Cleber Dioni Tentardini
A Fundação Cultural Palmares, do governo federal, reconheceu, em 2007, o direito às terras do Quilombo da Anastácia, um dos três existentes no município de Viamão.
A sede regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) realizou estudos de identificação e delimitação e avalizou a comunidade quilombola, mas faltava a decisão final do Incra em Brasília para que os moradores ganhassem o direito a receber os títulos de propriedade.
A decisão veio no dia 20 de novembro de 2023. Nesse Dia Nacional da Consciência Negra, o Incra reconheceu 29 comunidades quilombolas, incluindo as 16 famílias da Anastácia, que ganharam o direito à propriedade de pouco mais de 64 hectares.
Uma empresa catarinense produtora de arroz no local, no entanto, contestou o laudo, reivindicando a propriedade de parte das terras onde está o quilombo, mas o Conselho Diretor do Incra confirmou o direito da comunidade.
O sociólogo Sebastião Henrique Lima, responsável pelo setor de regularização de territórios quilombolas no Incra/RS, explica que a publicação da Portaria encerrou o processo administrativo.
– A sede regional do Instituto está providenciando um histórico de todo o processo para enviar à Superintendência do Incra, onde será revisado e, se tudo estiver certo, encaminhado à Casa Civil para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assine o decreto, detalha Lima.
A partir da desapropriação de parte da área pertencente à empresa agrícola, o Incra registra em cartório o imóvel em seu nome e deposita em uma conta judicial o valor a que tem direito a antiga proprietária.
MP concluiu inquérito sobre conflitos no uso da água
No decorrer do processo, as famílias da Anastácia sofreram assédios da produtora de arroz Fazenda Embireira Agroflorestal, que descumpriu acordo feito com os moradores para poder captar água na parte da lagoa que está dentro dos limites do Quilombo. A lagoa é uma planície de inundação do rio Gravataí.
“Não pagavam pelo uso da água e ainda fecharam um canal na lagoa, que dá acesso ao Quilombo. Antes recebíamos turistas, vendíamos lanches, inclusive hospedávamos alguns casais, que ficavam encantados com nosso quilombo, queixou-se Berenice Gomes de Deus, uma das lideranças da comunidade.
Berenice é neta de Anastácia de Oliveira Reis, que dá nome ao quilombo, e bisneta de Hortência Marques de Oliveira, que viveu como escrava naquela região da Estância Grande.
O Ministério Público do Estado, através da Promotoria Regional da Bacia do Gravataí, instaurou inquérito civil para acompanhar os conflitos em uso de área de sobreposição entre o quilombo e a produtora de arroz.
A promotora de Justiça Roberta Morillos Teixeira diz que, à princípio, os moradores negaram interesse em novo acordo porque a empresa não cumpriu com as contrapartidas, mas depois de algumas reuniões, chegaram a um denominador comum.
– Paralelo a isso, a Promotoria conduziu investigações por descumprimento das condicionantes do licenciamento pela Fazenda Embireiria e pelas outorgas de uso da água. E acompanhamos também as medidas administrativas da Fepam e da SEMA.
A empresa Fazenda Embireira Agroflorestal foi multada pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler (Fepam) por construção de canais novos sem licença de operação.
A região onde está o quilombo e a produtora de arroz, a Estância Grande, está dentro da Área de Proteção Ambiental do Banhado Grande (APABG).
Um parecer da equipe técnica e gestora da APABG identificou a área como sendo de extrema sensibilidade ambiental e social, uma vez que segundo o Plano de Manejo, tem porção de área dentro da zona de adequação ambiental e zona de uso restrito do Banhado.
Referente às questões sociais, insere-se entre duas comunidades tradicionais, o assentamento Filhos de Sepé e a comunidade Quilombola da Anastácia.
O documento assinado pelas analistas ambientais da SEMA a bióloga Cecília Schuler Nin e engenheira agrônoma Letícia Vianna, gestora da APA, determinou uma série de condicionantes à Fazenda Embireira sob pena de revogar a autorização emitida pela unidade de conservação para continuar suas atividades.
Quilombo Anastácia – Relatório de Fiscalização
– O empreendedor descumpria o licenciamento ambiental e, por consequência, os alvos de conservação da APA do Banhado Grande, e somado a isso, omitia o conflito com a área do quilombo dentro do processo de outorga, bem como desrespeitava a área dessa comunidade, registrou o parecer.
O novo presidente da associação de moradores do quilombo, Willian Santos, diz que representantes da empresa reuniram-se com a comunidade para que a Fazenda pudesse continuar puxando água da Lagoa da Anastácia e que o canal construído sem autorização, causador das desavenças, seria fechado caso prejudicasse o acesso ao quilombo pela lagoa.
– Com as enchentes, o canal ficou submerso. Mas se houver estiagem e o canal aparecer, a empresa terá que fechar. Mas, realmente, acho que ficou mais difícil até para empresa renovar a outorga a fim de continuar usando água da lagoa, adverte.
os representantes da empresa agrícola não foram localizados pela reportagem.
Willian é filho de Zadir Eloísa dos Santos, uma das netas da Anastácia. Ele mora em Gravataí e trabalha em Porto Alegre como micro empreendedor no ramo de estética automotiva. Visita seus familiares no quilombo nos finais de semana.
– Além da titulação das terras, temos que lutar por melhorias na infraestrutura na região onde está o quilombo, posto de saúde, transporte público acessível, escola, e promover o turismo, com o retorno, por exemplo do Barco-Escola Rio Limpo que visitava o quilombo, e outras iniciativas, afirma Santos.
Dona Berenice diz das mais de cem pessoas que moravam, permanecem trinta.
– É tudo muito difícil, por isso ficaram os velhos, que não precisam mais trabalhar, diz a líder quilombola.
Anastácia era baixinha braba
Dona Berenice é neta da Anastácia de Oliveira Reis, que dá nome ao quilombo, e bisneta da Hortência Marques de Oliveira, que viveu como escrava nessa região da Estância Grande.
– Convivi com a vó até os 25 anos. Era bem baixinha e braba, principalmente com quem judiava dos netos, mas cuidava de todos, conhecia os chás, as simpatias, ninguém precisava ir no médico”, recorda.
A artesã lembra das histórias que sua vó contava sobre a Hortência ajudar na fuga de escravos pelo rio Gravataí, principalmente os homens, que eram surrados e assassinados com frequência.
– Ela ajudava a atravessar para o quilombo Manuel Barbosa, em Gravataí, conta a bisneta da Hortência.
Antigos moradores
Os primeiros europeus chegados nos Campos de Viamão no início do século 18 trouxeram negros escravizados.
Alguns registros apontam que o estancieiro viamonense Serapião José Goulart, um dos maiores proprietários de terras do município, dono da fazenda Boa Vista – em cuja sede, no início do século 19, pernoitou o viajante August Saint-Hilaire -, tinha entre seus escravos a Hortência, mãe da Anastácia.
Faltam políticas públicas para os quilombolas
Dos 134 quilombos em 69 municípios gaúchos, os quilombos em Viamão estão entre os mais atrasados devido à falta de políticas públicas.
Além do Anastácia, há o Cantão das Lombas, na divisa com Santo Antônio da Patrulha, com 28 famílias em 154,75 ha, cujo processo de regularização está tramitando desde 8 de dezembro de 2021, e do Capão da Porteira, na divisa com o município de Capivari.
O biólogo Jorge Amaro, primeiro vereador quilombola, eleito pelo PP no município de Mostardas, morou mais de vinte anos em Viamão e conhece bem a realidade das comunidades.
Embora os quilombolas de Mostardas tenham sido reconhecidos há muito mais tempo e estão organizados em associações e dispõem de muita infraestrutura, os de Viamão não estão inseridos sequer nas políticas públicas de auxílio aos moradores.
– A Prefeitura e outras entidades têm que ajudar. A UFPEL e a FURG, por exemplo, oferecem cotas universitárias para quilombolas, e auxiliam na moradia, alimentação, transporte, então porque outras instituições de ensino em Viamão, Porto Alegre, não podem contribuir também, questiona o vereador.
Ausência de trajetórias
A antropóloga Vera Rodrigues da Silva abordou o Quilombo da Anastácia na sua dissertação de mestrado, apresentada em 2006, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da UFRGS. O título: “De gente da Barragem” a “Quilombo da Anastácia”: Um Estudo Antropológico sobre o Processo de Etnogênese em uma Comunidade Quilombola no Município de Viamão/RS.
Suas pesquisas sustentaram a titulação das terras para os descendentes de negros escravizados daquela localidade.
– Comecei a pesquisar no final dos anos 1990, e estavam em discussão duas ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras: as cotas raciais e os direitos territoriais das comunidades quilombolas.
– Isso sempre me incomodou nas trajetórias negras, que é justamente a ausência de trajetórias. Na mídia, na ciência, de um modo geral, parecem que as pessoas negras brotam do chão, não tem ancestralidade, raiz, história. Então, esse foi meu tema na monografia de graduação. E no mestrado, em 2006, já havia a expectativa de titulação das terras, e isso levaria segurança jurídica aos quilombolas, porque havia espoliação, apropriação ilegal de terras, como eu ouvi dizer: “as cercas andam na madrugada”. Mas como estávamos numa época em que a política pública se desenvolvia no país, a pergunta era: como uma política pública de direitos quilombolas se desenvolve no “estado mais branco do Brasil”?
Anastácia nasceu em 1896, portanto era livre (Lei do Ventre Livre é de 1871 e determinava que os filhos de escravas nascidos posterior àquela data eram livres). Já, a abolição da escravidão em Viamão ocorreu em 1884, anterior à Lei Áurea, de 1888.
Nos idos de 1870, dentre os 1.028 habitantes de Viamão, 749 eram negros, cerca de 70% do contingente populacional. (Fonte: MONTI, Verônica. “O Abolicionismo: 1884 sua hora decisiva no RS”, 1985). Hoje, 44% de 250 mil habitantes são considerados negros.
Dos 106 processos no Estado, apenas um tem a titulação integral do território
“Há 106 processos abertos para regularização de quilombos na superintendência do Incra no Rio Grande do Sul. Apenas quatro comunidades foram tituladas, mas mesmo assim, destas, em três a titulação do território é parcial, pois aguardam a conclusão das ações desapropriatórias. O Título de Domínio emitido pelo Incra é coletivo, em nome da associação de moradores.
O Quilombo Casca, em Mostardas, por exemplo, com 85 famílias, tem pouco mais da metade (51%) da área de 2.300 hectares concluída.
Os demais são Família Silva, em Porto Alegre (12 famílias, em 0,65 ha – 35%), o Rincão dos Martinianos, em Restinga Seca (55 famílias, em 98,5 há – 27%), a Chácara das Rosas, em Canoas (20 famílias em 0,36 há – 100%).
O Rincão dos Caixões, em Jacuizinho (22 famílias em 226,16 ha). ainda está em fase de desapropriação. O Incra está na posse do território e a comunidade está usufruindo integralmente a área, mas ainda não foi titulada.
O maior quilombo com processo em andamento no Estado é o Morro Alto. Desde 2011, 456 famílias reivindicam 4.564,4 hectares nos municípios de Maquiné e Osório.
Em Viamão, duas das três comunidades quilombolas estão com processo em curso, o da Anastácia e o Cantão das Lombas, 28 famílias em 154,75 ha, com processo em tramitação desde 8 de dezembro de 2021.
Nove quilombos gaúchos foram incluídos em uma Portaria no Diário Oficial do governo federal, mas as comunidades ainda não receberam os títulos das terras. São eles: São Miguel (Restinga Seca), Manoel Barbosa (Gravataí), Arvinha (Coxilha e Sertão), Cambará (Cachoeira do Sul), Mormaça (Sertão), Palmas (Bagé), Limoeiro (Palmares do Sul), Areal Luis Guaranha (Porto Alegre), e dos Alpes (Porto Alegre).
Censo 2022: Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas
Dados inéditos sobre população quilombola no país foram divulgados em julho deste ano de 2023 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), resultado do Censo 2022.
Segundo matéria da Agência Brasil, o país tem 1,32 milhão de quilombolas, residentes em 1.696 municípios.
Os quilombos Kalunga, em Goiás, e Erepecuru, no Pará, são os maiores do Brasil. O primeiro envolve 54 comunidades, com 888 famílias, em uma área de 261,99 mil hectares, e o segundo, vivem sete comunidades, com 154 famílias, em uma área de 231,6 mil ha.
O total de títulos concedidos é de 322, em 206 territórios, envolvendo 356 comunidades, 21.093 famílias e 1,090 milhão de hectares de área titulada, dos 1,513 milhão de ha reconhecidos. Significa que 72% da área reconhecida foi titulada.
Na divulgação da publicação Brasil Quilombola: Quantos Somos, Onde Estamos?’, em Brasília, o presidente em exercício do IBGE, Cimar Azeredo, considera que os números inéditos sobre esse grupo populacional são uma verdadeira reparação histórica de injustiças cometidas no passado.
“São essas populações que mais precisam das estatísticas, desses números. A gente precisa saber quantas escolas, quantos postos de saúde, coisas relacionadas à educação e tudo o que essa população quilombola precisa, como a titulação [de terras]. Os dados que estão sendo apresentados hoje, pelo IBGE, se tornam, praticamente, uma reparação histórica”. Cimar Azeredo adiantou que, brevemente, o IBGE vai apresentar informações básicas sobre pessoas indígenas e moradores de comunidades e favelas.
A representante da Organização das Nações Unidas no Brasil, Florbela Fernandes, destacou que o levantamento e a divulgação de dados sobre a população quilombola no Brasil tem um simbolismo enorme a todo o país. “A inclusão de um quesito específico para a população quilombola [no censo] representa um marco de reparação histórica importante e que serve de investigação de referência para outros países da diáspora africana”. “Essa é a primeira pesquisa oficial para coletar dados específicos sobre a população quilombola. Após 135 anos da abolição da escravidão no Brasil, finalmente, saberemos quantos quilombolas são exatamente, onde estão, e como vivem”, comemorou Florbela Fernandes.