Uma Árvore de Golpes

Duilio de Avila Bêrni – Professor de economia política (UFSC e PUCRS, aposentado). Coautor de “Mesoeconomia” (Bookman, 2011) e “Teoria dos Jogos” (Saraiva, 2014).
Se tinha gente insatisfeita com as moderadas conquistas de posições igualitárias alcançadas pelo lulismo, só posso imaginar como estes falantes “estar-se-ão” sentindo com o temível governo Temer. Mas é precisamente esta a questão que desencadeou inúmeros golpes na ordem democrática alcançada no Brasil depois do impeachment do presidente Collor de Mello. Mais ou menos consensual, o impeachment de Collor nutriu-se precisamente da carência de capital político do presidente vencedor das primeiras eleições diretas depois do movimento político-militar que rompeu com a ordem institucional em 1964. Com pouco mais de 50 anos de deflagração da primeira, vemos agora a terceira ruptura na ordem institucional no país.
Visualizo um diagrama de árvore (dendograma) em que o nó inicial é o golpismo que, rapidamente, bifurca-se em dois troncos contendo atentados às liberdades políticas e socioeconômicas, ambas ramificando-se em variadas combinações. Sem falar nos atropelos já praticados na política externa, o primeiro tronco diz respeito às motivações políticas do golpe, cabendo ao Brasil a vivência de inúmeras variantes e, agora, uma tentativa de golpe parlamentar com a proposta do impeachment do mandato de Dilma Rousseff. No Brasil contemporâneo, uma forma disfarçada de golpe consiste na chamada judicialização das ações legislativas e impugnação judicial de medidas do poder executivo. Como foi referido por estes dias nas redes sociais, o Brasil não tem um poder judiciário, mas 17 mil juízes fazendo pelo menos 17 mil tipos de justiça…
Um dos troncos secundários é o chamado complô do quarteto promotores-juízes-polícia-imprensa. Novo tronco associa-se a uma tosca visão de neoliberalismo, ou melhor, a visão rasteira de libertarianismo, quando seus arautos, no final, esquecem a liberdade política e enfatizam apenas “a soberania dos mercados”. Estes golpes não são de hoje, como atestam as ações progressistas e a reação a elas que antecederam o golpe militar. Depois da renúncia de Jânio Quadros à presidência da república em 1961, uma junta militar vetou a posse de seu sucessor e negociou com o congresso nacional a instituição do parlamentarismo no Brasil. Depois de alguns meses da manutenção da instabilidade política, um plebiscito restaurou o presidencialismo, quando João Goulart lançou seu programa de “reformas de base”, despontando – e despertando furores de parte das referidas classes empresariais – a reforma agrária. Mas, além dela, falava-se na promoção de uma reforma na administração pública, da política tributária e do sistema bancário. Não é de surpreender que as forças conservadoras, em plenos tempos de guerra fria e emergência do regime revolucionário cubano, invocaram o apoio dos militares, os quais, afinal, tornaram-se os protagonistas do lamentável espetáculo.
Com duas décadas de duração, aos poucos, a ditadura militar foi vendo sua aceitação pela maioria da classe política corroer-se, culminando com a assembleia constituinte que determinou a realização de eleições diretas para a presidência da república em 1989. No ínterim entre as eleições que levaram Collor ao poder e às que dele afastaram os militares, vimos a eleição indireta de Tancredo Neves, carregando como candidato a vice-presidente o nome de José Sarney. Sarney veio a avalizar novo golpe ao livre exercício do poder popular, pois nunca foi empossado como vice-presidente. A nomeação do titular de sua chapa nunca ocorreu, uma vez que Tancredo Neves adoeceu antes da posse e, como tal, não foi ungido ao cargo. Sarney, que estava destinado a acompanhar Tancredo por um período de quatro anos, mas que – se Tancredo tivesse tomado posse por um minuto – seu vice teria apenas dois anos de mandato, devendo encaminhar a convocação de novas eleições. Pois ele conseguiu estender seu mandato para um quinquênio, sendo o único presidente civil a fazê-lo: os mandatos quadrienais voltaram, cabendo a Fernando Henrique mudar a constituição, dando-se guarida ao direito a uma reeleição. Antecessor de FHC, a quem Sarney – mal-humorado – não deu posse, Fernando Collor venceu uma eleição em que não faltaram de lado a lado manifestações de despreparo e prática da mentira. Aclamado no segundo turno eleitoral por uma frágil coalizão de partidos, o que chega a surpreender é que este arranjo tenha durado um par de anos. Em seu governo, a corrupção endêmica grassava em muitos segmentos do governo federal e contribuiu para que a norma institucional fosse rompida com um pedido de impeachment aprovado sem a participação do voto popular, eis que todo espetáculo ocorreu no congresso nacional.
Durante os governos que o sucederam, houve relativa calma, pelo menos no que diz respeito à sanha de golpes ou impeachment. Seguiu-se à surpreendente conversão de Fernando Henrique ao ideário neoliberal a triunfal entrada em cena de Lula, que governou na relativa paz compatível com a realidade de uma enorme população pobre e desassistida sequer de direitos civis. Tal foi o sucesso econômico do governo Lula que, em escolha idiossincrática, lançou como candidata a sucedê-lo e, como tal, preservação do lulismo, a Dilma Rousseff. A presidenta – o substantivo feminino foi incorporado desde que Dilma sucedeu Wrana Panizzi na presidência da Fundação de Economia e Estatística – fez um governo que amargou sérios tropeços econômicos, acarretando-lhe a corrosão do controle da máquina pública e o otimismo da população. De estonteantes índices de popularidade alcançados em pesquisas de opinião, este indicador passou a registrar queda, mergulhando a níveis baixíssimos, certamente auxiliados pela histriônica reação de Aécio Neves à própria derrota nas eleições de 2014. Abalado com a contundência do ódio de Aécio e sua ascenção a arauto das classes conservadoras, o governo Dilma passou a fazer-lhes concessões, contribuindo crescentemente para a perda de apoio por parte das classes populares. A tragédia prosseguiu, na eleição de 2014, com a sagração, nas duas casas, de um congresso nacional reacionário em termos políticos e econômicos, insatisfeito com a forma como o governo estava financiando medidas de efeito redutor da desigualdade econômica. Não surpreende que um político oportunista do porte de Eduardo Cunha tenha sido eleito presidente da câmara e desencadeado um pedido de impeachment do mandato de Dilma com raso conteúdo lógico, mas de agudo apelo ideológico.
Na mesma linha do golpe de Sarney, que não estava credenciado a assumir a presidência, Michel Temer carrega a ilegitimidade de, mesmo no período em que responde interinamente pela presidência, tenta impingir à economia um programa de governo de manifesto corte antipopular, eivado de tentativas de cortes de direitos sociais e econômicos. Precisamente sobre essa dimensão econômica é que assenta o segundo tronco do mundo golpista. Nesta região da árvore, os golpes são ainda mais frequentes, pois são perpetrados em resposta às pressões exercidas sobre os poderes executivo e legislativo por representantes da chamadas classes empresariais. Entusiasma-as, por exemplo, o sequestro de algumas conquistas sociais e econômicas alcançadas pela classe trabalhadora durante o lulismo. Mas esta, alquebrada por inúmeras derrotas, não deveria esquecer que um momento dramático a agitar este tronco ocorreu no pós-1964, quando a estabilidade no emprego conquistada durante a ditadura varguista, foi varrida e substituída pelo instituto do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. O FGTS é um fundo de poupança que assegurava direitos econômicos sobre a desvalorização do dinheiro, mas pagava um juro de modestos 3% a. a., quando as cadernetas de poupança pagavam 6% e os empréstimos habitacionais corriam a juros de 12% a. a. Bons tempos, infelizmente… Pois novos golpes foram-lhe assestados durante o governo FHC, mudando regras da aposentadoria para praticamente a mesma expectativa de vida ao nascer, isto é, criou-se direito à aposentadoria por idade para 75 anos, quando o brasileiro médio deverá estar… morto.
Mas esta derrota para o trabalhador médio resultou ainda no golpe misto que foi assestado contra, digamos, a “jovialidade” da composição do supremo tribunal de justiça do país, ao também a eles reformarem a tradicional aposentadoria do funcionário público de 70 anos. Com isto, naturalmente, os desígnios dessa suprema corte devem tornar-se mais conservadores, ainda que desalinhados dos interesses políticos imediatos.
Nos dias que correm, anunciam-se intenções de cortes abruptos nas despesas públicas, talvez recitados como nos teatros de marionetes, pois as reações e a própria “base aliada” levaram o governo provisório a rever o ímpeto das medidas anunciadas. Este foi o caso dos cortes e recomposição do programa de habitação popular “Minha Casa, Minha Vida”, do financiamento à educação superior pelos programas Pro-Uni, FIES e as mais infames propostas de reformulação do SUS. As próprias críticas endereçadas ao déficit público do governo afastado foram substituídas por uma espécie de reformulação imóvel, pois aceitou e até ampliou seu volume, já anunciando que os próximos anos também terão que conviver com esse promotor de um hiato inflacionário. No Brasil do “andar superior” tornou-se tabu falar em combate ao déficit com a ampliação da tributação. Descarta-se liminarmente com este tipo de reação que se daria por meio da adoção dos impostos diretos, como o imposto de renda progressivo, o imposto sobre grandes fortunas e de transmissão de bens por herança.
Nesse andar superior, meter o ombro na porta é, como observamos, ação rotineira. E nada o ilustra com cores mais vivas que a tragicomédia da tentativa de impeachment que hoje vemos contra o mandato de Dilma Rousseff. A acusação original, emergindo da iniciativa pessoal de três advogados, dois dos quais foram, no passado, figuras de proa, comprometidos com a cruzada antilulismo, com uma acusação de “operações de crédito indevidas” concernentes ao ano de 2014. A esta percepção enviesada, associou-se um crescente grupo de inconformados com os resultados da eleição desse ano.
Constatada a improcedência do pedido, rapidamente esses defensores de uma ordem legal conveniente, reciclaram seu pedido para as contas de 2015. Especialmente na preparação do julgamento do mérito da tese da prática de crime de responsabilidade ora em andamento no senado federal. por contraste a julgamentos semelhantes de todos os governos anteriores, inclusive dos estados, cuja recomendação era de “aprovar com ressalvas”, agora o exame ganha foros de discussão entre o lobo e o cordeiro: “Se não foi pedalada fiscal, foi algum outro ilícito ainda mais revoltante. E não se discute mais.”
Diferentemente de Michel Temer, outro paulista não se encantou com a tentação do poder: Amador Bueno. Com efeito, ao encerrar-se o Domínio Espanhol sobre Portugal, em 1640, a colônia de súditos da Espanha residente em São Paulo rebelou-se contra a assunção de Dom João IV ao trono português e intimou Amador Bueno a assumir o reinado da região que, desta forma, se tornaria independente do restante do Brasil Colônia. O incorruptível paulista recusou a honraria e, ao contrário do esperado, saudou de espada em riste a ordem institucional portuguesa. No presente momento, Temer faz um prejulgamento espetacular do julgamento a que Dilma Rousseff será submetida pelo Senado da república. Alardeia-se que ele sonha-se capaz de reestabilizar o Brasil nos dois anos e meio de mandato que talvez o aguardem. Aécio iniciou a desestabilização política. Temer conta com a desestabilização institucional. Amador Bueno está sepultado.
 

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