ELEIÇÕES 2020 : “Desinformação é o principal problema da saúde pública”

No Posto Modelo, onde foi introduzido o terceiro turno, até as 22 horas, uma parcela dos médicos é terceirizada. Foto Anselmo Cunha/PMPA

Convidamos três profissionais com experiência nos diversos níveis do sistema de Saúde Pública  para nos ajudar a identificar os desafios principais a serem enfrentados pelos que se candidatam a administrar a cidade. A íntegra da conversa pode ser conferida no nosso canal do youtube. Um resumo está aqui:

“O problema maior é a desinformação”, resume o médico Armando de Negri Filho, mestre em Epidemiologia, Saúde Pública e Gestão Clínica. Ele se refere aos graves desafios dos serviços de saúde pública em Porto Alegre, realidade comum a todas as capitais, na verdade.

Começa, em sua avaliação, com a falta de percepção da importância do Sistema Único de Saúde pela população.

“Quem procura atendimento na Santa Casa de Porto Alegre, por exemplo, muitas vezes não sabe que o hospital é um prestador de serviço do Sistema Único de Saúde, que é ao SUS que o cidadão está recorrendo”.

Armando de Negri Filho

Deveria, segundo ele, “ter placas enormes na entrada dos hospitais da Santa Casa, do Clínicas e do Conceição: “Este estabelecimento é do SUS de Porto Alegre e está sob gestão municipal”, diz Negri, cuja tese de doutorado em Políticas e Sistemas de Saúde na Universidade de São Paulo foi a reforma hospitalar do SUS em 2016.

Essa baixa percepção, segundo Negri, faz com que o cidadão não defenda o SUS e, muitas vezes, até assuma o discurso de que é um sistema falido, que custa caro e não funciona.

Essa situação permite que, mesmo com a valorização do SUS por sua atuação na pandemia, decisões políticas sejam aprovadas esvaziando o sistema público.

“Precisa uma gestão pública muito potente e integrada, ter representantes da Prefeitura nos conselhos diretores dos hospitais, junto com representantes das comunidades, para poder estar de fato no centro da articulação de todos esses recursos”.

O governo federal entra com a maior parte dos recursos para o SUS, (60%), Estados e municípios complementam, mas é na cidade que tudo acontece.

“Nos últimos anos tivemos um grave problema em Porto Alegre, de restringir o debate público, a Prefeitura evitando o diálogo com o Conselho Municipal de Saúde, os conselhos locais, como determina a lei orgânica”, lamenta  Negri.

Ana Paula de Lima

“Hoje o SUS está sob ataque, com mudanças de grande impacto”, alerta a psicóloga Ana Paula de Lima, 27 anos no SUS, e que integra o Conselho Municipal de Saúde há 15 anos.

A histórica falta de recursos foi agravada a partir de 2017 com a emenda constitucional 95, que congela os investimentos em saúde. Em 2019, o governo alterou a forma de financiamento da rede de atenção básica, responsável por atender mais de 80% dos problemas de saúde.

Antes, os municípios recebiam um piso fixo, proporcional à sua  população. Isso garantia o caráter universal. “Novos critérios colocam até em risco a rede de atenção básica, que é a porta de entrada para o paciente”, diz Ana Paula.

A pandemia escancarou como os problemas atingem de forma diferente os segmentos sociais.

Para Negri, questões ideológicas e falta de gente na mídia dedicada a entender os problemas de saúde emperram o debate. “Saúde é sempre tema de baixa política, não está no centro da agenda política, nem as desigualdades como um todo. Porto Alegre tem que enfrentar a persistência das desigualdades sociais. Na saúde, isso começa por questões de fundo, a disputa sobre a qualidade do ar, da água, do processamento do lixo, a lógica do transporte público. Se o acesso universal ao sistema é um marco constitucional, não há a alternativa de não fazer.”

Gerusa Bittencourt

A enfermeira Gerusa Bittencourt,  gerente do Posto Modelo, na região central, questiona por que Porto Alegre optou por outro tipo de gestão, no qual a maioria das unidades de saúde serão terceirizadas. No Modelo, onde foi introduzido o terceiro turno, até as 22 horas, uma parcela dos médicos é terceirizada. “Cada dia, não sei quem vem trabalhar… troca contrato, mudam as empresas, os profissionais. Era necessário terceirizar?”, questiona.

Pelo retorno dos usuários, ela sabe que o serviço segue igual ou piorou. Houve ampliação de equipes, mas centralização de unidades. “Hoje preciso de um agente de saúde pra vincular numa equipe. Antes havia uma equipe com dez, agora dez equipes com um… Ampliou, mas diminuíram os recursos humanos. Trabalho com o mínimo de gente, mas a porta está aberta até as 22h. As pessoas dão seu máximo, mas com uma equipe mínima.”

Ana Paula observa que o cenário nacional com muitos retrocessos, bota em risco o próprio SUS. Com as mudanças de 2017, vem se desenhando um processo de mudança de modelo.

Uma das políticas mais reconhecidas, o Saúde da Família, criado em 1990, está sendo atacado.

Porto Alegre é exemplo das alterações. Na rede de atenção primária, que resolve mais de 80% dos casos, o princípio do SUS é descentralização, com resultados já comprovados. “Aqui estamos centralizando”, diz Gerusa.

A atual gestão municipal começou com 141 unidades de saúde, hoje são 133. Para reduzir custo em escala, perde qualidade. Amplia o número de equipes mas em menos unidades e mais longe de comunidades mais carentes, como Lomba do Pinheiro, Bom Jesus, Grande Cruzeiro que tiveram unidades fechadas. “De que adianta o Posto Modelo aberto até 22 horas se as pessoas não têm dinheiro para o ônibus para chegar lá?”

Porto Alegre tem registrado os piores índices de tuberculose, sífilis, HIV, entre as capitais do Brasil.

“É uma ampliação às avessas, para apresentar números. Mas não houve qualificação”, constata Ana Paula. A psicóloga trabalha há 27 anos, os últimos 15 também nas instâncias de controle social das políticas de saúde, como o Conselho Municipal de Saúde.

“Estamos regredindo, a extinção do Imesf, de setembro de 2019 até agora pra construir uma saída com a participação, que fosse a melhor para a rede de saúde da família, não para os trabalhadores. É um equívoco acharem que estamos defendendo os trabalhadores, estamos defendendo o próprio SUS. Leva anos pra formar esses profissionais, e criam vínculo com aqueles pacientes, é uma questão de  responsabilização, de continuidade…”

“As mudanças estão sendo feitas de forma irresponsável, e num contexto de pandemia. Como vai ser a continuidade da saúde família, entregue à iniciativa privada menos de um mês antes da eleição?”

Negri lembra que o SUS nasceu e viveu sob o signo da escassez. Um projeto ambicioso, de solidariedade social, que universaliza direitos, mas desde a regulamentação o SUS foi sendo podado, limitado na sua ação, sempre mantido com suporte econômico insuficiente. “Tivemos muitos avanços, porém num ritmo inferior ao das demandas da sociedade – é um direito coletivo e individual, tem que ser acessível.”

“O atendimento tem que começar pela prevenção, pois depois pode ser tarde, como é o caso agora da quantidade enorme de pessoas evoluindo para insuficiência renal, quando deveríamos estar cuidando da saúde renal dessas pessoas. É preciso movimentar universidades, meios de comunicação, usar os espaços da sociedade  para construir este debate público. E tornar consciente que o sistema está amarrado, que o que estamos vendo hoje é uma incompatibilidade entre a  necessidade de expandir o sistema de saúde e a lei de responsabilidade fiscal. O limite de contratação de pessoal que estimulou a contratação de terceiros. O que tem que fazer é atenção publica, e garantir a gestão pública dos recursos”.

Os problemas podem ser superados, mas demandam estratégia pra 10, 15 anos

Gerusa: “Acho que estamos pensando a cidade, a saúde é importante pra cidade. Com minha experiência de enfermagem, quero estrutura física, equipamentos adequados. Mas também pensar que cuidar da saúde não começa nem se esgota aí. É absurdo o que a Lomba do Pinheiro passou este ano por falta de água. Tem questão da mobilidade urbana, não tem transporte público, uma pessoa que consulta lá na 15, durante o dia precisa de um antibiótico que só tem na farmácia distrital, e ela não consegue vir porque tem deficiência, não tem dinheiro para a passagem… É esse conjunto de coisas… A pandemia mostrou que as pessoas passam fome, toda essa arrecadação de comida demonstra que não temos um estado de segurança, de soberania alimentar, e  o estado brasileiro não dá conta do mínimo, que é comida na mesa, moradia, trabalho numa região que tem muita gente em situação de rua, e prédios públicos fechados, vazios, se deteriorando e cem pessoas ao redor, na rua. O conceito de saúde tem que ser ampliado, cidade ser pensada de forma transversal, saúde precisa conversar com educação, com habitação, transporte, trabalho e renda, tudo gera saúde. As pessoas adoeceram de covid mas também há muitas com a saúde mental abalada pelo isolamento”

Ana Paula: “O SUS tá dentro de um sistema de seguridade social, temos tido várias perdas que contribuem para o adoecimento da população. Sub-financiado não significa que não dá pra fazer nada, podemos fazer muito mais do que tem sido feito, depende da forma como é feito, articulado com outras políticas públicas e com a sociedade. SUS traz um modelo ousado de um estado de bem-estar social que foi interrompido. Porto Alegre já foi exemplo seguido nacionalmente. Vem sendo feita uma campanha de dizer que a falta de efetividade das políticas públicas seria responsabilidade dos funcionários, e é o contrário, se nós conseguirmos, no âmbito do SUS, os avanços que conseguimos, não foram em função do gestores, mas dos servidores.

Negri: “A imagem de uma cidade que investe em saúde é uma cidade de bem-estar, não podemos continuar aceitando tantas desigualdades injustas, moradia, alimentação, água… O governante tem que se responsabilizar por tudo relacionado à saúde.”

“Vamos enfrentar problemas decorrentes da covid. O sistema se mobilizou em função de uma única patologia. Tivemos em Porto Alegre um milhão a menos de internações até agosto. Muita gente não conseguiu ter acesso. Vamos ter um impacto logo adiante.  A forma de avançar é criar espaço de discussão pública”.

 

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