Santa Rosa
No IAC, tudo dava certo. Em pouco tempo o esforço de Zé Sojinha transformou-se na Campanha da Soja, empreendimento oficial financiado pela iniciativa privada. As despesas da Seção de Leguminosas do IAC passaram a ser parcialmente custeadas por fábricas de óleos vegetais que inauguraram em São Paulo o modelo de financiamento de pesquisa empregado alguns anos mais tarde pelo Instituto Privado de Fomento à Soja (Instisoja), criado no Rio Grande do Sul por iniciativa da Sociedade Anônima Moinhos Rio-Grandenses(Samrig), do grupo Bunge.
Na primeira metade da década de 1950 a Anderson Clayton financiou a permanência por uma temporada em Campinas do agrônomo Leonard F. Williams, responsável pela linhagem L-326, mais tarde “nacionalizada” com o nome de Santa Rosa, a primeira grande variedade comercial brasileira.
O nome nacional foi colocado pelo técnico agrícola Juarez Pinto Gutterres (Viamão, 1932-), responsável por ensaios realizados a partir de 1958 no município gaúcho de Santa Rosa, para onde fora enviado pela Secretaria da Agricultura como agente fitossanitário. Lançada em 1966 na I Festa Nacional da Soja, em Santa Rosa, foi essa a primeira semente obtida no Brasil como resultado do cruzamento de linhagens norte-americanas (D49-772 x La41-1219).
Por longo período foi a mais cultivada em toda a região meridional brasileira, do Rio Grande do Sul até São Paulo. Na mesma época fez carreira uma meia irmã dela, a Industrial (Mogiana x La41-1219), também saída das mãos de Gutterres.
“A Santa Rosa estava ‘perdida’ na estação experimental de Júlio Castilhos quando eu resolvi fazer uns ensaios para ajudar os colonos que só tinham a Amarela para plantar”, lembra Gutterres, formado em 1953 na Escola Técnica Agrícola de Viamão, nos arredores de Porto Alegre.
Durante seus primeiros anos como funcionário da Secretaria da Agricultura, ele havia trabalhado precisamente na chamada “estação experimental da serra”, no município de Júlio de Castilhos. Em Santa Rosa, onde acabou realizando a maior parte de sua carreira – a partir de 1961 como pesquisador do Ipagro, encorpado graças a um convênio com o Instisoja –, Gutterres criou duas variedades de soja, a Sulina (seleção da variedade Hampton) e a Missões (seleção de uma variedade rústica da zona colonial gaúcha), mas se notabilizou pelo aprimoramento da Santa Rosa.
Essa variedade ajudou o IAC a ganhar fama como o maior centro de referência técnico da soja no Brasil até que a Embrapa, criada em 1973, assumisse o comando da pesquisa agropecuária no país, na segunda metade da década de 1970.
Na região Mogiana
O mais importante auxiliar de Zé Sojinha nos primeiros anos no IAC foi Shiro Miyasaka (Japão, 1924-). Caçula de uma família de cinco irmãos originária de Hokkaido, ele veio para o Brasil em 1932. O pai foi meeiro de lavoura de café no oeste paulista antes de se tornar olericultor em Arujá, perto da capital. Aos 14 anos, em 1938, Shiro mudou-se para São Paulo, onde arranjou emprego como entregador de chá. Depois, trabalhando de dia numa fábrica de fogões e estudando à noite, concluiu o curso secundário.
Reprovado no vestibular da Escola Politécnica de São Paulo, aos 24 anos conquistou uma vaga no curso de agronomia em Piracicaba. Formou-se em 1951, justamente quando a soja, em grande evolução nos Estados Unidos, começava a prosperar no Hemisfério Sul. Na faculdade, não recebeu senão aulas teóricas sobre a planta que, como imigrante, conhecia de quintal e de mesa.
Entre um convite para se tornar assistente do professor de genética em Piracicaba e outro para trabalhar como pesquisador em Campinas, Shiro Miyasaka preferiu o contrato com o Agronômico, onde, já em 1952, foi incumbido por José Gomes da Silva de iniciar um ensaio de hibridação com mais de 50 variedades de soja.
Foi em suas mãos que começou o primeiro grande esforço nacional para selecionar variedades aptas à mecanização e que respondessem positivamente ao interesse da indústria por óleo.
“A soja existente no Estado de São Paulo era baixinha, de talo grosso, toda de variedades inadequadas para a colheita mecanizada”, lembra Shiro. Havia um agravante: quando se tornavam maduras, as vagens se abriam, lançando fora as sementes. Tanto que a principal recomendação técnica da época, quanto à colheita da soja, era que as vagens fossem apanhadas quatro ou cinco semanas antes da maturação definitiva, para evitar a dispersão dos grãos.
Esse problema só foi resolvido depois de 1954, quando saiu comercialmente nos Estados Unidos a variedade Lee, produto de cruzamentos (CNS x S-100) iniciados na década de 1940 no Mississippi pelo pesquisador norte-americano Edgard Hartwig (1913-1996). Era uma variedade de soja não-deiscente, isto é, as vagens, quando maduras, não se abriam para lançar longe os grãos.
Fruto do acaso, como costuma acontecer com as grandes descobertas, a Lee foi fundamental para a intensificação da colheita mecânica da soja nos Estados Unidos e no mundo. Até então, no Brasil, ainda estava por estabelecer-se a tecnologia de grandes lavouras.
As trilhadeiras estacionárias ou automotrizes eram usadas por uma minoria. A colheita era muito complicada, já que envolvia operações manuais como a bateção das vagens e a secagem dos grãos colhidos ainda verdes.
Incumbido de fazer a Campanha da Soja na chamada região mogiana, especialmente nos municípios de Orlândia, São Joaquim da Barra, Ituverava, Miguelópolis e Guaíra, Shiro Miyasaka encontrou excelentes parceiros de campo como os irmãos Hirofume e Massamori Kage em Guaíra, Takaiuki Maeda em Ituverava e vários membros da família Junqueira, em Orlândia.
Nessa última cidade fora fundada em 1952 a Companhia Mogiana de Óleos Vegetais (Comove), inicialmente voltada para o algodão, depois para o arroz e, por último, para a soja.
Havia muita gente interessada e disposta a ajudar nas pesquisas. Em Jaguariúna, perto de Campinas, a Campanha da Soja contou com o respaldo dos japoneses que cultivavam arroz para fabricar saquê na Fazenda Monte d’Este. Igualmente abertos eram os agricultores holandeses da Holambra, também em Jaguariúna.
Eles ajudaram o pessoal do IAC a testar máquinas de colheita importadas da Europa. Em Matão, perto de Araraquara, estabelecera-se um núcleo de pesquisa amparado pela Fundação Rockefeller, que nessa época financiava a Revolução Verde comandada pelo geneticista Norman Borlaug (1914-2009), ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1970 pelos melhoramentos obtidos principalmente com o trigo.
A base ianque de Matão, que usava o laboratório de solos do IAC para analisar amostras colhidas em vários pontos do cerrado paulista, dava ênfase especial ao emprego de calcário e de adubos fosfatados como corretivos da acidez do solo.
Essa pesquisa foi compartilhada pelo agrônomo Euripedes Malavolta (Araraquara, 1926-Piracicaba, 2008), professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, de Piracicaba (SP). A soja e outras leguminosas faziam parte do pacote de experimentos, mas àquela altura da história ninguém descobrira que a Glycine max carregava em suas próprias raízes o segredo da fixação de nitrogênio nos solos.
Vanguarda Campinas-Pelotas
Fora de São Paulo, o mais consistente trabalho de pesquisa era realizado no Rio Grande do Sul, onde já havia uma base de informações apuradas em meia dúzia de estações experimentais – umas do Estado, outras da União.
Desde 1948, por exemplo, a Secretaria da Agricultura mantinha em Veranópolis, na chamada estação experimental das colônias (de imigrantes), alguns ensaios de comportamento de variedades sob diferentes espaçamentos e volumes de adubação.
Em 1951, o agrônomo Francisco de Jesus Vernetti (Pelotas, 1925-) foi colocado à frente das pesquisas com soja no Instituto Agronômico do Sul (IAS), órgão do Ministério da Agricultura sediado em Pelotas, município com tradição vanguardista equivalente à do paulista Campinas na área agrícola. No início, Vernetti se preocupou em testar variedades que pudessem ser cultivadas em consórcio com o milho nas roças dos produtores minifundiários do noroeste gaúcho e do oeste catarinense.
Em seus ensaios, experimentava material genético disponível em centros de pesquisa existentes no Brasil, principalmente Campinas, Júlio de Castilhos e Veranópolis. Também testava sementes recebidas diretamente dos Estados Unidos, onde fez mestrado (em Purdue). A partir de 1957, começou a frequentar reuniões técnicas sobre soja, promovidas pela Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul em convênio com o Instisoja. No final da década de 1950, já tinha iniciado a formação da equipe que mais tarde faria funcionar a rede de pesquisa federal na região Sul, com campos experimentais em Pelotas, Passo Fundo, Caçador (depois Chapecó), Ponta Grossa e Maringá.
Santa Maria
A década de 1950, cheia de inovações para os brasileiros, ainda não havia acabado quando o pessoal do IAC começou a fazer ensaios sob baixas temperaturas na estação experimental de Pindamonhangaba, no vale do Paraíba, região tradicionalmente produtora de arroz irrigado em várzeas de aluvião.
Testada pelo agrônomo Geraldo Guimarães (Conchas, 1924-) no inverno de 1958, uma variedade forrageira coletada em Minas Gerais, de origem desconhecida, revelou comportamento absolutamente diferente: crescia normalmente naqueles dias curtos, fugindo ao padrão da soja, planta que vegeta em dias longos e floresce quando detecta que as noites começam a se tornar mais longas do que os dias.
“Variedade pouco sensível ao fotoperíodo”, registrou friamente o pesquisador Shiro Miyasaka, sem imaginar que aquela planta taluda, de sementes pretas, abriria o caminho à tropicalização da soja.
Bem que Miyasaka tentou lhe dar um nome significativo: Karutoby, alimento verde, em tupi-guarani. O nome que ficou foi outro, já usado anteriormente em Minas: Santa Maria. Pesquisas realizadas mais tarde não chegaram a uma conclusão sobre suas origens. No máximo, descobriu-se semelhança com sementes de procedência filipina introduzidas nos Estados Unidos.
A partir do comportamento da Karutoby-Santa Maria, os melhoristas confirmavam que era mesmo possível selecionar sementes adaptáveis a quaisquer latitudes. Então, aproveitando a rede de pesquisa montada informalmente no país, intensificaram-se entre os técnicos os teste de novas variedades. Começou assim a preparação para o futuro avanço sobre o cerrado inculto dos estados do Centro-Oeste.
Já havia então a intuição de que a leguminosa poderia dar certo no cerrado, mas ninguém vislumbrara ainda a explosão que viria nos anos seguintes. Pelo contrário, o solo dos cerrados, rico em alumínio, tinha a fama de ser tóxico demais para as plantas.
Na verdade, tateava-se no escuro. A própria história da Karotoby-Santa Maria parecia uma brincadeira da Natureza com os técnicos, que atiravam num alvo e acertavam em outro. Shiro Miyasaka reconheceu que um dos objetivos do experimento de Pindamonhangaba era testar a produção de uma forrageira de inverno para o rebanho de gado leiteiro do vale do Paraíba…
Naquele momento, em São Paulo, a soja era muito falada e pouco plantada. A rigor, apenas no Rio Grande do Sul ela podia ser considerada uma lavoura comercial, graças à exportação e à demanda da indústria de óleo, ambas iniciadas um pouco antes da Segunda Guerra Mundial e incrementadas nos anos 1950.