História da tropicalização da soja

A reboque dos produtores
O agrônomo Jamil Feres (Bagé, 1930-), que dirigiu a estação experimental de Veranópolis de 1961 a 1971, estabeleceu o ano de 1963 como “o verdadeiro marco” da evolução da pesquisa da soja no Rio Grande do Sul.
Segundo ele, além do trabalho do Instisoja, pesou naquele instante a decisão do governo federal de destinar recursos para o plantio de trigo. Entretanto, Feres recorda que, pelo menos em seu estado, os pesquisadores tinham então pouco respaldo das instituições onde trabalhavam. “Tudo dependia essencialmente do esforço individual de cada um”, diz ele.
Contratado em 1964 para trabalhar em Passo Fundo, Emídio Rizzo Bonato (Marau, 1942-), formado em agronomia em Pelotas, lembra que nessa época, no Rio Grande do Sul, os pesquisadores andavam a reboque dos produtores, que lhes cobravam resultados. Abertos à mecanização das lavouras, os sojicultores eram naturalmente receptivos às inovações técnicas.
Foi a demanda do campo que, em meados da década de 1960, forçou a implantação de um programa federal de melhoramento por hibridação. O foco principal das pesquisas, coordenadas pelo Ipeas (novo nome do velho IAS), era o maior rendimento das colheitas, mas se buscavam também novas informações sobre adubação, espaçamento, controle das chamadas ervas daninhas e combate a pragas e doenças.
Ao lado de Bonato, nas estações experimentais do Sul, já trabalhava uma numerosa equipe que apresentaria os primeiros resultados concretos no final dos anos 1960, quando foi lançada a cultivar Campos Gerais (Arksoy x Ogden), de ciclo curto (108 dias), indicada para a rotação com o trigo no Paraná. Em 1971, como resultado do mesmo trabalho, saiu uma cultivar para Santa Catarina, a IA-3 Delta (Ogden x CNS), de ciclo longo (155 dias). Em 1972, surgiram as duas primeiras para o Rio Grande do Sul: IAS-1(Jackson x D49-2491) e IAS-2[Hill x (Roanoke x Ogden)].
Rainha do Cerrado
A Universidade Federal de Viçosa entrou no jogo em 1963, quando montou um projeto de pesquisa de adaptação da soja ao cerrado, com base num acordo tecnológico com a Purdue University, dos Estados Unidos. Situada numa região pouco propícia à agricultura mecanizada, perto de Belo Horizonte, a UFV arranjou com agricultores do Triângulo Mineiro uma área de 100 hectares no município de Capinópolis.
Ali implantou um centro de experimentação, pesquisa e extensão, com resultados práticos já em 1969, ano do lançamento das variedades Mineira e da Viçoja. Ambas são irmãs (por parte da variedade Improved Pelican, introduzida no Brasil em 1951 por José Gomes da Silva) e provêm de sementes selecionadas de cruzamentos feitos nos Estados Unidos. A Mineira é parente da Santa Rosa, divisor de águas no Brasil. A Viçoja aparenta-se com a Lee, considerada uma espécie de marco divisório da história mundial da soja.
Ampliada depois com variedades identificadas com o prefixo UFV, a genealogia mineira da soja produziu dezenas de sementes próprias para o Centro-Oeste. Foi de Viçosa que saiu a maior parte das sementes usadas pelo “rei da soja” Olacyr de Moraes na Fazenda Itamarati, no Mato Grosso do Sul. A maior estrela originária de Minas, porém, foi a Cristalina, testada em solo próximo de Brasília. Lançada comercialmente em 1981, tem a marca de seu criador, o agrônomo Francisco Terasawa (Ponta Grossa, 1939).
Formado em Curitiba em 1963, Terasawa trabalhou no departamento de pesquisa agropecuária do Ministério da Agricultura, em Londrina, até 1972, quando, ao trocar o serviço público pela iniciativa privada, fundou a FT Pesquisas e Sementes. Nesse ano comprou em Douradina (MS) sementes resultantes da primeira multiplicação da variedade UFV-1. Semeou-as em seu sítio em Londrina e selecionou seis plantas que se destacaram do conjunto.
Denominou-as M-2, M-3, M-4, M-5, M-6 e M-7, promovendo a seguir cruzamentos com variedades norte-americanas. Da cruza da M-4 com a Davis nasceu enfim a FT-Cristalina, testada na Fazenda Vereda, aberta em 1972 em Cristalina pelo fazendeiro paulista Luiz Souza Lima (Mococa, 1915), um dos pioneiros da soja no cerrado goiano.
Da mesma época e de linhagens semelhantes são as variedades Tropical e Doko, esta uma homenagem a Toshio Doko, presidente da Federação das Entidades Empresariais do Japão, entusiasta do plantio da soja no noroeste de Minas Gerais. Lançadas pela Embrapa, as duas são frutos de cruzamentos (Hill x PI 240664, de origem filipina) iniciados na década de 1960 em Campinas e concluídos em Londrina.
Polarização técnica
Essas sementes híbridas próprias para o cerrado brasileiro estabeleceram novos parâmetros de rendimento agrícola. Técnicos que trabalhavam para o IAC no cerrado do nordeste paulista contam que, no início da década de 1960, por exemplo, quando a variedade mais cultivada em Orlândia era a americana Pelican (que entrara em São Paulo em 1951 pelas mãos de José Gomes da Silva), dava-se como “papudo” um produtor de sementes que afirmasse colher “70 sacas por alqueire”, isto é, cerca de 1800 quilos por hectare (o rendimento nacional médio foi de 1100 kg/ha em 1962).
Em seguida, no início da década de 1970, quando a variedade Santa Rosa “voltou” triunfante ao solo paulista, o patamar dos campos de sementes da Alta Mogiana mudou significativamente, tanto que passou a considerar-se “atrasado” quem não conseguisse pelo menos “80 sacas por alqueire”, cerca de 2000 kg/ha (em 1972 o rendimento nacional médio foi de 1690 kg/ha).
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Com as variedades híbridas modernas adequadas ao cerrado, os campos de melhoramento de sementes dobraram o rendimento. Enquanto a média brasileira chegou a 2500 kg/ha na primeira década do século XXI, as lavouras do Centro-Oeste brasileiro produzem rotineiramente médias acima de 3000 kg/ha. Em 2002, pela primeira vez na história, o rendimento médio de soja no Brasil (2,6 t/ha) foi superior ao rendimento médio dos Estados Unidos.
Com o sucesso dos mineiros no cerrado, definiram-se três frentes de melhoramento da Glycine max no Brasil: a de Viçosa, a de Campinas e a dos pesquisadores do Ministério da Agricultura, distribuídos principalmente no eixo Londrina-Maringá-Ponta Grossa-Curitiba-Caçador-Joaçaba-Passo Fundo-Cruz Alta-Pelotas.
Ainda que a maioria dos agrônomos fosse imbuída do espírito cooperativo que move os cientistas, havia uma dificuldade para o intercâmbio de dados: a estrutura burocrática de órgãos públicos situados em regiões distintas, uns subordinados à União e outros a estados, cada um com sua história particular e interesses específicos.
Além disso, reinavam “climas” diferentes entre as instituições e suas respectivas regiões. Por aí se compreende o papel de “tertius” desempenhado por Viçosa: além de distante geograficamente, o pessoal mineiro entrou tardiamente num jogo polarizado pelo IAC em Campinas e o Ipeas em Pelotas.
Como “capitais do interior” dos estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul, Campinas e Pelotas possuíam afinidades culturais, mas entre paulistas e gaúchos pairava a sombra de desavenças políticas nascidas em 1930, quando Getúlio Vargas comandou o golpe que destituiu o presidente Washington Luís. De alguma forma, tais rivalidades ajudavam a manter certa distância entre instituições que, no fundo, tinham o mesmo objetivo: enriquecer a agricultura do Brasil.
Sem fronteiras
Em 1965, quando se tornou o chefe da Seção de Leguminosas do IAC, Shiro Miyasaka arranjou um pioneiro financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) para intensificar as pesquisas do cultivo da soja no Brasil. Foi um contrato duradouro e frutífero.
O BNDE começou ali um esforço que o levaria a fazer diversos investimentos na agricultura e na agroindústria, nas décadas de 1970 e 1980. Shiro Miyasaka revelou-se um bom executivo de pesquisa, tanto que nos anos 1970 foi para o Rio de Janeiro assessorar a direção do BNDE (que havia criado uma agência de financiamento batizada com o nome de Finep) no desenvolvimento de projetos agropecuários e de produção de fertilizantes no Centro-Oeste.
Quanto à soja, o financiamento do BNDE fez o IAC dar um salto. Miyasaka mandou construir estufas novas, comprou duas camionetas e reforçou a equipe técnica com a contratação de uma nova safra de agrônomos. Entre os escolhidos estava Romeu Afonso de Souza Kiihl (Caconde, 1942-), filho de um alfaiate, recém-formado em Piracicaba com o patrocínio da Associação Cacondense Pró-Bolsa de Estudo.
Incumbido logo de cara de uma grave missão – aprofundar os estudos sobre variedades “pouco sensíveis ao fotoperíodo” –, Kiihl foi colocado em contato com Geraldo Guimarães, o agrônomo que trabalhara com a variedade Santa Maria na estação experimental de Pindamonhangaba, no vale do rio Paraíba. Não havia mais grandes ensaios com soja por ali, até mesmo porque a estação não tinha objetivos agrícolas — fora criada em 1952 pela Secretaria de Obras para ajudar nos estudos sobre o caprichoso regime das águas do rio Paraíba.
Outra tarefa foi viajar ao Sul para coletar sementes. Nessa missão Kiihl conheceu Juarez Gutterres, o melhorista da variedade Santa Rosa. Na mesma época, em 1966, conheceu Edgard Hartwig, o descobridor da Lee, a variedade indeiscente – que não abria a vagem. Tudo parecia convergir para o cerrado.
Em viagem ao núcleo de pesquisa de Matão como consultor da Fundação Rockefeller, Hartwig dispôs-se a acolher Kiihl como mestrando em Leland, no Mississippi. No final de 1966, depois de passar no exame de seleção da primeira turma de dez bolsistas brasileiros de agronomia financiados pelo governo americano em sua Aliança para o Progresso dos países da América Latina, lá se foi Kiihl estudar com o mais importante melhorista de soja surgido nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra. “Foi um privilégio”, afirma Kiihl, que ficou dois anos lá. A bolsa era de apenas US$ 150 por mês.
Casado e sem filhos, Hartwig “adotou” Kiihl, a quem ajudava sobretudo nos sábados pela manhã, fora do expediente administrativo normal. Orientou o brasileiro especialmente na pesquisa de cruzamentos que ajudariam o Brasil a encontrar variedades adaptáveis a várias latitudes, do paralelo 30 (Rio Grande do Sul) ao paralelo 4 (Maranhão).
Curador do banco de germoplasma do Sul dos Estados Unidos, baseado na Delta Branch Experimental Station, em Stoneville, no Mississippi, Hartwig ajudou também outros brasileiros. Seu “protecionismo” ao Brasil não era bem visto por agricultores que financiavam as pesquisas.
O agrônomo Otavio Tisselli Filho (Campinas, 1948-1998), ex-diretor do IAC, cujo trabalho de mestrado levou adiante os estudos de Romeu Kiihl – foi Tisselli quem denominou “período juvenil longo” o que Kiihl chamava de “florescimento tardio em dias curtos” –, lembrou certa vez que muitos agricultores norte-americanos questionavam objetivamente a presença de tantos agrônomos brasileiros nos Estados Unidos.
Achavam que a ajuda dos cientistas ianques poderia contribuir para estabelecer futuros concorrentes em outros países. Hartwig não ligava para as pressões e abria suas anotações aos brasileiros. Convicto de que a ciência não tinha fronteiras, acreditava na expansão da soja para modernizar a agricultura no mundo.
Historinhas do sertão
Quando voltou dos Estados Unidos em 1968, Romeu Kiihl incorporou-se novamente ao IAC, onde continuou o trabalho de seleção de variedades “para todo o Brasil”. Espontâneo ou institucionalizado, o intercâmbio dos técnicos brasileiros, no Brasil e nos Estados Unidos, levou à criação, em agosto de 1971, da Comissão Nacional da Soja do Ministério da Agricultura, da qual o gaúcho Francisco de Jesus Vernetti foi o coordenador por vários anos.
Dessa comissão, responsável pelo lançamento das variedades da série BR – das mais antigas, a BR-1 e a BR-4 continuariam sendo recomendadas no final do século XX –, participavam os pesquisadores do Ipeas, técnicos de secretarias estaduais da Agricultura (incluindo-se o IAC) e também professores de faculdades de agronomia. Isso, sem contar o pessoal norte-americano de uma missão técnica voltada para o treinamento e a capacitação dos brasileiros.
Sediada em Porto Alegre, junto ao Ipagro, onde tinha como interlocutor oficial o microbiologista do solo João Rui Jardim Freire (Rio de Janeiro, 1920), a missão ianque era chefiada por Roger Benson, especialista em fertilidade dos solos; os demais eram Gleen Davis (plantas daninhas), Harry C. Minor (fitotecnia), S. G. Turnipseed (entomologia) e Paul S. Lehman.
A multiplicação das sementes era feita em lavouras de produtores-modelo sempre dispostos a colaborar com a vanguarda técnica. Romeu Kiihl, bússola sempre apontando para o Centro-Oeste/Norte-Nordeste do Brasil, conta uma historinha típica dessa coalizão entre pesquisadores e produtores:
– Em 1972 pedi ao Massamori Kage que plantasse uma linha de sementes IAC-73/2736 ao lado de sua lavoura de soja na Fazenda Vera Cruz, em Guaíra, no cerrado de São Paulo. Ele plantou – ao lado da variedade Hardee.
Era um experimento banal, mas deu resultado. Tempos depois ele me enviou um pé de soja que se destacara dos outros. Era uma mutação mais alta. Pois bem, esse pé de soja é o pai de algumas variedades boas para o Norte/Nordeste do Brasil: BR-10 Teresina, BR-11 Carajás, BR-33 Seridó…
Emidio Bonato, outro sócio militante do clube da soja, concluiu que sem essa integração da pesquisa com a lavoura não teria sido possível adaptar em tão pouco tempo variedades do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul. Hoje há tantas variedades disponíveis – por região, com variações de ciclo vegetativo (curto, médio ou longo) e resistência a doenças – que os pesquisadores acham graça do tempo em que os agricultores não contavam com muita coisa além da Santa Rosa.
E cada variedade tem sua historinha particular, com os pais, local de casamento e padrinho. Veja-se o perfil de uma variedade testada no ano agrícola 1973/74, no sertão do Cariri, no município de Sapé, na Paraíba, por um técnico da Sanbra, a pedido de Romeu Kiihl, que lhe deu sementes de IAC-73/2736. Experimento banal: os grãos foram plantados ao lado de uma lavoura da variedade Bragg.
No meio daquele bloco despretensioso veio uma planta-destaque. Kiihl recruzou as sementes dessa planta por três vezes com a Bragg, depois mais uma com Bragg e outra com Santa Rosa. Resultado: BR-27 Cariri, uma das cultivadas no Maranhão.

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