA há alguns anos. Não é preciso que todos ajam tendenciosa ou politicamente. Aqueles que o fazem são numerosos o bastante para afirmarmos, angustiados, que atualmente não há justiça no Brasil. Pode parecer que não, mas a Constituição é algo bastante tênue e deve contar com uma confiança coletiva de que ela está sendo respeitada. Se vazam escutas telefônicas, fazem conduções coercitivas arbitrárias, manipulam depoimentos, alargam ou encurtam tempos de prisão conforme interesses específicos, que crimes realmente não podem ser praticados? Ou então: se há tamanha e notória impunidade de políticos e juízes, por que eu devo ser o único a seguir a lei? Não temos histórico de guerra civil – como vaticinou o Senador Requião há alguns dias –, mas a instabilidade que um regime de exceção provoca não é de se desprezar.
Por fim, o último aspecto que eu gostaria de comentar antes de algumas conclusões é que a parte progressista da comunidade internacional está atenta e preocupada com a ruptura na democracia brasileira. Se é possível essa intervenção no Brasil, com que nação não seria possível fazer o mesmo? Ou uma segunda pergunta: em que medida um ataque à democracia brasileira – a quarta maior do mundo em número de eleitores (oxalá tivéssemos o mesmo número de leitores!) – não coloca em risco a viabilidade da democracia no capitalismo moderno, isto é, desvela certa incongruência explícita entre capitalismo e democracia plena: não é desejável formar cidadãos emancipados numa sociedade que trabalha a partir de produtores e consumidores, afirmou Adorno há um pouco mais de quarenta anos; fazer pensar e fazer comprar seguem lógicas contraditórias. Complementarmente, com a operação do capital nacional e internacional na política, começa a se desenhar a sensação de que é mais importante meu poder de compra do que meu poder de voto, ou melhor, de que ao comprar é que estou realmente votando, estou votando nas marcas e empresas, já que governantes podem ser substituídos caso contrariem interesses do mundo do capital. A se verificar qual será o tamanho dessa perturbação no já turbulento sistema capitalista contemporâneo[7].
Espero ter conseguido apontar que, em certo sentido, não havia nada que pudéssemos, nós, ter feito, para evitar o colapso que se deu – alguém precisa bancar a crise sistêmica do final dos anos 2000 afinal! Mesmo para o governo Lula, a janela de realização era bastante exígua. Conheço alguns bastidores que indicam concessões importantes feitas pelo ex-presidente antes mesmo de seu primeiro mandato e daí dependeria de Lula ter efetuado uma guinada mais brusca e cirúrgica, amarrando firme a elite no financiamento do bem-estar social brasileiro, algo difícil de se exigir a posteriori. Os dois mandatos de Lula avançaram bastante dentro do modelo de que dispunham, ponto. Talvez, mas seria difícil, pudessem alterar aspectos estruturais desse modelo, ponto. Mas isso não significa que não haveria um ataque, talvez até mais violento, às riquezas brasileiras – desde o começo dos anos 2000 já sabíamos que grandes reservas deste século estavam por aqui. Em 2010, o governo Dilma herda todos esses imbróglios e sem contar com os quadros do PT para apoiá-la integralmente, como era o caso do Lula. Não tão amalucadamente, creio que Dilma tenha começado a perder a presidência antes mesmo do primeiro mandato, mas quando já se sabia de sua candidatura, ali por 2009, pela retidão, pela impossibilidade de fazer conchavos, pela intransigência à corrupção. Isolada, torna-se sacrificável para que se “delimite onde está”, como disse o Senador Jucá, em gravação.
Ao mesmo tempo, não dá para negar que o espelho em que não quisemos nos ver – televisionado desde o final de 2014, em sessões da Câmara, Senado, STF – é resultado de um abandono da cena política de estadistas preparados. Houve debandada de intelectuais, sindicalistas incorruptíveis, líderes populares etc. da arena democrática (sinal de esgotamento desse modelo?). Isso somado ao projeto de extermínio de lideranças à esquerda é que faz Eduardo Cunha ser considero um “gênio” político. Suas habilidades perversas são inquestionáveis, mas não seria o mesmo quadro com políticos da estatura de Brizola ou Ulysses Guimarães ainda em atividade. Se o que passou nos canais públicos é um inferno, o inferno somos nós, também em nosso recolhimento para outras áreas do debate público, como a universidade, os jornais etc.. Creio que seja imperativo retomarmos esses espaços de representação. Reclamar da qualidade de nossos políticos é antes reclamar de nossas escolhas.
Para além disso, me parece, cabe continuar fazendo política noutros espaços sim. Dentro dos limites éticos da profissão de cada um, abrir sempre a porta aos oprimidos, fechar sempre a porta aos opressores. Não é mais tempo de isonomia. Não há como haver um governo golpisto como o de Temer – entendo que pmdbista não quer ser chamado de golpista pelo “a” final, seguindo decorativo da legítima presidenta – com uma base plenamente libertária, democrática. E não se enganem: Temer é só o boneco vaidoso de interesses maiores, como o da grande mídia brasileira, do capital nacional, do capital internacional, como procurei demonstrar. Ser radical e revolucionário cotidianamente, fechando a porta para os de cima, abrindo a porta para os de baixo, desvelando as injustiças e assimetrias, promovendo cultura e educação, ocupando as ruas, as plenárias e os plenários, praticando a boa e velha desobediência civil. Estou com Guilherme Boulos, o golpe está apenas começando, e a luta também. Vamos à luta!
[1] Dentre várias boas leituras, sugiro duas recentes: “O golpe de Estado de 2016 no Brasil”, do cientista social Michael Löwy, e uma entrevista ao filósofo Anselm Jappe; ambas no blog da Boitempo.
[2] Acompanho a análise de Roberto Schwarz em “Cultura e política 1964-69”.
[3] Vale conferir o documentário Muito além do Cidadão Kane, de Simon Hartog.
[4] Sugiro o documentário “Requiem for the American Drem”, pela excelente síntese de nossos tempos feita por Noam Chomsky.
[5] Mas recomendo sempre as reflexões do psicanalista da USP, Christian Dunker, a respeito da composição do Brasil contemporâneo, especialmente em Mal-estar, sofrimento e sintoma.
[6] Também recomendo as relações aventadas por Paulo Arantes entre o modelo de servidão nazista dos campos de concentração e certas práticas neoliberais em “Sale boulot: uma janela sobre o mais colossal trabalho sujo da história”.
[7] Recomendo a leitura do artigo “Como vai acabar o capitalismo?”, do sociólogo Wolfgang Streeck, ou do livro 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono, do historiador da arte Jonathan Crary.
A sessão final do golpe com nome de impeachment no Senado – epílogo da Operação Café Filho
Bruno Lima Rocha
No final da manhã e início da tarde de quarta feira, 31 de agosto de 2016, o Brasil assistiu pela televisão aberta e por assinatura, a destituição da presidente Dilma Rousseff, com pouco mais de um ano e meio decorridos de seu segundo mandato. A traição teve como um dos pivôs o próprio vice, Michel Temer, eleito e reeleito junto à Dilma, com a bênção de Lula e da direção nacional do PT. Neste breve texto, trago algumas evidências, categorias e debates os quais entendo como urgentemente necessários.
Impeachment Consumado
Por 61 votos a favor e 20 contrários no Senado, o governo de Dilma Rousseff em seu segundo mandato foi encerrado. Assim, está consumada a dupla traição. A primeira derruba um governo eleito; a segunda traição é o preço que a ex-esquerda paga por confiar em oligarcas. Os entreguistas viralatas comemoram.
No momento da defesa da preservação dos direitos políticos de Dilma Rousseff, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) esteve milagrosamente certo na analogia. Os golpistas parlamentares de 1964 comemoram. Auro de Moura Andrade sorri no inferno. Ranieri Mazzilli o cumprimenta ao lado de Lincoln Gordon (embaixador dos EUA no Brasil) e Castello Branco (marechal escolhido por Washington para assumir o cargo de presidente no Brasil). E, como em 1964, o povo não foi convocado a resistir. Em 1964, porque o populismo sempre rói a corda. Em 2016, porque o lulismo sequer consegue ou quer ser populista.
Discursando a favor da cassação dos direitos políticos de Dilma, a senadora Ana Amélia (PP-RS) deu o tom da distopia liberal conservadora: legalidade institucional para sangrar os direitos coletivos; esvaziar o exercício do Poder Executivo para que a maioria, apelando sempre para os intermediários profissionais. No “salve-se quem puder”, os grupos de interesses “prudentemente” devem ir tentando alguma vantagem mínima através dos arranjos institucionais dos Estados pós-coloniais.
No último ato, em uma manobra com o aval de Renan Calheiros, Dilma fica habilitada e preserva seus direitos políticos
Estamos diante de uma novidade. A cassação de direitos não obteve maioria absoluta, tendo 42 votos favoráveis, 36 contrários e três abstenções. Logo, não obteve a maioria absoluta de dois terços no Senado, sendo preservadas as possibilidades de exercício de funções públicas para a presidente deposta, mas não cassada. Logo, está instaurado um período de absoluta instabilidade política no jogo eleitoral-burguês brasileiro. Dilma Rousseff pode ser eleita para cargos públicos – há questão de compreensão e interpretação jurídica – e pode estar no páreo das disputas eleitorais abertas, além de poder operar como puxadora de votos em 2018. O lulismo perde, mas não perde tudo.
Com esta manobra, Michel Temer acaba de perder o governo de fato, ao menos em sua totalidade. Renan Calheiros tira do interino golpista a condição de governar, deixando o vice-presidente usurpador entregue ao PSDB. Esta condição de “governabilidade” dura até o ponto em que os tucanos devorarem suas plumas visando à eleição de 2018.
Não foi por falta de aviso: o epílogo da Operação Café Filho e a melancolia de centro-esquerda
A presidente deposta Dilma Rousseff foi “traída” por um oligarca, Michel Temer com origens no grupo político de Adhemar de Barros, ex-governador de São Paulo e golpista em 1964. Considerando sua trajetória no nacionalismo varguista, Dilma deveria saber onde estava se metendo. Consumada a farsa da farsa, a vitória da Operação Café Filho.
Dilma Rousseff se despede de vermelho; momento melancólico onde a ex-esquerda é destituída do Poder Executivo sem sequer arriscar uma plataforma de governo com o povo no protagonismo.
A aliança de golpistas pela via parlamentar com suspeitos da Operação Lava Jato veio através do rito e manto da “legalidade”, pela farsa jurídica e impeachment sem mérito. O pior da tradição do país dos bacharéis termina com as ilusões “legalistas” da centro-esquerda, ou da ex-esquerda.
Uma parte da análise da presidente destituída está correta: existe uma dimensão substantiva do Golpe, na agenda regressiva de direitos e um avanço repressivo sob um véu de “legalidade”.
Nada veio por acaso, incluindo a baixa capacidade de resposta. Os lulistas e afins rasgaram o manual da política e pactuaram com quem não presta sem fiar o pactuado com os oligarcas através de uma espada afiada pronta para ser desembainhada.
Enfim, se levaram um ditador positivista (Getúlio Vargas) ao suicídio em 1954, porque não destituiriam uma keynesiana de centro (Dilma Rousseff) para um cadafalso semelhante em 2016?! Apenas a criminosa ilusão e inocência política poderiam fazer crer o contrário.
Aplicando uma categorização do momento vivido
Categorizando: trata-se de uma disputa intra-elites, quando uma elite dirigente está sendo destituída do poder burguês – embora juridicamente legítimo – por um novo arranjo de posicionamento das elites políticas majoritárias e suas respectivas representações de classe dominante. O povo está desorganizado desde 2013, quando a rebelião popular não resultou em um projeto de maioria apontando saídas para além do jogo das urnas burguesas.
O governo que está sendo derrubado não é de esquerda, sequer é de centro-esquerda ou populista e tem no máximo, traços de nacionalismo autônomo. Com sua destituição, o modelo liberal-periférico vai se aprofundar após a posse definitiva dos interinos golpistas, reposicionando o Brasil no Sistema Internacional, aumentando o grau de subserviência e encurtando as margens de manobra.
No cenário doméstico, a meta estratégica de quem está golpeando e virando a mesa – por aplicar um impeachment sem mérito evidente – é destravar a liberdade absoluta de capital, transnacional de preferência, associado, nacional, diminuindo tanto o papel do aparelho de Estado na organização do capitalismo interno como também nas perdas de regulação e proteção sociais, trabalhistas e nos direitos de 4a geração.
Concluindo, consumado o golpe semi-parlamentarista, está aberto o caminho para uma ampla revisão constitucional no sentido à direita, aplicando uma agenda regressiva, de perda de condições de vida, retomando a restauração (neo)liberal da década de ’90 no século – a que foi ainda mais perdida do que a de ’80.
O debate estratégico que cabe fazer. Qual ‘lugar a ser construído’ as esquerdas vão escolher? Qual o ‘mal menor’ a centro-esquerda escolhe?
Diante desta melancólica derrota política e com a traição da traição, entendo que é necessário entrar em temas de fundo, em debates de tipo estratégico. De forma direta, cabe perguntar. Qual utopia a centro esquerda latino-americana escolhe ou escolherá a partir de agora? Vai seguir na aposta infundada no “aprimoramento das instituições” e esperar a cada 20 ou 25 anos um novo ciclo de virada de mesa por dentro do poder burguês compartilhado e sob a influência direta e indireta do Império?
Ou vai tentar ajudar criar um poder do povo organizado que, mesmo que convivendo em democracia indireta e representativa, vai estar de guarda alta e permanente para não deixar a mesa virar de forma tão simples retirando direitos conquistados?
Vale entender um pouco de estratégia para fundamentar a teoria e as escolhas políticas: “O objetivo finalista subordina o método segundo suas condicionalidades”, correto? Esse conceito operacional é de Golbery do Couto e Silva. Seria bom aprender como a direita se move para poder contrapor estes movimentos. No novo ciclo de golpes – agora brancos – na América Latina, temos Venezuela, Honduras, Paraguai, tentativas na Bolívia e Equador e Brasil. E como fica a resistência aos golpes?
Até quando os partidos eleitorais vão operar estritamente contando com o aprimoramento das instituições pós-coloniais ao invés de criar e ampliar instituições sociais decoloniais e populares?
2016 ou O golpe de mil faces – alguns ângulos de abordagem e princípios teóricos
Walter Morales Aragão – Prof. universitário, doutor em planejamento urbano e regional
“Um alaúde, uma telenovela, um trem.
Uma arara. É ao mesmo tempo bela e
banguela a Guanabara.”
VELOSO, Caetano. In: O estrangeiro.
1. Abordagem a partir de uma teoria das elites. Variantes no saber proletário: “brasa pouca, minha sardinha primeiro”; “a corda rebenta no lado mais fraco”; “quem pode mais, chora menos”.
Brasil, século XXI. Um dos chamados “países-baleia”, os de grande população, território e recursos. Quinta maior população e quinto maior território do mundo. Uma das dez maiores economias. Detentor da maior extensão de área agricultável do planeta.
Cenário: 1ª agudização recente da crise capitalista iniciada nos anos 60 do século XX – no ano de 2007, quando dois milhões de estadunidenses perdem suas casas no estouro da bolha especulativa com hipotecas e, em poucas semanas, os bancos centrais europeus e dos EUA se obrigam a injetar cerca de quatro trilhões de dólares de dinheiro público para resgatar o mercado falido. Corrida a ativos seguros: terras agrícolas e estoques alimentares disparam, exportações de grãos são proibidas em diversos países – é a Guerra da Comida, de 2008, estopim das revoltas iniciais da Primavera Árabe. Agitações populares contra a carestia no Paquistão, Vietnã, Egito, Haiti, Argélia e Madagascar. Nesta ilha a Hiunday adquire dois milhões de hectares para produção de biocombustíveis. Bancos alemães e companhias chinesas compram logo 80 milhões de hectares, obrigando Uruguai, Bolívia, Paraguai e países africanos a legislar sobre aquisições por estrangeiros.
O governo brasileiro, nucleado no PT, protege o país e a população da fúria externa. Ativa um pacote de medidas anti-ciclícas, usando reservas e órgãos estatais – se fossem privados seriam inúteis, em princípio, para tal finalidade. A AGU e o Incra reforçam o controle sobre aquisição de terras por estrangeiros. A Petrobrás segura os preços do gás de cozinha e dos combustíveis por quase quatro anos. São mantidos os programas de renda mínima, mantendo a demanda interna aquecida. Os agricultores familiares e assentamentos ganham estímulo para a produção de alimentos ao mercado interno. Os efeitos deste pico da crise são atenuados.
Cenário: 2ª agudização recente da crise capitalista – A guerra econômica a partir de 2011. Bombardeios ilegais da OTAN na Líbia, que possuía o melhor padrão de vida da África, com a expulsão de firmas chinesas e brasileiras. Os EUA intervém na economia mundial, rebaixando artificialmente o preço do petróleo. Ampliam a produção interna, flexibilizando a legislação ambiental. Exigem super-produções de suas aliadas monarquias absolutistas do Golfo – Arábia Saudita, Emirados A. Unidos, Kuwait – para prejudicar o Irã, a Venezuela e a Rússia. Promovem grandes manobras militares na Europa e no Mar do Sul da China, até às vésperas da Olimpíada do Rio, com vistas a obrigar Rússia e China a aumentar os gastos com defesa. Golpe “colorido” na Ucrânia – inclusive o Brasil perdeu aí uma parceria em foguete de satélite com a Ucrânia, num prejuízo de meio bilhão de reais. Diversas sanções econômicas sob variados pretextos: cartões Visa e Master foram proibidos aos russos depois do plebiscito e da reintegração da Criméia.
Manobra radical no Brasil atual: Pesquisa Datafolha do início de 2016 dispara o alarme das elites dominantes: Lula continua favorito a 2018, mesmo sob todo o massacre midiático-jurídico seletivo. EUA espionam Dilma, Petrobras e outras instâncias no Brasil. Repassam informações a interlocutores seus de diversos órgãos no Brasil, numa grande entrega de provas ilícitas. Já no governo Clinton a CIA espionara concorrentes europeus e brasileiros em licitações de radares: o capitalismo monopolista global odeia concorrência – isto fica para discursos e botecos periféricos. A grande burguesia e o rentismo decidem rasgar a CF 1988 em seus princípios de soberania popular através do cidadão-eleitor. Apegam-se, descabidamente, a itens secundários formalmente previstos. Seria como decidir pela invasão agora da Venezuela ou do Uruguai, alegando que a declaração de guerra pelo Senado está prevista na CF.
Do ângulo das elites dominantes o golpe de 2016 é um gesto heróico de salvação do capitalismo nativo, recolocando em seu “devido lugar” os trabalhadores assalariados e suas parcelas da população aliadas – indígenas, populações tradicionais, agricultores familiares – os quais, irracionalmente ao ver dos dominantes, encontravam-se praticando uma cidadania inaceitável. Analogia clássica: o mito grego do “Leito de Procusto” – assaltante que ajustava suas vítimas a uma cama de ferro, cortando-as ou espichando-as. Adequadamente parte do ciclo do herói Teseu, mais preocupado com o labirinto da queda dos lucros do que com o Minotauro popular.
2. Ângulo soviético: se o impedimento da presidente eleita confirmar-se, de um ângulo etapista histórico o Brasil terá um passo positivo – as massas ficarão mais críticas à validade da democracia burguesa. O golpe dirá mais sobre a ditadura de classe instalada na economia e no Estado brasileiro do que qualquer curso de formação política. Talvez haja festa na Coreia do Norte: “Não dissemos a vocês que eleições sob o capitalismo são um teatro ruim, que rasgam a bel-prazer? Ditadura de classe por ditadura de classe, busquem uma comprometida com a maioria da sociedade. Será uma democracia mais realista do que esta aí.”
3. Tempos nebulosos: Karl Marx, no artigo ” O 18 brumário de Luís Bonaparte”, estuda o golpe de Estado na França do século XIX, quando o presidente (não o vice, como aqui e agora) rasgou a constituição republicana e proclamou-se imperador. No texto, satiriza o pânico do pequeno burguês típico ante as mobilizações sociais e as manobras parlamentares aparentemente incompreensíveis. Ansiedade que terminaria clamando, num apelo sintético e patético, pelo descarte da frágil democracia liberal em troca de sossego (para os negócios): “Mais vale um fim com terror, do que este terror sem fim!”.
Veremos que novas estações produzirá este nosso 2016 brumário.
Um balanço crítico e político das Olimpíadas do Rio
Bruno Lima Rocha – Professor de ciência política e de relações internacionais
Terminados os Jogos Olímpicos do Rio em 2016, entendo que é chegado o momento de realizar uma série de balanços e posicionamentos após o grande evento. Para este texto, aporto duas considerações, uma de ordem territorial, observando o ordenamento da mancha urbana, suburbana e favelizada do Rio de Janeiro e o quanto a realização de eventos similares não modificou a situação de violência policial, abandono de populações inteiras e a prática de racismo institucionalizado, disfarçado de “caos urbano”. Na sequência, faço um debate a respeito do modelo de desenvolvimento do esporte brasileiro visando o desempenho nos Jogos do Rio. A ausência de uma institucionalização do esporte de base sempre foi a mais visível de nossas características, e como tal, infelizmente, continua sendo.
Os Jogos Olímpicos da distopia midiática e o “caos urbano” no Rio
Vivemos as Olimpíadas no auge de um anticlímax político, econômico e social. É como que ao fim de uma realidade fabricada, despertássemos todos diante do anunciado pesadelo da quebra do pacto de classes. Mais do mesmo, os conglomerados econômico-midiáticos que venderam a ilusão, agora vendem a resiliência, ao invés da realidade. Lembremos.
Quando no longínquo ano de 2007, o Rio de Janeiro sediou os Jogos Panamericanos, o país vivia um ambiente político diferente. O estado fluminense era governado pelo ex-tucano Sérgio Cabral Filho, homem vinculado a grupos empresariais arrivistas no período lulista, como a Delta Engenharia e o Grupo X, de Eike Batista. Como base da aliança de governo de Cabral Filho, a presença do PT local e a pavimentação da aliança com a legenda de Michel Temer. As realizações do Rio vieram acompanhadas do lado mais bárbaro e sinistro do Estado pós-colonial brasileiro. Nos meses anteriores ao Pan, que quebrara recordes de superfaturamento nas obras e contratos emergenciais, o número de mortos pela ação violenta da Polícia Militar ultrapassara os do Iraque em plena guerra civil. Uma parte razoável destes dados macabros à época podem ser conferidos no domínio Rio Body Count 2 (http://riobodycount2.blogspot.com.br/).
Em outubro de 2009, se verificarmos as imagens registradas na 121ª sessão do Comitê Olímpico Internacional, veremos discursos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a presença do prefeito Eduardo Paes (o mesmo, já no PMDB), do governador Sérgio Cabral Filho, à época presidente do Banco Central e hoje ministro da Fazenda do governo interino-golpista Henrique Meirelles, e do então ministro do Esporte, Orlando Silva, hoje deputado federal pelo PC do B de São Paulo. Esta representação da aliança entre a centro-esquerda, oligarcas e financistas marcou o segundo mandato de Lula e a eleição da sucessora do ex-sindicalista, em outubro de 2010.
Logo após a primeira eleição de Dilma e Temer, o país assistiu a um espetáculo midiático chamado “A Guerra do Rio”, com as câmaras de TV projetando a ocupação do Complexo do Alemão, iniciando com a fuga de traficantes da Vila Cruzeiro, transmitida ao vivo pelas redes de TV líderes (neste link é possível compreender o momento: https://www.youtube.com/watch?v=PDPMPesOaQg). O impacto de ver centenas de homens armados de forma ilegal, em plena luz do dia, dá uma impressão de excepcionalidade. Longe disso, pois se trata simplesmente do cotidiano vivido por mais de três milhões de pessoas apenas da Região Metropolitana do Rio. A “exceção” não é o fato, e sim a transmissão.
Com o acionar coordenado de mídia, tecnocratas do mundo jurídico-policial e agências de marketing digital a serviço dos ultra liberais, a frágil aliança de classes entre ex-reformistas, oligarcas, industriais e financistas foi rompida. Junto desta, podem estar indo para o ralo, tanto a diminuta soberania popular, assim como a maioria de nossos direitos trabalhistas e sociais. Eis as Olimpíadas da distopia.
Apesar do bom desempenho, ainda não temos um modelo de desenvolvimento esportivo
Antes de escrever estas linhas e durante a exibição das Olimpíadas, as quais acompanhei com intensidade, revisei meus escritos a respeito do mesmo tema. A ausência do Estado na promoção do esporte escolar como base para o desenvolvimento olímpico nacional. Ou seja, buscando incessantemente as estruturas de Estado como garantidoras do direito ao esporte como parte fundamental da cidadania, especialmente como parte do direito à infância e a adolescência. Se formos levar em conta este absurdo e os poucos centros de excelência para o desenvolvimento esportivo brasileiro, veremos que os “resultados” em termos de competição, resultam em verdadeiro “milagre” nacional.
O Brasil fechou sua posição nos Jogos do Rio em 13º – mesmo levando em conta o absurdo que é a contabilidade de ouros coletivos como equivalentes a ouros individuais. À frente do país estão, em ordem decrescente, EUA, Grã Bretanha, China, Rússia (desfalcada do atletismo), Alemanha, Japão, França, Coréia do Sul, Itália, Austrália, Holanda e Hungria. Nas sete posições abaixo do Brasil estão, Espanha, Quênia, Jamaica, Croácia, Cuba, Nova Zelândia e Canadá. Nas dez posições sequentes estão: Uzbequistão, Cazaquistão, Colômbia, Suíça, Irã, Grécia, Argentina, Dinamarca, Suécia e África do Sul; nas posições de 31ª a 40ª, estão: Ucrânia, Sérvia, Polônia, Coréia do Norte, Bélgica, Tailândia, Eslováquia, Geórgia, Azerbaijão e Bielorússia. Assim, dentre os 40 primeiros países, verificamos sete Estados nacionais sem modelo de desenvolvimento desportivo, sendo estes: Brasil, Quênia, Jamaica, Colômbia, Argentina, África do Sul e Tailândia. Como o que vale para o Comitê Olímpico Internacional (COI) é o número de medalhas de ouro, alguns países, como Jamaica e Quênia, se especializam em determinadas modalidades ou provas específicas de atletismo e a partir desta base modelam seu desempenho. Proporcionalmente em termos de recursos, instalações e número de praticantes de base, o Brasil foi muito bem, dentro das quadras, deixando para o momento posterior a mesma situação de incerteza e desespero fora dos locais de competição.
O mérito para tais resultados vêm das políticas de alto rendimento (incluindo a polêmica dos atletas “militares”, da abnegação de atletas dedicando-se ao profissionalismo e dos raros exemplos de confederações que têm centros de excelência, ligas profissionais e planejamento. Como modelo fechado, neste sentido, temos apenas a Confederação Brasileira de Voleibol (CBV), não sendo à toa a presença do cartola Carlos Arthur Nuzman na Presidência do Comitê Olímpico Brasileiro e que um dos seus dois sucessores na CBV , Ary Graça Filho, ocupe a Presidência da Federação Internacional de Voleibol (FIVB).
Sendo a CBV o modelo para o desenvolvimento de modalidades olímpicas no país, ressaltando que os esportes coletivos têm outra dinâmica dos individuais (como por exemplo, a necessidade de tipos e atributos físicos pré-condicionados para os coletivos), nota-se que o desporto se desenvolve apesar da ausência do Estado como formulador e implantando as políticas necessárias.
O ciclo de qualquer modalidade com ambições olímpicas é difusão, participação e competição (o que na gíria denomina-se no amadorismo ou nas divisões inferiores como “atleta federado”); partindo dos resultados desta última selecionam-se o alto rendimento e daí os programas de incentivo e permanência no desempenho ranqueado internacionalmente. Sem esta base, fazer do esporte brasileiro um direito de todas e todos é simplesmente uma missão em vida de treinadores abnegados, como o técnico de boxe da comunidade do Vidigal – zona sul do Rio de Janeiro -, Raff Giglio. De seu projeto, além das centenas de crianças que atendem aos treinamentos ao longo de mais de duas décadas, saiu um medalhista olímpico e outros dois selecionados em 2016. Já o aluguel de seu ginásio, após haver sido despejado, é pago com o mecenato de um ator global! Histórias como estas e absurdos institucionais correspondentes, mais que justificam o choro e a raiva de atletas de alto rendimento e os técnicos de base.
Apontando duas conclusões
Aponto, por fim duas conclusões deste texto. A primeira aponta para a injustiça estrutural da mancha urbana do Rio como um espelho das distorções do país. Cada cidade brasileira e sua correspondente Região Metropolitana; acostumaram a organizar grandes eventos e trabalhar com a possibilidade de atração turística sem com isso modificar a injustiça e a pobreza espacialmente dividida.
Já o modelo do esporte de base, ou pior, a ausência deste, simplesmente exaure as forças dos difusores das modalidades desportivas. Como resultado, além das narrativas típicas do capitalismo, onde se destacam os empenhos e valores individuais de superação, temos mais do mesmo. O Estado opera como modelo de acumulação e também atende, parcialmente, a alguns direitos sociais, todos incompletos. Como o direito ao esporte, infelizmente, trata-se do mesmo abandono e injustiça estrutural.
(www.estrategiaeanaliseblog.com / blimarocha@gmail.com para e-mail e Facebook)
O império da sucata e a soberania nacional
Fernando Rosa – jornalista
Em janeiro de 2009, o embaixador dos EUA no Brasil Clifford Sobel enviou telegramas ao governo Norte-Americano com duras críticas ao Plano Nacional de Defesa do Brasil, anunciado em dezembro de 2008 pelo presidente Lula, segundo noticiou o jornal Estadão, na época. A informação tinha como fonte um conjunto de telegramas vazados pelo site Wikileaks, também responsável por vazar trocas de informações entre o atual presidente Michel Temer e autoridades dos EUA. Segundo a matéria, o relato destacava a preocupação com “o interesse do Brasil em controlar tecnologia nos setores espacial, cibernético e nuclear”.
Os telegramas também evidenciavam a preocupação – e uma certa ironia – de Sobel com a palavra “independência” que, segundo ele, demonstravam a vontade do Brasil em controlar a produção de armamentos, e com prioridade para alianças com países que transferissem tecnologia. Sobel também destacava a preocupação dos brasileiros com as descobertas de petróleo no mar e a sua utilização como razão urgente para melhorar a segurança marítima. “Essa preocupação se fundiu à busca de duas décadas do Brasil por desenvolver um submarino nuclear, dando um novo ímpeto à pesquisa sobre um pequeno reator para propulsão naval”.
O embaixador norte-americano também manifestava contrariedade ao Plano pelo seu caráter mais amplo de visão e concepção de segurança nacional. Para ele, “algumas das propostas do plano têm menos a ver em melhorar a estrutura militar e mais com a integração da Segurança Nacional com o desenvolvimento do País”. Em sua “análise”, o plano batizado com o nome de “Paz e Segurança para o Brasil”, dava ênfase em benefícios sociais “em detrimento ao profissionalismo no serviço militar” com o objetivo de minimizar “a capacidade dos militares de se envolverem na área”.
Ao contrário das especulações do embaixador americano, e do tom de intriga perseguido, o Plano afirmava que “a disposição para mudar é o que a Nação está a exigir agora de seus marinheiros, soldados e aviadores. Não se trata apenas de financiar e de equipar as Forças Armadas. Trata-se de transformá-las, para melhor defenderem o Brasil”. Nesse sentido, o Plano definia que “projeto forte de defesa favorece projeto forte de desenvolvimento. Forte é o projeto de desenvolvimento que, sejam quais forem suas demais orientações, se guie pelos seguintes princípios:
a) Independência nacional, efetivada pela mobilização de recursos físicos, econômicos e humanos, para o investimento no potencial produtivo do País. Aproveitar a poupança estrangeira, sem dela depender;
b) Independência nacional, alcançada pela capacitação tecnológica autônoma, inclusive nos estratégicos setores espacial, cibernético e nuclear. Não é independente quem não tem o domínio das tecnologias sensíveis, tanto para a defesa como para o desenvolvimento;
e ) Independência nacional, assegurada pela democratização de oportunidades educativas e econômicas e pelas oportunidades para ampliar a participação popular nos processos decisórios da vida política e econômica do País. O Brasil não será independente enquanto faltar para parcela do seu povo condições para aprender, trabalhar e produzir.
A cada dia que passa, mais claras se tornam as evidências do envolvimento externo nas operações golpistas – desde as ações de rua em 2013, passando pela Lava Jato, até o recente “encontro” de John Kerry com José Serra. As manifestações de rua tentaram reproduzir as “primaveras” golpistas, a operação Lava Jato mirou na Petrobras e no Pré-Sal, nas empreiteiras nacionais e no submarino nuclear. Ao mesmo tempo, os chefes do golpe apostam no alinhamento unilateral e suicida aos Estados Unidos, do que não deixa dúvidas a imediata visita do senador Aloysio Nunes (PSDB) ao Pentágono, logo após o afastamento da presidenta Dilma Rousseff.
Ao mesmo tempo, é cada mais temerária a postura belicista norte-americana para impedir o desenvolvimento de países e regiões, do que são exemplos a destruição do Iraque e da Líbia, e as demais guerras no Oriente Médio. Os exércitos de China, Índia e Rússia, não por acaso três países do BRICS, por outro lado, junto com EUA e França serão as forças armadas mais poderosas do mundo em 15 anos, segundo publicação político-militar “The National Interest”. O que está em jogo, portanto, nesse momento, para os interesses nacionais, geopolíticos e militares, por certo, vai além dos temas da democracia e dos direitos sociais, embora fundamentais.
O povo brasileiro, em boa parte, nas ruas de todo o país, já demonstrou seu total repúdio ao golpe e aos golpistas interinos; enquanto outra parcela certamente reagirá ainda com mais vigor diante do “pacote de maldades” sociais previsto para o pós-impeachment, se vingar. O mundo, governos, lideranças intelectuais, políticos, artistas, até mesmo dos Estados Unidos, e a mídia internacional em sua grande maioria também identificam como um golpe de estado o que está em curso no país. A CNBB acaba de perguntar “para onde vamos?”, advertindo que “democracia é respeito à vontade do povo” e conclamando “ao diálogo e à busca de soluções democráticas que preservem as conquistas e os direitos do nosso povo”.
Em 1982, a Guerra das Malvinas sepultou a política de segurança nacional regional e mundial vigente até então, quando os Estados Unidos negaram munição à Argentina, deixando os argentinos à mercê da covarde e cruel agressão dos exércitos da Inglaterra. Da mesma forma o que os EUA pretendem agora, em ultima instância, é transformar o Brasil em comprador de suas sucatas e sobras de guerras superadas tecnologicamente. Pode ser uma ironia a visita do secretário de Estado John Kerry à equipe americana na Escola Naval, durante as Olimpíadas, no Rio de Janeiro, mas não tem nada de casualidade a perseguição e a absurda pena de 43 anos de prisão ao Almirante Othon, responsável pelo desenvolvimento do submarino nuclear brasileiro.
Nos anos 70, o general Ernesto Geisel já havia apostado na multipolaridade, ao abrir relações diplomáticas e comerciais com a China, e na independência tecnológica, ao romper o acordo de fornecimento de material bélico com os EUA, assinando o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, que resultou nas usinas Angra I e II, dando início a moderna indústria bélica nacional. Em sua Política de Defesa Nacional, sancionada em 2005, pelo presidente Lula, o Brasil definiu que “a segurança, em linhas gerais, é a condição em que o Estado, a sociedade ou os indivíduos se sentem livres de riscos, pressões ou ameaças, inclusive de necessidades extremas”. Neste momento em que tentam destruir o Poder e Estado nacional, assim como povo brasileiro, as FFAA não aceitarão o papel de “capitães do mato” do Império colonial, e honrarão a herança de Floriano Peixoto.
O Plano Nacional de Defesa
Protestos
Jorge Barcellos – Historiador, Mestre e Doutor em Educação. Mantém a coluna Democracia e Política, do Jornal O Estado de Direito. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). É colaborador dos jornais Estado de Direito, Sul21, Zero Hora, Le Monde Diplomatique Brasil, Lamula (Peru) e Sapo (Portugal) e Medium (EUA).
Vivemos uma era de protestos. Neste mês, professores, servidores públicos e operadores do aplicativo Uber fizeram protestos no Ginásio Gigantinho, na capital. Mas como funcionam? Como se organizam? Como escolhem suas pautas?
O tema é objeto de “Protesto, uma introdução aos movimentos sociais”, (Zahar,2016), de autoria de James M. Jasper. “Governos são sempre atraentes como alvos de protestos”, afirma o autor e a ideia não poderia ser mais adequada ao momento brasileiro. A obra se apresenta como um manual sobre a dinâmica dos movimentos sociais, mas é mais do que isso. Jaspers é professor de sociologia no Centro de Pós-graduação da City Univesity of New York, uma das mais prestigiadas dos EUA, e o ex-estudante de economia de Harvard descobriu em seus estudos que os movimentos sociais queriam saber como poderiam serem melhores estrategistas. Então, a partir dos anos 2000, começou a cruzar leituras de diplomacia, relações internacionais, teoria dos jogos e dos conflitos e se propôs o desafio de criar uma alternativa cultural e institucional a teoria dos jogos. Autor de obras como A arte do protesto moral, Leitura dos movimentos sociais, Contexto de leitura, Politica Apaixonada , O Dilema da Identidade (tradução livre), Protesto é sua primeira obra publicada no Brasil.
A atualidade do tema é evidente. Com a instalação do governo provisório de Michel Temer, estamos vivenciando uma nova onda de protestos como os de 2012 e junho de 2013 de norte a sul do país. Jaspers cita-os logo de partida em seu estudo: ”Em (tais) conflitos políticos, cada ator reage a outros atores, numa cadeia sem fim de interações e inovações estratégicas”. Sua preocupação é identificar os elementos dos protestos contra decisões dos governos e aponta que, no Brasil, foi característico o fato de que diversos movimentos de protesto confluíram entre si contra a fórmula neoliberal que distribui pouco para os pobres “Este é o cerne da democracia: o Estado trabalha para si mesmo ou para o povo?” questiona Jarspes que vê nas obras da Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016) o símbolo de um governo mais preocupado “com suas conexões internacionais do que com o povo”.
Surpreende o grau de detalhamento das características dos movimentos sociais por todo o mundo que o autor detém. Do movimento Occupy à Primavera Àrabe, dos protestos na Bulgária ao caso brasileiro, Jaspers recupera com vivacidade o movimento de organização social em cada pais. Seus dados chegam até março de 2016 com os novos protestos que sacudiram o o pais contra a corrupção e a descrição das posições contra e a favor do impeachment da presidente Dilma “O protesto nunca vai terminar, a menos que, por milagre, o mundo se transforme num lugar perfeito. Até lá, os manifestantes serão aqueles que vão apontar os problemas e exigir sua solução”.
A renovação de seu estudo deve-se ao fato de concentrar-se menos em estruturas de base e mais nas pessoas, nos indivíduos, suas interações, sentimentos e entendimentos. Ao tornar vívidos os choques morais, a vergonha e os dilemas dos movimentos sociais, sua principal conclusão é, contrariando as teorias clássicas da política, de que os movimentos sociais em sua natureza, expectativas, decisões e práticas são integrantes da cultura e suas ações “baseiam-se no modo como entendemos o mundo, em nossos esforços para persuadir outras pessoas, nos sentimentos gerados pelas interações”. A crítica do autor é contra a teoria dos jogos, modelo de origem matemática tornado célebre pelo filme Uma mente brilhante, na qual procura-se determinar as razões das decisões de atores em interação.
A obra é composta de oito capítulos que tratam dos movimentos sociais, seus significados, infraestrutura, formas de recrutamento e sustentação e sua capacidade de decisão e de envolvimento de outros atores. Jaspers observa que os manifestantes mudam seus repertórios por meio de interações com outros atores pois o objetivo é sempre surpreender e inovar. Estruturas sociais não tem motivos para mudar, o choque é inevitável e as arenas politicas estão sempre em mudança. A descoberta de Jaspers é que toda tática tem implicações morais: “Grupos não violentos não adotariam a violência mesmo se isso garantisse a vitória; grupos da classe trabalhadora sentem-se mais confortáveis marchando juntos num piquete do que fazendo lobby”. Para o autor, a questão é que diferentes pessoas tem diferentes inclinações táticas e por esta razão, é rara a inovação nas estratégias de ação.
Um dos pontos curiosos da obra é o destaque para o caráter de divertimento que assumem as reuniões dos movimentos sociais “Muita coisa acontece também nos encontros fora do palco. Pode-se paquerar, flertar, seduzir ou sair de lá com uma namorada. Se as reuniões fossem tediosas, não haveria movimentos sociais”. O ponto é sempre a cultura de grupo mobilizada pelos protestos, e nesse sentido, a análise do autor assemelha-se mais a uma versão política das propostas sociológicas de Michel Mafessoli, especialmente de “O Tempo das Tribos”.
Boa parte da importância do livro advém da redução do papel dado às teorias da escolha racional. Neste campo, o processo de tomada de decisão é baseado no cálculo racional “em que todos se sentam numa sala e debatem as melhores opções”. Para o autor esta explicação não é suficiente, o ponto de Jasper é que sempre os atores levam consigo suas emoções, concordam mais com pessoas de que gostam e confiam e discordam daquelas que as desagradam. Cultivam rancor, possuem momentos de boa disposição, convivem com sentimentos de admiração, amor e inveja. Seu aprendizado nunca é apenas racional, mas acontece de forma intuitiva, o que significa, a capacidade de pensar com rapidez e de forma inconsciente ”Os repórteres estão perdendo o interesse? Faça alguma coisa que nunca tenham visto”, afirma.
Todo protesto é um misto de cálculos e emoções e por isto é sempre complicado quando os atores tem muitas expectativas no campo social. A política é justamente isso, a capacidade de criar um campo de negociação entre atores em disputa, não vencem e nem perdem tudo, isto é, não conseguem realizar tudo o que desejam mas conseguem alguma coisa, podem afetar a opinião pública e auxiliar na mudança das visões de mundo. Para Jaspers, o protesto está em toda parte, entranhando a democracia, dos direitos humanos às formas de cultura, movimentos sociais fazem cultura, fazem futuro, dão expressão a inspirações. A grandeza dos movimentos sociais está na capacidade de fazer emergir uma só voz, mas é sempre frágil e nem todos os movimentos são bons, como provou o fascismo. Sua grandeza está em responder afirmativamente a questão de “como as pessoas podem confiar uma nas outras e colocar projetos coletivos acima de seus interesses pessoais e familiares”?
A lição de Jaspers é que protestos dependem de redes sociais e mídias para exercerem pressão sobre políticos e autoridades e obtém vitórias e derrotas em arenas diferentes. Agências governamentais podem manter diferentes relações com atores de protestos mas a principal espaço de manobra para os protestos é que o próprio Estado, raramente é um ator unificado e sim um conjunto de atores secundários muitas vezes em confronto. E com isto com que contam os movimentos sociais para fazerem vitoriosos seus protestos.