Cleber Dioni Tentardini
Nos dias 5 e 6 de maio deste ano, no pico da enchente, uma equipe de pesquisadores dos Institutos de Geociências (IGEO) e de Pesquisas Hidráulicas (IPH), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mediu a velocidade da corrente de água no Guaíba, próximo à Usina do Gasômetro, em quatro metros por segundo, e uma vazão de mais de 30 milhões de litros por segundo, ou 30 mil metros cúbicos por segundo.
Um dos coordenadores do trabalho, o geólogo e professor Elírio Toldo Júnior, disse que só no rio Amazonas encontrou aquela velocidade. O normal, quando um rio está correndo muito, é de um metro por segundo.
A equipe da Universidade voltou às águas do Guaíba no dia 13 de junho. Técnicos, professores e um aluno embarcaram equipados para coletar amostras, verificar sedimentos e medir a vazão e nível das águas em um trecho de 800 metros, do mesmo ponto próximo à usina até a Ilha da Pintada.
O jornal JÁ acompanhou o trabalho e conversou com o professor Elírio, sobre as implicações de os órgãos públicos continuarem monitorando o Guaíba como um lago, e não um rio.
Rio ou lago Guaíba, qual a relevância dessa discussão?
Isso faz toda a diferença. Desde as leis que regulam a ocupação das cidades, manejo ambiental, extração de areia, por exemplo, até as medidas de controle das águas. O lago tem menos proteção ambiental. Do ponto de vista econômico, o lago é melhor porque pode construir próximo às margens.
Quais são as evidências de que o Guaíba é um rio?
Nos últimos anos, vem se falando muito na imprensa que o Guaíba é um lago. Mas quem sustenta essa tese não apresenta evidências da circulação lacustre, ou bidimensional, que ocorre apenas na superfície da água, de margem a margem e de Norte a Sul. Essas são as duas dimensões de um lago. Até hoje nunca li alguma publicação científica que aponte o funcionamento do Guaíba como lago. A circulação lacustre é controlada pelo vento. A forçante é o vento. Isso foi colocado no papel de forma inconsequente, sem sustentação alguma, conclusões de gabinete.
Os estudos que fizemos em vários pontos do Guaíba mostram que a circulação é tridimensional, de margem a margem, de Norte a Sul e da superfície até o fundo. Esse escoamento é fluvial tanto no Gasômetro como na Ponta do Dionísio ou lá na Ponta Grossa e em outras sessões do Guaíba. Todas apresentam o mesmo padrão de circulação fluvial. Registramos isso com instrumentos. A vazão é a mesma nos diferentes pontos, o que muda é a velocidade das águas, de acordo com a distância entre as margens. Na frente do Gasômetro, onde essa distância é menor, cerca de 800 metros, as águas passam mais rápido.
Não existe água parada no Guaíba?
Parece estar parada entre os canais, justamente onde se nota mais poluição. É que a troca da água no Guaíba é de uma semana, em média. Durante as enchentes, foi menos de um dia. Se fosse lago, seria muito mais demorado porque a forçante seria o vento, como ocorre na Lagoa dos Patos. No Guaíba, é a gravidade que acelera a troca. Do Navegantes até Itapuã, o Guaíba tem a declividade de dois metros. Imaginar o Guaíba como um lago, com águas paradas, já teria se tornado uma gigantesca fossa, com acúmulo de esgoto cloacal. Ele só não é tão poluído por causa da renovação das águas. O canal que atravessa o fundo do Guaíba controla o escoamento das águas. O problema é que o esgoto está sendo empurrado para a Lagos dos Patos e, depois, para o oceano.
O Guaíba é um local de trânsito das águas e dos sedimentos da chuva que cai no Planalto, por exemplo, então, essa água vai ficar pouco tempo no Guaíba. Nós medimos nos dias 5 e 6 de maio, durante o pico das enchentes, o volume de água descomunal cruzando o Guaíba: foram mais de 30 milhões de litros por segundo. A média de vazão aqui é entre 1 e 2 milhões de litros por segundo. Portanto, o Guaíba não é um reservatório de água, mas um curso hídrico.
Nas cataratas do Iguaçu, o rio Iguaçu é semelhante ao tamanho da bacia do rio Guaíba. Lá tem 82 mil km² e a mesma região climática. E o máximo já medido de vazão foi de 24 milhões de litros por segundo. O Guaíba só não tem as cataratas porque as características do terreno são diferentes.
Se a superfície d’água no Guaíba apresenta declividade, basta manter apenas uma régua fixa para monitorar o nível de água?
A régua da SEMA (Secretaria Estadual de Meio Ambiente), apenas uma para monitorar o nível de água, é um equívoco. Manter um ponto de monitoramento para todo o Guaíba como se fosse um lago, é um negacionismo absurdo. A régua que estava na altura da Rodov0iária inundou, e ficou inutilizada, embaixo da água. Agora tem uma na frente do Gasômetro. A SEMA transferiu a cota do Cais para a Usina, usando o conceito do plano horizontal da superfície d’água. Um erro que a Secretaria não reconheceu até agora. Ora, se a superfície é inclinada, como um ponto apenas vai ser suficiente para monitorar o nível? Isso explica porque algumas regiões da cidade inundaram mais que outras. Um aumento de três metros do nível do Guaíba é bem maior no início do declive do que no final. Então, o nível do Guaíba ficou mais alto na Zona Norte do que na Zona Sul. O desnível entre esses dois pontos é da ordem de dois metros. Essa variável não foi ponderada para avaliação dos impactos das enchentes. Portanto, ele não pode ter a mesma cota de inundação em todos os pontos devido à inclinação da superfície da água. Mas, as autoridades não nos ouvem.
Além de lago, se falou que o Guaíba seria um estuário.
O Guaíba só não é um estuário porque a Lagoa dos Patos é de água doce. O Guaíba é um rio em evolução. O rio que completou o ciclo de crescimento, amadurecimento e se tornou um rio das nascentes até a foz é o Camaquã. O Guaíba está crescendo. Esses canais entrelaçados que têm aqui no porto, estão descendo em direção a Itapuã. Quando chegarem a Itapuã daqui a centenas ou milhares de anos, lá será construído um delta como o Camaquã fez.
A proibição ou redução da atividade de extração de areia do rio Jacuí pode provocar assoreamento e contribuir com as cheias?
O Jacuí tem uma mineração de areia histórica. A extração de areia altera a estabilidade das margens, do talude, cria desequilíbrios e retira a identidade do rio, que é o canal. Perde a configuração do canal no formato em ‘v’, portanto mais profundo na parte central. E passa para a configuração em ‘u’. O fundo fica achatado. E isso tem implicações no escoamento, mas não tenho dados para associar isso às inundações nas margens do Jacuí.
E circulam muitos sedimentos?
Há 12 anos, quando começamos a estudar a carga de sedimentos que a Bacia do Guaíba carrega para o mar, do ponto de vista geológico, interessa saber quanto vai de areia. Começamos a investigar o Jacuí porque esse rio produz um volume fenomenal de areia, sempre produziu, milhões de anos. Sempre contribuiu para construção da plataforma continental.
Quando a carga de sedimentos chega na Lagoa dos Patos, ela se dispersa porque não tem mais aquele direcionamento de jato que adquire no Guaíba. Na Lagoa, a taxa de deposição dessa lama é muito alta, cerca de seis metros. Uma parte menor fica no Guaíba, sendo que seu canal está preservado.
O rio Jacuí termina de trazer sedimentos para a zona costeira em Itapuã. As evidências geológicas são incontestáveis. Isso é unânime na nossa equipe de trabalho. Quando a gente começou a fazer as conexões desses rios, na década de 80, iniciamos pela Lagoa dos Patos. E mais recentemente entramos no Guaíba, que é a parte final de um sistema hídrico que leva sedimentos para a zona costeira, a Lagoa dos Patos. Portanto, a intenção de separar o Guaíba da bacia hidrográfica é um problema.
Onde começa a Bacia Hidrográfica do Guaíba?
O local mais distante são as cabeceiras do rio Jacuí, na região de Soledade, Passo Fundo. Ele desce e encontra os rios Taquari, Caí, Sinos e Gravataí. Essa rede de drenagem que chega ao Guaíba tem mais de 80 mil km². Toda gota de chuva vai parar no Guaíba. A Bacia é que controla o volume e o tipo de sedimentos que atravessa o Guaíba. Depende de onde está chovendo. Se chove no Planalto, vai vir uma grande carga de sedimentos, e quando chove na área central e nos afluentes da margem direita do Jacuí, vem menos sedimentos. Devido ao tipo de rocha. Então, aquele conceito de lago, que o Guaíba tem vida própria, não é verdade, ele reflete tudo o que acontece na Bacia.