Tchernóbil

O acidente nuclear que matou um milhão de pessoas reduziu a longevidade dos bielorrussos
No dia 26 de abril de 1986, uma explosão seguida de incêndio derreteu o coração da usina nuclear de Tchernóbil, situada no norte da Ucrânia, perto da Bielorrússia, dois países naquele tempo integrantes da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Foi um acidente causado por erros humanos numa instalação construída às pressas em plena guerra fria entre URSS-EUA, as potências mundiais que se ameaçavam mutuamente de destruição com bombas atômicas.
Entre o dever de socorrer a população regional e a necessidade de salvar a própria imagem, o governo Gorbatchov, mentor da perestroika (abertura), gerou um sentimento de ambiguidade que ajudou a acelerar o colapso da URSS, consumado em 1989 com a queda do Muro de Berlim.
A ordem inicial foi de enviar soldados e técnicos com a missão de evacuar a população ameaçada pela radiação (estrôncio, césio e outros minerais radiativos), que se propagou para outros países da Europa, provocando terror em milhões de pessoas (a Alemanha desativou suas usinas nucleares e passou a investir em energia eólica e solar).
Em cidades e vilas da Ucrânia e da Bielorrússia milhares de famílias foram obrigadas a deixar suas casas e seus pertences, sendo alojadas em acampamentos distantes, como refugiados de uma guerra louca. Algumas pessoas voltavam clandestinamente às suas origens para buscar algum objeto mas muitos, principalmente agricultores, continuaram a tocar sua vida em cantos remotos do território contaminado e ali ficaram correndo risco de morte por leucemia e outras doenças.
Morreu muita gente, muitos ficaram inválidos e o que de mais sólido se tem hoje em dia é “Vozes de Tchernóbil”, livro de 384 páginas com depoimentos organizados pela jornalista ucraniana Svetlana Aleksiévitch, que por esse trabalho ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 2015.
O livro recupera de forma pungente o impacto causado pelo acidente nuclear. Apresenta uma centena de depoimentos em que cada pessoa conta como se sentiu e se comportou diante da explosão. Há casos singelos de donas de casa que não compreenderam a profundidade da tragédia e, também, depoimentos indignados de cientistas acusando o governo de imperícia e muitas pessoas de inconsciência e irresponsabilidade.
O povo russo se orgulha de viver vitoriosamente diante de adversidades como o inverno gelado e as guerras, mas o desastre de Tchernóbil minou a autoestima da maioria dos russos.
A população não sabia de nada e recebeu a notícia primeiro com incredulidade, depois com raiva, perdendo enfim a confiança nas autoridades, que se acusavam mutuamente. O acidente arruinou o sentimento comunitário e estimulou o ressurgimento do individualismo, abrindo espaço para a implantação do liberalismo em sua versão mais ferrenhamente egoista.
Um dos destaques do livro é o depoimento de Viktor Latun, torneiro mecânico que foi para Tchernóbil como soldado e, usando a máquina fotográfica para registrar o que via com espanto, acabou se tornando uma testemunha fundamental da história.
“Por que me tornei fotógrafo? Porque me faltavam palavras”, ele explicou, com simplicidade. Mesmo assim, o depoimento verbal de Latun é espantoso. Um trecho da página 296:
“Temíamos a bomba, o cogumelo atômico, e olhe o que se passou. Hiroshima foi algo pavoroso, mas compreensível. Já isso…Sabemos como uma casa se incendeia por causa de um fósforo ou de um projétil, mas isso não se parecia com nada. Chegavam rumores de que era um fogo extraterrestre, que nem era fogo, mas uma luz. Uma reverberação. Uma aurora. Não de um azul qualquer, mas de um azulado celestial. E que a fumaça não era fumaça. Os cientistas, que antes ocupavam o trono dos deuses, agora haviam se convertido em anjos caídos. Em demônios. E a natureza humana seguia sendo tal qual no passado, um mistério para eles. (…) A casa camponesa bielorrussa! Para nós, da cidade, não é mais do que uma casa, uma construção para se viver. Mas para eles era todo o seu mundo. O seu cosmos. Você atravessa as aldeias vazias e te dá um desejo tão grande de ver um ser humano… Vimos uma igreja arruinada, entramos nela. Aroma de cera. Dava vontade de rezar. Eu queria recordar tudo isso e me pus a fotografar. Essa é a minha história.”
 
LEMBRETE DE OCASIÃO
“A Secretaria de Turismo de Kiev oferece viagens turísticas a Tchernóbil. Foi elaborado um itinerário que tem início na cidade morta de Prípiat. Lá os turistas podem observar os altos prédios abandonados… Da cidade de Prípiat, a expedição prossegue até as aldeias mortas, onde lobos e javalis selvagens, que se reproduziram aos milhares, correm soltos entre as casas… O ponto alto da viagem é a visita ao Abrigo, nomeado mais apropriadamente de sarcófago. Construído às pressas sobre os escombros do quarto bloco energético explodido, o sarcófago está há tempos juncado de fendas através das quais ‘supura’ o seu conteúdo mortal, os restos do combustível nuclear…“
Extraído de jornais bielorussos de 2005 e publicado como posfácio do livro Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch (Cia das Letras, 2015)

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