Tempestade afegã aprofunda crise do fim da era Merkel

Às vésperas da eleição-geral que definirá o sucessor (a) de Angela Dorothea Merkel, primeira-ministra desde 2005, a Alemanha enfrenta um transe político e institucional sem precedentes em sua história recente. Com consequências que podem colocar definitivamente em cheque todo o projeto de democracia-liberal representado pela União Europeia.

Não bastasse a pandemia, entrando oficialmente em sua quarta onda no país, o verão foi prolífico em produzir situações que acentuam a derrocada da imagem do governo. Nas enchentes de julho, que devastaram povoados e mataram mais de 200 pessoas no Continente, mais de 100 só na Alemanha, a resposta veio rápida. “A reconstrução é uma obrigação nacional”, declarou Armin Laschet, presidente do Partido Democrata-Cristão (CDU) e candidato a herdeiro de Merkel, na mídia oficial. 

Imagem do desastre

Na visita que fez aos lugares destruídos, Laschet foi fotografado rindo descontraidamente. Como que achando graça de uma piada. O preço da graça foi alto, uma queda de 10% na intenção de votos para o pleito de setembro. 

O desempenho do governo também não ajudou. Anunciou com orgulho 10 bilhões de Euros de ajuda para os próximos anos. Estimativas conservadoras das autoridades locais apontam um prejuízo quatro vezes esse valor. Nos lugares atingidos, os próprios moradores fizeram os primeiros trabalhos de limpeza e desobstrução. Por semanas tiveram que se virar para sobreviver, pois os sistemas de abastecimento ainda não estavam restabelecidos.

Inundacao histórica na Alemanha em 2021
A força da água entre os dias 14 e 16 de julho fez deslizar uma antiga bacia de cascalho (Kiezgrübe) na cidade de Erfstadt, estado da Renânia do Norte-Westfalia. Mesmo tendo arrastado apenas três casas, sem fazer vítimas fatais, a imagem é um retrato do novo nível de devastação causado por fenômenos naturais na atualidade.  (Rhein-Erft-Kreis/dpa)

O símbolo da devastação veio da cidade de Erftstadt, no estado de Nordrhein-Westfalen. A inundação fez desabar uma antiga mina de cascalho, engolindo três casas. Um estrago pequeno, comparado com a cratera que se abriu no local. Mas a imagem ilustra sobretudo o despreparo, mesmo de uma das nações mais ricas do mundo, para lidar com a força dos fenômenos climáticos que já estão acontecendo. Com mais metade do seu consumo energético garantido por combustíveis fósseis, a Alemanha se vê agora acossada em seu território pelas consequências do seu próprio modelo de desenvolvimento. 

Explosao no Chempark de Leverkussen julho 2021
Um tanque de resíduos oriundos da produção de pesticidas explode no Chempark de Leverkussen dia 27 de Julho de 2021. Na sequência outros sete tanques com solventes também pegam fogo. ( https://www.n-tv.de/panorama/Zwei-Tote-nach-Explosion-in-Leverkusener-Chempark-Anlage-article22706790.html)

Acidentes que acontecem

Uma semana mais tarde, a explosão de um tanque com 14 metros cúbicos de lixo tóxico, proveniente da produção de pesticidas no Chempark de Leverkusen, provou, mais uma vez, que nem todas as normas de segurança da nação que inventou a indústria química moderna podem evitar acidentes. Neste, sete trabalhadores morreram, e 31 ficaram feridos.

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Por horas os bombeiros lutaram para controlar o incêndio. (Mirko Wolf/dpa)

O sintomático no caso foi a reação das autoridades. “Não sabemos a causa, mas estamos seguros que nossos bombeiros e especialistas têm competência para resolver situações assim da melhor forma”, afirmou a primeira-ministra, horas após o acidente, lembrando que tanto o Chempark, quanto o estado de NordRhein-Westfallen têm know-how suficiente.

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O parque químico onde a explosão e o incêndio ocorreram é relativamente próximo a residências. O conglomerado responsável evita falar em contaminação química (Anna Fross, dpa)

A Currenta, empresa responsável pela operação do incinerador onde o tanque explodiu, é parte do conglomerado Bayer. Ela demorou duas semanas para informar que outros sete tanques com solventes, contendo diferentes concentrações de halogênios, alcalóides e enxofre também pegaram fogo. Até hoje, nem políticos, nem executivos admitem que tenha ocorrido contaminação da população no episódio. Enquanto a mídia oficial declara “não estar descartada” a hipótese levantada pela Greenpeace: “Moradores da região foram contaminados por Dioxinas”.

Se a segurança química falha, a política internacional confirma o encerramento desastroso dessa alta estação.. A vergonhosa saída da OTAN do Afeganistão cria um novo contexto político para os alemães. “Precisamos evacuar todas as pessoas que trabalharam para nós”, antecipou-se Alexander Gauland, líder do partido de oposicao de direita, Alternativa para Alemanha (AfD), quando já era nítida a retomada pelos radicais. 

O ministro das relações exteriores, Heiko Maas (SPD) esperou o talibã chegar até a capital para reagir. “Fomos todos surpreendidos”, explicou ele, ao anunciar a operação especial para o resgate de cidadãos alemães, e cerca de 1.100 afegãos que trabalhavam diretamente com a parte alemã da missão.

CoordenadordosafegaosalemaesGrotian
O ex-capitão Marcus Grotian, coordenava os tradutores e colaboradores afegãos em Cabul. Ele denuncia a falta de clareza da política de asilo na crise humanitária causada pela desocupação do país pelas tropas da OTAN.

“Isso é um pequeno percentual das pessoas que, por terem trabalhado conosco ao longo dos últimos 20 anos, estão agora com suas vidas ameaçadas”, afirma indignado, Marcus Grotian, coordenador dos trabalhadores nativos a serviço dos alemães. Segundo ele, 10 mil pessoas é um número mais realista, todavia modesto. “Afegãos, que por anos cooperaram conosco e agora estavam integrados nas estruturas que criamos, também ficaram na mão, e nossas autoridades não foram sequer capazes de informá-las que não haveria possibilidade de asilo”. Grotian, que serviu como oficial no início da missão, denuncia a falta de uma política de asilo clara até para os ex-colaboradores do próprio exército. “A burocracia têm sido o principal instrumento para negar a maioria pedidos”.

MutterMerkelderSpiegel2015
Em setembro de 2015, Angela Merkel foi retratada, ironicamente, como a Madre Tereza dos refugiados pela revista Der Spiegel. “Mae Angela – Sua política divide a Europa”, diz a manchete da publicação.

A tempestade afegã ainda deve durar até o fim de agosto, conforme previsto oficialmente. Na conta de Merkel vão todos os atrasos, atropelos e negligências ocorridas na calamitosa fuga de Cabul. Não só por ter sido ela quem habilmente conduziu a farsa internamente. A chanceler chegou a receber uma capa da revista Der Spiegel com um semblante de Madre Tereza. Sua política para os refugiados, como sua política para a pandemia, conquistaram corações mundo afora, pelo menos no início. No final, estamos vendo como a realidade imperial se impõe a tais populismos. 

Autor: Mariano Senna

Mariano Senna, nasceu em Porto Alegre. Formou-se em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (1995). Trabalhou em veículos impressos diários, semanários e mensários no Sul do Brasil. No JÁ, coordenou o projeto dos jornais de bairro (JÁ Bom Fim, JÁ Moinhos) e a criacao da Agência de Notícias Ambientais - Ambiente JÁ, no final dos anos 90. Em 2003 mudou-se para Berlim, na Alemanha, onde atua como correspondente, tradutor e consultor. Mariano têm mais de 20 anos de experiência no acompanhamento e reportagem de temas controversos, envolvendo interesses corporativos. É mestre (Master of Science) em mídia digital pela Universidade de Lübeck e tem doutorado (PhD) em ciência da informação no Instituto de Biblioteconomia e Ciência da Informação (IBI) da Universidade Humboldt de Berlim.

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