É a 29º viagem do glaciólogo gaúcho Jefferson Cardia Simões aos pólos. Ele sempre veraneia no gelo: foi duas vezes ao Ártico e 27 à Antártica.
Aos 66 anos de idade, professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, esse cientista estóico, como ele mesmo se considera, vai e volta do gelo com a maior naturalidade.
Concedeu esta entrevista exclusiva apenas três dias após seu retorno a Porto Alegre (RS) em sua sala na Faculdade de Geografia da UFRGS em meio a um alerta da Defesa Civil gaúcha de alerta extremo de calor.
“Sou uma pessoa estóica, posso ficar dois meses fora de casa, mas quando volto assumo minha rotina e minha função de marido, pai e avó”. Simões é casado há mais de 40 anos, tem dois filhos e dois netos.
Nesta última missão, a Internacional Circum-Navegação Costeira Antártica (ICCE), que regressou ao Brasil no dia 31 de janeiro, Simões foi o chefe da expedição e coordenou 57 cientistas de sete países (Argentina, Chile, China, Índia, Peru, Rússia e Brasil).
O trabalho foi a bordo do navio quebra-gelo Akademik Tryoshnikov, que navegou 27,1 mil km nos 69 dias da expedição. O navio pertence ao Instituto de Pesquisa Ártica e Antártica de São Petersburgo, na Rússia.
Os dois meses de navegação em mares da Antártica, confirmaram para o pesquisador tudo aquilo que as evidências científicas já haviam indicado: as geleiras estão derretendo, a água do mar está ficando cada vez mais ácida, a fauna e a flora estão sofrendo alterações, assim como as correntes marítimas e as comunidades costeiras, que serão fortemente afetadas.
As regiões polares são mais sensíveis às mudanças climáticas e elas dão sinais claros do que está acontecendo. O derretimento das geleiras expõe as rochas e elas aquecem a região porque propagam calor.
Quais foram os objetivos da missão?
O objetivo número um foi obter informações sobre a movimentação do gelo nas bordas do continente antártico, porque este gelo pode estar dinamicamente instável. São milhares de toneladas que podem ter um deslocamento abrupto e provocar uma turbulência sem precedentes no mar, algo como um tsunami. O segundo objetivo foi averiguar o nível de salinidade do mar, porque ele está mais ácido.
A pesquisa já identificou que a água do oceano austral está mais ácida devido a concentração de CO2. Isto porque o gelo que cobria a água do mar derreteu. Esse gelo funcionava como um isolante térmico. Sem essa proteção, a água do mar absorveu o CO2 que existe na atmosfera, a maior parte dele produto da interferência humana. As regiões polares são mais sensíveis às mudanças climáticas e elas dão sinais claros do que está acontecendo. O derretimento das geleiras expõe as rochas e elas aquecem a região porque propagam calor.
As geleiras polares perderam 30% de sua área e as geleiras não polares, como as da Cordilheira dos Andes, por exemplo, perderam 40% de sua área, expondo pedras, gerando calor, provocando inundações no início do fenômeno, e agora escassez hídrica para as comunidades que vivem na base da montanha.
Como foi o trabalho em equipe com tantas nacionalidades envolvidas?
Essa foi a primeira vez que cientistas brasileiros atuaram na Antártica Oriental. O envolvimento de tantos países com o mesmo objetivo é, para mim, um exemplo de “diplomacia da ciência”, houve muita cooperação e entrosamento. Interessante notar que os sete países a bordo do navio eram aqueles que deram início ao BRICS, que é um esforço de cooperação econômica entre nações. O trabalho de pesquisa se valeu de balões atmosféricos para realizar a coleta de dados que permitirão entender melhor a formação das frentes frias e dos ciclones extratropicais, além da coleta de materiais, que são os testemunhos de gelo, e de amostras de água do mar, de neve e do solo.
A Antártica tem 90% do gelo do mundo. 1% de derretimento representa um aumento de 60 cm no nível do mar. Imagine isto em algumas décadas, comunidades costeiras irão desaparecer, assim como várias ilhas. Cenários mostram que o nível do mar poderá subir 7m até o ano de 2100. O gelo antártico tem até 2 km de espessura, são cerca de 27 milhões de km cúbicos de gelo na Antártica, o suficiente para cobrir o Brasil com um manto de gelo de 3 km de espessura em toda a sua extensão. O território brasileiro tem 8,5 milhões de km quadrados.
Atualmente existe mais consciência sobre as mudanças climáticas em curso?
A questão do meio ambiente é global e os pólos estão inseridos na nossa vida, assim como a Amazônia e o Pantanal, por exemplo, há uma interdependência. Mudanças climáticas sempre existirão, mas é necessário reduzir o impacto sobre o clima imediatamente. Mesmo diminuindo o impacto que já provocamos, o nível do mar subirá 30 cm até o ano 2100.
No Brasil, de um modo geral, as pessoas pensam que a mudança climática está relacionada aos biomas verdes, como a floresta da Amazônia ou a flora do Cerrado. Mas tudo está relacionado, os fatores do meio ambiente são globais. Não há uma discussão relevante sobre mudança climática nas COPs (Conferências do Clima) eu nunca fui convidado para uma Conferência Internacional do Clima e nem devo ir na COP 30 (de 10 a 21 de novembro, em Belém, no Brasil). As COPs são eventos políticos, não são de ciência.
Há um visível derretimento do gelo no Ártico e uma disputa envolvendo várias nações. O que isso significa?
A navegação marítima é afetada com o degelo do mar no Ártico, surgem novos portos, novas rotas comerciais, nova geopolítica e até a militarização em novas fronteiras. O Ártico aqueceu cerca de 4 graus e abriu uma nova passagem marítima. Em breve, o mar congelado deixará de existir nos meses do Verão no hemisfério norte . E assim não haverá mais o albedo, que é o reflexo do Sol na neve, então o Sol vai aquecer diretamente a água do mar, modificando correntes marítimas, fauna e flora.
Na nova geopolítica, com a passagem marítima Nordeste, acima da Sibéria, o tempo das viagens comerciais de navio será reduzido em 10 dias, resultando em uma economia de 100 mil dólares, por embarcação, a cada viagem. Os navios não precisarão mais passar pelo Canal de Suez, no Oriente, ou pelo Cabo da Boa Esperança, na África, para dar a volta ao globo.
Mais ou menos 70% do Ártico é da Rússia, que vai estender sua plataforma continental em mais 350 milhas. O Ártico tem 6 países com costa territorial: Rússia, Estados Unidos (via Alaska), Canadá, Dinamarca (via Groenlândia, território autônomo), Islândia e Noruega. O Ártico também inclui os territórios de Svalbard, uma ilha administrada pela Noruega, e Nunavut, um território autônomo do Canadá. E vem daí toda a recente discussão do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que quer anexar territórios para expandir sua geopolítica. É a nova colonização. Para quem especula como ganhar mais dinheiro, a mudança climática não importa, é encarada como uma consequência para as futuras gerações, não agora. Uma visão simplista.
Qual o custo para realizar uma missão de tamanha importância e envolvendo tantos países?
Conseguimos um financiamento de 98% do projeto, cerca de 6 milhões de euros, da fundação franco-suíça Albédo Pour da Cryosphére e contamos com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico- CNPq, e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul- Fapergs.
O degelo fortalece negócios
A Rússia detém a maior extensão litorânea no Ártico, ao longo da qual se estende a Rota Nordeste do Mar, a principal passagem da região. Em seguida, o Canadá possui a segunda maior costa, onde está a chamada Passagem Noroeste. Vivem diversas comunidades tradicionais na região. O Ártico é uma região rica em minerais, com destaque para a abundância de petróleo e gás. O Ártico também se destaca por ser uma área militarmente estratégica.
A região teve papel fundamental durante a chamada Guerra Fria, por conta da proximidade geográfica dos Estados Unidos com a Rússia, via Alaska, e bases militares foram construídas na região. Com parte do derretimento do Ártico, o mundo do capital vê uma oportunidade de negócios. Não existe um acordo de proteção do Ártico, só existe para a Antártica, que está protegida até 2048. E depois, o que acontecerá?
* Jefferson Cardia Simões Faz parte de diversas entidades internacionais de ciências, como o Commttee on Antartic Research (SCAR/ISC). Obteve o PhD pelo Scott Polar Reserch Institute, University of Cambridge, Inglaterra, em 1990.