Londrina, capital técnica
A pesquisa da soja já tinha alcançado indiscutível grau de maturidade quando, em 1973, foi criada a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A nova instituição demorou a sair do papel, pois desencadeou uma luta política nos bastidores dos órgãos científicos comandados pelo Departamento Nacional de Pesquisa Agropecuária, do Ministério da Agricultura.
Boa parte do impasse adveio da criação no mesmo momento, com recursos do Instituto Brasileiro do Café (IBC), do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), com sede em Londrina, onde, como desdobramento do Ipeas, já funcionava o Ipeame, originário da subcomissão técnica meridional do trigo criada na década de 1960.
Em Campinas, o IAC ficou longe da disputa. Pelotas, Passo Fundo, Cruz Alta, Ponta Grossa não chegavam a se declarar candidatas mas, no fundo, todas queriam ser a capital técnica da soja. Mais do que distante, a escola de Viçosa ficou neutra na história. Naquele exato momento, o agrônomo mineiro Allyson Paulinelli (Bambuí, 1936), formado na faculdade rival de Lavras, foi escolhido o ministro da Agricultura do governo do general Ernesto Geisel (1974-1979).
Na virada de 1973 para 1974, recém-contratado pelo Iapar, o agrônomo José Tadashi Yorinori (Londrina, 1943) embarcou no norte do Paraná numa velha camioneta rumo ao centro de Minas. Missão: buscar em Viçosa sementes para iniciar a coleção de soja do Iapar.
Estava tudo combinado por telefone e ofícios, mas à última hora Yorinori foi avisado de que a direção da escola decidira não colaborar. De mãos vazias em Viçosa, na volta para Londrina, ele passou em Campinas, reuniu o material genético necessário no Instituto Agronômico e, de quebra, ganhou a adesão de Romeu Kiihl, que decidiu se transferir para o Iapar.
Por causa da incerteza e das mudanças, que se arrastavam em meio a um processo de barganhas regionais, houve entre 1973 e 1975 um hiato na pesquisa agrícola brasileira. O impasse acabou em 1976, quando, enfim, Londrina foi confirmada como sede do Centro Nacional de Pesquisa de Soja. Instalado inicialmente na sede do Iapar (que abdicou da pesquisa da soja, concentrando-se em outras culturas, especialmente o trigo), o CNPSo passou a coordenar o trabalho desenvolvido em várias regiões por diversos órgãos públicos federais, estaduais e privados.
O primeiro chefe foi o gaúcho Francisco de Jesus Vernetti, substituído por outro gaúcho, Emídio Bonato, que ficou dez anos no cargo. Quando deixaram Londrina, os dois continuaram trabalhando com soja em bases regionais da Embrapa: Vernetti em Pelotas, Bonato em Passo Fundo.
Os resumos informativos do CNPSo, em quatro volumes, publicados em 1977, foram um primeiro esforço de organizar o acervo de pesquisa existente até então em torno da Glycine max. Em paralelo, o IAC promoveu uma maratona nacional para produzir o livro “A Soja no Brasil”, coordenado por Shiro Miyasaka e Julio Cesar Medina. Com mais 1 mil páginas, publicado em 1981 sob patrocínio da Fundação Cargill, esse trabalho condensa praticamente tudo o que a ciência brasileira sabia sobre a soja até a entrada da década de 1980.
Escrita por centenas de mãos, “A Soja no Brasil” cumpriu um papel curativo, ajudando a apaziguar os conflitos regionalistas surgidos na década de 1970. As dissidências remanescentes foram enterradas nos anos seguintes pela própria carreira brilhante da soja.
Mesmo depois de podada pelo processo de desmontagem da máquina estatal desencadeado a partir do fugaz governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), a Embrapa continuou a manipular recursos equivalentes a 1% do Produto Interno Bruto do Brasil, liderando os esforços para criar um novo modelo de pesquisa em parceria com a iniciativa privada.
Um dos exemplos mais promissores nesse campo foi a Fundação MT, criada no início da década de 1990 em Rondonópolis, a “capital da soja” no Brasil Central. Vinculada à Associação dos Produtores de Sementes do Mato Grosso, da qual faz parte Blairo Maggi (o segundo “rei da soja”), a Fundação MT cresceu sob a direção técnica de uma nova safra de agrônomos, a começar por Dario Minoru Hiromoto (Marília, 1963).
Prêmio Nobel
Quatro décadas depois do início da operação efetiva da Embrapa, pode-se dizer que geneticamente já não tem mais utilidade, a não ser como curiosidade histórica e reserva eventual de germoplasma, a soja que deu a arrancada na moderna aventura agrícola brasileira. Cruzadas e recruzadas, as variedades primitivas transmutaram-se em grãos especializadíssimos, com maior produtividade e diferentes respostas a especificidades regionais, climáticas, edáficas e biológicas.
Em setembro de 1996 em palestra a agricultores e técnicos em Capinópolis, no cerrado mineiro, o agrônomo Tuneo Sediyama garantiu que a produtividade da soja no Brasil Central aumentaria da faixa de 2200 kg/ha para mais de 3000 kg/ha. Estava certo.
Naquele final do século XX, o esforço de pesquisa voltava-se sobretudo para o desenvolvimento de variedades mais resistentes a doenças e pragas “criadas” por anos de monocultura e excessivo emprego de venenos agrícolas.
As piores eram o cancro da haste (que causou prejuízos de US$ 500 milhões aos agricultores brasileiros no período 1989/96, segundo estimativas do CNPSo) e o nematóide de cisto (prejuízos de US$ 150 milhões, idem). O estado mais castigado era o Rio Grande do Sul.
No final dos anos 1990, os pesquisadores começaram a enfrentar o problema da ferrugem da soja, causada por um fungo antes só encontrado na Ásia. Na Embrapa de Londrina, foi criada uma força-tarefa voltada para o estudo e o combate da ferrugem asiática. Entretanto, nem só da genética vivia a pesquisa em torno da soja.
Além de ter ela própria evoluído, a soja provocou mudanças profundas no comportamento dos pesquisadores e até em sua visão da ciência, cada vez menos segmentada e mais aberta a uma visão global.
Por ter arrancado com a máxima tecnologia disponível, a soja abriu caminho para o melhoramento de outras culturas, especialmente o trigo, o feijão e o milho. E se por um lado desfez a lenda da inaptidão agrícola dos cerrados, por outro ajudou a dar nova dimensão à bioquímica dos solos.
Já no início das atividades do grupo de Zé Sojinha no Instituto Agronômico, por volta de 1950, havia técnicos que pesquisavam o uso de inoculantes na cultura da soja. As descobertas em torno da fixação de nitrogênio por microorganismos do solo fizeram da tcheca Johanna Döbereiner (1924-2000), contratada pela Embrapa de Seropédica (RJ), uma das maiores estrelas da pesquisa agropecuária do Brasil.
Monta à escala do US$ bilhão a economia de fertilizantes trazida pela seleção de rizóbios feita pela equipe de Döbereiner para a cultura da soja (e da cana-de-açúcar).
Independentemente do fato de ter contribuído para a redução dos custos de produção da soja, esse trabalho é tão importante para a ciência em geral que em 1996 Döbereiner foi indicada por cientistas do Brasil e de outros países para receber o Prêmio Nobel de Química.
Seu trabalho silencioso deu novo status à pesquisa sobre aspectos não vinculados aos chamados insumos modernos (sementes, adubos, venenos agrícolas e máquinas), naturalmente privilegiados pela influência norte-americana sobre a agropecuária brasileira.
Controle biológico
O manejo biológico de pragas agrícolas cresceu no Brasil graças ao emprego do baculovírus no combate à lagarta da soja, de acordo com a técnica desenvolvida a partir de 1983 em Londrina pelo agrônomo paulista Flavio Moscardi (Lucélia, 1949).
No final do século XX o baculovírus era usado em cerca de 10% da área da lavoura brasileira de soja, que consumia U$S 2 bilhões anuais em produtos químicos apenas para controlar a lagarta e o percevejo.
Não admira que o equipamento mais usado na lavoura da soja seja o pulverizador, implemento que apresenta uma enorme variedade de modelos — desde o simples costal fabricado pioneiramente em Pompeía (SP) no final dos anos 1940 pelo imigrante Shunji Nishimura até os gigantes autopropelidos que concorrem com os aviões agrícolas.
Na primeira década do século XXI, os gastos com agroquímicos representavam cerca de 50% dos custos de produção da soja, cujo cultivo começa com uma pulverização de herbicida-dessecante e termina com uma aplicação de inseticida-protetor de sementes.
O uso de métodos naturais de controle de pragas e doenças não se intensificou apenas como forma de baratear os custos de produção da soja, mas como resposta a consumidores revoltados com o abuso na utilização de produtos químicos na lavoura.
Também fruto de trabalho técnico realizado no CNPSo pela pesquisadora Beatriz Correa Ferreira (Encruzilhada do Sul, 1949), começou a ser empregada a vespinha no combate ao percevejo da soja.
Tanto em valores quanto em volumes, o controle biológico de pragas representava uma fração mínima do mercado brasileiro de agroquímicos, estimado em torno de US$ 8 bilhões em 2010. Porém, em todas as principais lavouras – de grãos, folhas, frutas, fibras e raízes – havia pelo menos uma linha de produtos biológicos à venda ou uma pesquisa em andamento.
A aposentadoria do arado
Ao mesmo tempo em que intensificou o uso do arsenal tecnológico da agricultura moderna – adubos, agroquímicos, sementes selecionadas, máquinas e diversos sistemas de manejo –, a soja desencadeou uma virada para o emprego de novos métodos, hoje identificados como parte da agricultura dita sustentável.
Ao romper os limites da pequena propriedade e ocupar lavouras mais amplas, a sojicultura levou ao máximo a utilização dos instrumentos agrícolas de preparo e cultivo do solo. Provocou o aperfeiçoamento do arado, gerando grades, subsoladores e escarificadores.
Houve um momento, na década de 1970, em que a lavoura-modelo era aquela em que, antes do plantio, o solo ficava absolutamente exposto, sem vegetação ou torrões.
O uso predatório do solo por essa agricultura de vanguarda gerou uma onda crítica que progrediu apesar de navegar contra os interesses imediatos da indústria de máquinas e implementos.
Essencial no enxugamento dos solos gelados dos países europeus, de onde foi importado pelo Brasil no século XIX como o símbolo da agricultura moderna, o arado começou a ser dispensado como um instrumento nefasto, responsável pela depreciação do principal patrimônio do produtor – a terra.
As perdas de solo verificadas em virtude do sistema convencional de preparo da terra abriram caminho para inovações que levaram ao outro extremo – o desenvolvimento da técnica do plantio direto. Se antes a recomendação era para revolver ao máximo a terra, passou a vigorar o contrário: quanto menos mexer, melhor.
O plantio direto (“no-tillage”) foi desenvolvido nos estados norte-americanos da Carolina do Norte, Mississippi e Ohio nos anos 1960. No Brasil iniciou-se em 1972 com o técnico Milton Ramos em Ponta Grossa. Em Palmeira, nas vizinhanças de Ponta Grossa, registraram-se as experiências pioneiras do agricultor Nonô Pereira.
Nesse mesmo ano o produtor Herbert Bartz importou máquina de plantio direto dos Estados Unidos para sua fazenda em Rolândia, onde a multinacional Zeneca (ex-Imperial Chemical Industries/ICI) montara uma experiência-piloto para testar o uso de herbicidas (dessecantes vegetais, segundo a nova terminologia química) no controle de invasoras (novo nome das antigas plantas daninhas).
A mudança para o plantio direto foi lenta nos anos 1970 e 1980, mas tomou impulso à medida em que ficavam claras as perdas de solos medidas pelos técnicos. No ano agrícola 1976/77, em latossolo roxo distrófico com 7% de declive, no Rio Grande do Sul, constatou-se que lavoura de soja cultivada pelo sistema de plantio convencional no verão – quando há chuvas torrenciais – tiveram perda de 9,9 toneladas de terra por hectare, contra 2,7 t/ha em lavoura de soja formada sobre a palha do trigo, também pelo sistema convencional.
Quando o trigo foi cultivado pelo sistema convencional e a soja pelo método de cultivo reduzido, a perda caiu para 1,24 t/ha. Quando houve o cultivo mínimo de ambos, perda de 0,24 t/ha. Com plantio direto, a perda caiu para 0,10 t/ha. Ou, seja, a erosão chega a praticamente zero com o plantio direto, que se impôs inicialmente mais como forma de defesa patrimonial do que como sistema de produção.
Com base em diversos testes, o agrônomo Arcangelo Mondardo, do Iapar, pode escrever no livrão “A Soja no Brasil” (Campinas, 1981): “Segundo o ponto de visita do controle de erosão e preservação do solo, deve-se optar por sistemas de preparo que induzam às seguintes condições:
a) incorporação dos resíduos culturais, ou sua permanência na superfície do solo
b) redução das operações de preparo ao mínimo necessário para dar condicões ao plantio e à germinação das sementes
c) preservação da estrutura e agregados do solo, evitando preparos com solo muito úmido ou seco
d) rompimento da compactação
e) uniformização da área.”