Por Márcia Turcato
Veneno de cobra como medicamento para combater o câncer. É exatamente isso que a farmacêutica Elizândra Braganhol está fazendo com a verba de um edital público lançado com o objetivo de desenvolver novas tecnologias no Rio Grande do Sul.
Professora da UFCSPA- Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, junto com sua equipe ela realiza bioprospecção em oncologia e também em gastronomia a partir do estudo do veneno de serpentes peçonhentas e de uma planta muito comum no litoral, a salicórnia, conhecida como sal verde ou aspargo do mar.
“Tanto os peptídeos do veneno das cobras como as moléculas da salicórnia têm propriedades medicinais e podem ser utilizadas como princípios ativos de medicamentos. Acredito que, no máximo em dois anos, a pesquisa esteja concluída”, explica a pesquisadora.
Encerrada essa fase, os medicamentos entram em pesquisa clínica mediante aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), quando são testados em pessoas para avaliar níveis de segurança e tolerância.
No momento seguinte, é testada a eficácia do produto. E, se tudo der certo, na sequência os medicamentos são novamente apresentados à Anvisa para aprovação e registro.
“Já sabemos que a salicórnia potencializa a regeneração dos tecidos, ela ajuda na cicatrização, então pode ser utilizada em curativos. E o medicamento obtido do veneno de cobra poderá ser administrado de várias formas, uma delas é o spray nasal”, diz a professora Braganhol, entusiasmada com os rumos da pesquisa, realizada em rede colaborativa com as universidades do Pampa (Unipampa), de Rio Grande (FURG), de Pelotas (UFPEL), do Rio Grande do Sul (UFRGS) e de Santa Cruz (Unisc).
A professora da UFCSPA é uma referência em pesquisa oncológica. Ela é sócia e co-fundadora da BNT Medicine, uma startup que tem o propósito de desenvolver soluções avançadas para o tratamento oncológico e com ampla experiência em biologia celular e molecular e desenvolvimento de modelos pré-clínicos de patologias.
As serpentes utilizadas na pesquisa são onze, 10 delas são da Amazônia e uma é do Rio Grande do Sul, uma jararaca. O trabalho de investigação já confirmou que o veneno tem propriedades anti tumoral, ou seja, pode combater o câncer. O foco do estudo é o tumor cerebral. O uso do veneno de cobra como medicamento para o câncer é inédito no mundo. O que já existe no mercado é o uso do veneno para tratamento da hipertensão arterial.
Poucos sabem que foi em um laboratório brasileiro, em pesquisa com veneno da jararaca, que a indústria farmacêutica desenvolveu o captopril, o remédio mais usado para tratar a hipertensão arterial.
Os venenos são também uma fonte de cobiça pelo potencial de gerar riquezas e, por isso, muitas serpentes do Brasil são vítimas de biopirataria.
“Apesar do risco de letalidade do veneno das serpentes, quando ocorre algum acidente, ele também pode agir como uma rica fonte de moléculas e ser amplamente explorado em relação ao seu potencial terapêutico”, afirma a pesquisadora.
Estratégias de inteligência artificial e ferramentas de nanotecnologia serão utilizadas no trabalho para agilizar o processo e aumentar a seletividade da medicação sobre o tumor. Com a nanotecnologia o medicamento pode ser direcionado exatamente para o local do tumor, otimizando o produto e aumentando a segurança.
Aspargo do mar
A salicórnia é uma planta tolerante à água salgada e faz parte da flora costeira de muitas regiões do Brasil e de outros países de clima ameno. Ela também é conhecida pelos nomes de sal verde, porque acumula o sal existente em áreas marinhas, e aspargo do mar. A planta tem propriedades antioxidante, antitumoral e diurética e também pode ser utilizada na alimentação.
Essa plantinha é objeto de estudo na rede coordenada pela UFCSPA. A salicórnia tem um metabolismo que permite que ela sobreviva em ambientes adversos, como a zona costeira, que é um lugar de elevada salinidade. “Essa característica da planta despertou nosso interesse e já sabemos que ela tem propriedades terapêuticas para ser aplicada no tratamento do câncer”, explica a pesquisadora Elizândra Braganhol.
A professora da UFCSPA destaca que a pesquisa com a salicórnia se vale da biodiversidade do Rio Grande do Sul, valorizando o recurso existente no estado, o conhecimento científico local e impulsionando a geração de negócios a partir do desenvolvimento de medicamentos e sua colocação no mercado para beneficiar o público que precisa de um tipo específico de tratamento. O propósito do estudo é desenvolver um medicamento anti tumoral e cicatrizante.
Atualmente, para consumo na gastronomia, o aspargo do mar pode ser encontrado em alguns restaurantes do Rio de Janeiro, como o Oteque, o Grado e o Escama e também pode ser entregue a domicílio pela D’Alga. A salicórnia pode ser consumida desidratada, para salpicar nos pratos, e ao natural, como mini aspargos. Ela tem textura crocante, sabor salino e a presença do iodo, combinando muito bem com peixes e frutos do mar.
O projeto de pesquisa da professora Elizândra Bragonhol recebeu o nome de “Saúde, meio ambiente e comunicação: desenvolvendo um modelo de economia sustentável baseado em biotecnologia para a reconstrução do Rio Grande do Sul”. Ela concorreu ao edital da Fapergs*, no âmbito da recuperação do estado em consequência da enchente de 2024, e recebeu R$ 1,5 milhão, suficientes para o desenvolvimento das duas frentes de pesquisa: medicamentos a partir do veneno de cobra e da salicórnia e também para o uso da planta na gastronomia.
Para o desenvolvimento de outras fases do estudo, como a pesquisa clínica, a identificação do meio para o transporte do medicamento (pílula, injetável e/ou aspiração) a professora da UFCSPA conta com recurso do Finep/MCTI**, que também é suficiente para concluir o trabalho. Uma raridade, porque as universidades federais sofreram contingenciamento e a maioria delas reclama da falta de verba. Felizmente não é o caso da UFCAPA, que tem laboratórios equipados, funcionando perfeitamente, e prontos para entregar resultados para a sociedade.
*Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul
**Financiadora de Estudos e Projetos/Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações