Geraldo Hasse
Até 50 anos atrás, a cana-de-açúcar, a laranjeira e o cafeeiro eram os principais exemplos da fácil adaptação de vegetais exóticos ao clima e aos solos do Brasil. Aqui e ali, também se pode apontar a boa assimilação do algodoeiro, do arroz, do coqueiro, do eucalipto e da videira, plantas presentes no território nacional há pelo menos um século. Entretanto, nenhum caso foi tão rápido e intenso quanto o da soja. Em apenas meio século a leguminosa chinesa Glycine max passou por um processo de “tropicalização” sem precedentes.
[floated align=”left”]Tendo partido do zero nos anos 1960, a soja representa hoje 50% do produto agrícola brasileiro.[/floated]
O grão inicialmente cultivado em roças coloniais no clima temperado do Sul do Brasil adaptou-se de forma espantosa às terras quentes do Brasil Central, do Nordeste e da Amazônia. Nesse avanço, apresentou ainda notáveis ganhos de produtividade e de qualidade. Maior exportador mundial de soja, o Brasil pode conquistar na safra a ser colhida no primeiro semestre de 2014 o titulo de campeão mundial na produção de soja, desbancando os EUA de um reinado secular.
O mérito dessa conquista é coletivo e deve ser dividido entre pelo menos sete protagonistas:
1 – os agricultores, que apostaram sem medo na leguminosa, a ponto de dar origem a dois “reis da soja” – Olacyr de Moraes nos anos 1970/80 e Blairo Maggi na década de 1990 –, assim chamados por produzir grandes volumes em áreas da chamada fronteira agrícola, explorando terras nunca antes cultivadas;
2 – os pesquisadores, que desenvolveram novas variedades de sementes e defenderam a nova cultura de doenças e pragas;
3 – a indústria de beneficiamento da soja, que construiu plantas no rastro das fronteiras abertas pela soja;
4 – os produtores de máquinas, implementos e insumos;
5 – os importadores de soja e seus derivados;
6 – o governo, que andou na frente (oferecendo crédito farto) e vem correndo atrás (na oferta de infraestrutura);
7 – São Pedro, que mais ajudou do que atrapalhou na expansão e no fortalecimento do elo mais dinâmico da cadeia do agronegócio.
Tendo partido do zero nos anos 1960, a soja representa hoje 50% do produto agrícola brasileiro. Por tudo isso se pode afirmar que esta leguminosa rica em óleo, proteínas e outras virtudes nutricionais é a protagonista central da maior aventura agrocientífica da história da humanidade na segunda metade do século XX.
Cabe perguntar se esse fenômeno teria acontecido com outra planta. A resposta é: provavelmente não. Falando a propósito da surpreendente adaptabilidade revelada pela Glycine max no Brasil, o agrônomo Eduardo Antonio Bulisani (Jundiaí, 1945-), ex-diretor adjunto do IAC, disse a este repórter em 1996: “Não sei se houve uma tropicalização ou se, simplesmente, o deslocamento para o Brasil Central revelou um potencial genético até então apenas desconhecido na soja”.
Alguns anos antes, em 1988, quando lutava para não perder o cetro de “rei da soja”, o banqueiro e empreiteiro de obras públicas Olacyr de Moraes (Itápolis, 1931-) admitiu a um repórter da revista Veja: “No fundo devemos quase tudo ao trabalho desses rapazes, técnicos e cientistas agrícolas”. Por incrível que pareça, essa foi a primeira vez que um representante da iniciativa privada reconheceu publicamente o mérito do pessoal da pesquisa genética na expansão da cultura da soja em território brasileiro.
Olacyr tinha consciência de que não teria alcançado sucesso sem ajuda técnica no cultivo de variedades adaptadas ao clima e ao solo de Ponta Porã (MS), onde havia comprado terras virgens no início da década de 1970, quando a soja começava sua fenomenal arrancada no Sul do Brasil. Para adaptar a leguminosa aos solos ácidos do cerrado, o megagricultor emergente cercou-se de técnicos de ascendência japonesa liderados por Tuneo Sediyama (Itápolis, 1943-), PhD em genética formado na Universidade Federal de Viçosa, um dos principais núcleos de estudo da soja no Brasil.
Esforço coletivo global
A tropicalização da soja foi um empreendimento conjunto de brasileiros, orientais, europeus e norte-americanos. A lista da legião de melhoristas da soja no Brasil começa no final do século XIX com o agrônomo Gustavo D’Utra, autor do primeiro documento técnico sobre o cultivo de soja na Bahia no final do século XIX; prossegue na primeira década do século XX com o francês Guilherme Minssen, professor de agronomia em Pelotas; avança na década de 1910 com o norte-americano E.C. Craig, professor de agronomia em Porto Alegre; continua na década de 1920 com Henrique Löbbe, pesquisador do Ministério da Agricultura em São Simão, no coração da zona cafeeira paulista; na década de 1930 recebe o impulso do polonês Czeslaw Biezanko, que difunde a soja entre os colonos do norte do Rio Grande do Sul e, nos anos 1940, experimenta o esforço de propaganda de Neme Abdo Neme, do Instituto Agronômico de Campinas.
Sem dúvida, porém, é nos anos 1950 que a difusão da soja se multiplica com o entusiasmo do agrônomo paulista José Gomes da Silva, brilha no vale do Paraiba do Sul com Shiro Miyasaka e Geraldo Guimarães; evolui no Sul com Jamil Feres, João Rui Jardim Freire e Francisco de Jesus Vernetti; na década de 1960, rende tributo ao norte-americano Edgard Hartwig e curva-se diante do paulista Romeu Kiihl; e triunfa nos anos 1970 com Emidio Rizzo Bonato, Manoel Miranda, Francisco Terasawa, Johanna Döbereiner, Flavio Moscardi, Tuneo Sediyama et alllii…
Para ser completa, a lista precisaria conter muitos mais nomes. Apenas o time permanente de pesquisadores da soja mantido pela Embrapa congrega uma centena de agrônomos, que trocam informações e compartilham experimentos com entidades e empresas que trabalham pela propagação da planta no Brasil.
Dessa rede fazem parte o Instituto Agronômico de Campinas; as faculdades de agronomia de Porto Alegre, Pelotas, Santa Maria, Curitiba, Piracicaba, Rio de Janeiro, Lavras e Viçosa; o Ipagro, a Empasc, o Iapar, a Epamig e a Emgopa; e dezenas de estações experimentais oficiais e/ou campos particulares de melhoramento espalhados pelo Brasil com a cumplicidade de centenas de agricultores. Tudo isso sem contar instituições situadas nos Estados Unidos que ao longo da história colaboraram mais estreitamente com os técnicos brasileiros.
Metamorfose
A adaptação da soja ao Brasil baseou-se no melhoramento genético de um material extremamente diversificado. Aqui se plantaram sementes originárias do Japão, da Europa e dos Estados Unidos.
A maior parte das variedades comerciais introduzidas no Brasil veio dos Estados Unidos, cujos técnicos haviam coletado material diretamente na China e em outros pontos da Ásia – fato registrado no prefixo PI (Planta Introduzida) que se encontra na nomenclatura básica da soja norte-americana.
Em sua fantástica metamorfose ocidental, a Glycine max cresceu em número de cultivares, linhagens e variedades, recebendo por isso uma quantidade enorme de nomes pelos quais se tornou conhecida dos técnicos, comerciantes de sementes e agricultores.
Enquanto nos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial, muitas variedades foram batizadas com o sobrenome de comandantes militares (Lee, Davis etc.), no Brasil criou-se o costume de homenagear o lugar onde a semente revelou sua importância. Hoje no Brasil a soja possui centenas de “marcas regionais”.
Parece fora de dúvida que a primeira variedade de soja conhecida no Brasil foi a Amarela ou Comum. Num trabalho intitulado “A Soja no Brasil”, que escreveu na década de 1950 em parceria com Neme Abdo Neme e que não chegou a ser publicado em forma de livro, José Gomes da Silva anotou que a variedade Amarela ou Comum, muito cultivada pelos colonos gaúchos, chegou a ser conhecida por “Rio Grande” em São Paulo na arrancada da Campanha da Soja, no início da década de 1950, quando a variedade mais difundida entre os agricultores paulistas era a Abura, “coletada há cerca de 20 anos, por técnicos do Instituto Agronômico, entre lavradores japoneses do município de Campinas”, segundo a pesquisa de Silva e Neme.
Na realidade, soube-se depois, a Abura foi doada ao IAC em meados da década de 1930 pelo Consulado do Japão em São Paulo.
Pesquisa avança
Tanto a Amarela/Comum como a Abura eram consideradas boas produtoras de óleo para a época – com teores, respectivamente, de 18,3% e 19,37% –, mas apresentavam alguns “defeitos”, escreveram Silva e Neme: acamavam com facilidade, “soltavam” as sementes (característica das vagens conhecida tecnicamente por deiscência) e eram suscetíveis a nematóides.
Parecida com a Abura, mas melhor do que ela, segundo os dois pesquisadores do IAC, era a 455, de porte ereto e menos propícia a jogar longe os grãos. Outras variedades coletadas nas colônias japonesas do interior paulista foram as asiáticas Otootan e Chosen, citadas como “boas forrageiras”, capazes de produzir em torno de 10 toneladas de massa verde por hectare, segundo ensaios de 1952/53.
Em seu trabalho, baseado em dados do começo da década de 1950, Gomes da Silva e Neme admitem que, mesmo depois de realizar ensaios com cerca de 400 variedades de procedência norte-americana, o pessoal do IAC ainda não tinha encontrado a soja “ideal para as nossas condições”.
O que se buscava selecionar para cultivo em solo paulista eram principalmente plantas mais altas/eretas e resistentes à deiscência (visando a colheita mecânica, pois nessa época já operavam nas lavouras de grãos algumas marcas de automotrizes importadas dos EUA); que não fossem suscetíveis ao ataque de nematóides; que se mostrassem mais produtivas por área; e, finalmente, que apresentassem bons índices em dois aspectos essenciais – massa verde e teor de óleo.
Desse esforço objetivo de melhoramento genético foram surgindo nomes que merecem registro como marcos da pré-história da soja no Brasil. A nomenclatura das sementes testadas nos anos 1950 em diversos campos experimentais “cita” locais como Avaré, Araçatuba, Aliança, Morro Agudo, Pereira Barreto, Paraná – quase todas, variedades selecionadas em municípios paulistas onde estava presente o imigrante japonês chegado ao Brasil em 1908 com um punhado de grãos de soja para cultivo rudimentar em hortas.
Dessas variedades pioneiras, consideradas “rústicas”, a mais importante para o pessoal do IAC foi a Mogiana, coletada em 1947 na região de Ribeirão Preto. Não fez grande carreira. No Sul, em 1960, os técnicos gaúchos batizaram a variedade Pioneira (seleção do cruzamento Biloxi x Chosen). Também não foi longe, mas a grande aventura da transformação genética da soja no Brasil estava começando.
Liderança técnica
Em todos os casos de sucesso das sementes desenvolvidas para as condições brasileiras, a pesquisa realizada no Brasil contou com a retaguarda de cientistas de outros países, especialmente dos Estados Unidos. Henrique Löbbe, que na década de 1920 testou cinco variedades asiáticas (recebidas de um agrônomo japonês que as trouxe da Manchúria) e 59 variedades norte-americanas (adquiridas pessoalmente em viagem aos Estados Unidos) na estação experimental do Ministério da Agricultura em São Simão (SP), manteve correspondência com o agrônomo William J. Morse, responsável pelo deslanche da lavoura de soja nos Estados Unidos na primeira metade do século XX.
Num artigo publicado em 19 de fevereiro de 1928 em O Estado de S. Paulo, Löbbe afirma ter selecionado três mutações espontâneas, denominadas Jomichel, Julieta e Joalo, de ciclo vegetativo muito precoce (90 dias). Diz ainda ter obtido por cruzamento outra variedade, a Artofi, “muito produtiva, de tamanho grande e coloração original”.
Depois, nas décadas de 1930 e 1940, outros técnicos nativos ou estrangeiros contribuíram para difundir a soja no Brasil. Os mais notórios foram o polonês Czeslaw Biezanko (1895-1986), no Rio Grande do Sul, e o sírio naturalizado brasileiro Neme Abdo Neme (1908-1973), no estado de São Paulo.
De modo geral, entretanto, é praticamente unânime entre os técnicos que o nome-chave na história da soja no Brasil é o do ribeirãopretano José Gomes da Silva (1925-1996).
Evidentemente beneficiado pelo trabalho de observação, pesquisa e seleção dos técnicos mais antigos do Instituto Agronômico de Campinas e de outras instituições, Gomes da Silva deu o pulo do gato quando, recém-formado em agronomia em 1946 em Piracicaba, passou dois anos fazendo mestrado em Iowa, nos Estados Unidos, de onde voltou, no final de 1948, disposto a promover aqui a exemplar integração norte-americana entre lavoura, pesquisa, indústria e governo.
No final da década de 1940 já se sabia em São Paulo e no Rio Grande do Sul que a simples garantia de compra de uma indústria, por mais estimulante que fosse, não era suficiente para manter os agricultores no cultivo regular da soja.
Swift
O esforço da inglesa Swift para fomentar a produção de soja no interior paulista, entre 1945 e 1948, deu bons resultados mas não foi à frente, talvez por falta de uma liderança técnica que promovesse a necessária articulação entre todas as pontas do processo produtivo, especialmente entre a lavoura e a pesquisa.
Foi esse o papel de Gomes da Silva. Com sua dedicação – tão grande que lhe rendeu o apelido de Zé Sojinha – ele mostrou que, ao apontar caminhos e buscar novas saídas, o pesquisador científico possui também uma missão política.
Contratado como pesquisador do IAC, José Gomes da Silva pegou na unha o esforço da indústria de óleos por uma matéria-prima mais rendosa e segura que algodão, amendoim, mamona e girassol.
Embora articulado com a indústria, visava principalmente ao consumidor. Na convivência com os norte-americanos, havia adquirido a convicção de que a leguminosa chinesa estava predestinada a ter grande futuro no Brasil. Falava com frequência na mística da soja.
“Desde o início eu pensei na soja como alternativa proteica para sanar a deficiência nutricional das populações pobres do Brasil, especialmente do Nordeste”, disse ele a este repórter em janeiro de 1996, alguns dias antes de morrer de um ataque cardíaco.
Dono da Fazenda Baguaçu, em Pirassununga, onde desenvolveu principalmente o plantio regular da cana-de-açúcar, Zé Sojinha cultivava idéias que lhe valeram a imagem de “comunista”. Para isso contribuiu seu engajamento na luta pela democratização da posse da terra.
No início da década de 1960 ele fundou em Campinas, junto com Carlos Lorena, também agrônomo, a Associação Brasileira de Reforma Agrária, que ficou na história como um dos primeiros focos de resistência ideológica à ditadura militar implantada em 1964.
Não há como negar que a Glycine max tripudiou cruelmente sobre o idealismo socialista de Zé Sojinha. Ele acreditava sinceramente que a soja poderia fortalecer a renda das pequenas propriedades e servir como instrumento de redistribuição fundiária.
Na realidade, deu-se o inverso: cultivada em larga escala, como monocultura, a planta contribuiu especialmente para reduzir o número de minifúndios e ampliar a concentração fundiária no Brasil.