Um ditado muito comum da política diz que o presente é cego para o futuro. A recém encerrada eleição geral da República Federal da Alemanha (BRD) confirma a imprevisão contida nessa crença. Após 16 anos no poder, logrados em três reeleições consecutivas (2009, 2013 e 2017), a primeira-ministra, Angela Merkel, entrega o cargo agora com uma derrota histórica.
Seu partido, a União Democrata-Crista (CDU), amargou uma perda de quase 12% na representatividade no parlamento do país (Bundestag), sendo ultrapassado pelo Partido Social Democrata (SPD), como principal força política da república. Resultado em absoluta contradição com o talento da primeira-ministra.
Méritos
Desde que assumiu o posto em 2005, Merkel demonstrou maestria sem paralelo no enfrentamento de crises e relações difíceis. Sobreviveu à crise do Euro logo no primeiro mandato. Manobrou com competência inigualável a eleição do intragável Donald Trump. Transformou a maior crise de refugiados, causada pela política belicosa da OTAN na África e Oriente Médio, num palanque internacional para sua imagem. E mesmo que injustamente, foi apontada como grande estadista do continente Europeu no enfrentamento da Pandemia do corona vírus.
Todos esses méritos foram insuficientes para aplacar a decadência inevitável de sua popularidade internamente. Se por um lado, Merkel é vista como uma competente liderança, no fim das contas, sua figura é consagrada por promessas demagógicas que nunca se concretizam. O drama dos refugiados é só a ponta desse iceberg.
Fuga covarde
Em 2015, a chanceler ganhou manchetes pelo mundo como a mãe dos exilados que tentavam chegar à Europa. Prometeu receber um milhão deles em seu país. Após seis anos, menos de um quarto disso conseguiu se formalizar junto à desumana burocracia alemã. Os afegãos, por exemplo, estavam sendo enviados (deportados) de volta até dias antes da retomada de Cabul pelos talibãs. Afinal, tratava-se de um país “pacificado”, segundo a classificação utilizada pelo ministério das relações exteriores (Auswertigesamt).
A fuga acovardada das tropas alemãs, ao fim de 20 anos de ocupação militar no Afeganistão, foram a prova inegável da farsa que o marketing político do governo em Berlim tenta negar. Não só para os que já viviam na Alemanha. Milhares de pessoas que por duas décadas ajudaram os alemães como tradutores, interpretes e negociadores foram simplesmente deixados para trás.
Passivo geopolítico
Quem assumir o poder nos próximos meses herdará um passivo geopolítico considerável e uma situação nada confortável. Independente de partido, já que o sistema parlamentarista alemão possibilita que, mesmo derrotada, a CDU consiga articular uma coalizão em torno de si para manter o poder central em sua mão, os desafios são imensos.
Além da deterioração do ambiente interno, causado pela piora das condições de vida dos mais pobres, o grande problema vem do cenário internacional. O discurso de vanguarda humanista dos alemães já não consegue mais esconder sua dupla moral. Basta mencionar sua crítica a governos autocráticos ou com tendências e abordagens antidemocráticas, dos quais depende cada vez mais.
Da Rússia, por exemplo, compram cada vez mais gás natural, principal combustível para fazer valer sua política de combate à mudanca climática. Acaba, inclusive, de concluir o projeto do Nordstream 2, gasoduto submarino para trazer o gás diretamente pelo mar Báltico, eliminando o desconfortável e instável atalho pela Ucrânia e Polônia.
Do Brasil vem a maior parte da soja que alimenta os porcos criados internamente pela indústria de carnes. Essa mesma indústria depende em sua maior parte de trabalhadores temporários, que recruta através de atravessadores nos países do leste, e que recebem salários até três vezes menores que o salário mínimo de um trabalhador alemão.
Da China, principal parceiro comercial, depende visceralmente, tanto para suas compras de produtos, peças e insumos industriais, quanto para a venda e inovação de tecnologias de ponta. O caso da Huawei, no setor de telefonia é emblemático. A empresa é parceira na venda e desenvolvimento de inovações digitais de empresas como a Deutsche Telekom.
Espinho no olho
A crescente dependência alemã da Rússia e da China é como um espinho no olho para os Estados Unidos, tradicional parceiro estratégico e principal rival de ambos no mundo inteiro. Os norte-americanos, sob a escusa da OTAN, mantém uma base militar, e um sistema de foguetes nucleares intercontinentais dentro do território alemão. A notória base de Ramstein é volta e meia alvo de campanhas pacifistas, que pregam o seu desmantelamento. Mas até hoje nenhum político do governo encampou seriamente a proposta.
Dentro da Europa o cerco se fecha sob a batuta dos franceses, históricos defensores de uma maior autonomia militar da Europa frente aos Estados Unidos. Essa tendência anti-americanista deve ganhar mais força depois do tombo comercial sofrido pelos franceses no negócio da venda de submarinos militares para a Austrália em setembro. Vale lembrar que é por explicito desejo do governo francês, que os alemães mantêm dois mil soldados estacionados no Mali, em mais uma “missão de paz” das grandes potências do ocidente.
Costurar negociações e ações positivas nesse cenário antagônico será o grande desafio do herdeiro de Angela Merkel.