A morte de Marco Aurélio Garcia despede-me compulsória e dolorosamente de meu passado. Fizemos política estudantil juntos, num tempo em que sonhávamos alto com um mundo que se projetava mais humano, menos aguerrido; isso em meados dos anos 60.
A vitória de Fidel em Havana, início da derrocada americana no Vietnã a partir do próprio EUA, tudo parecia que iria melhorar. Éramos e queríamos ser filhos da utopia; e, embora militássemos em grupos diferentes, nunca nos afastamos do respeito mútuo.
Era um ouvinte assíduo de música de câmara. E afora as posições políticas diferentes, mas genericamente comuns – que logo voltaram a se estreitar – tínhamos sempre muito o que conversar em torno dos quartetos de Beethoven, de Brahms, dos lieder de Mahler, de Schumann e por aí afora.
No nosso tempo de sonhos, porém, os militares logo assumiram o poder no Brasil.
Então do Rio Grande do Sul vim para São Paulo, mais ou menos fugido (devo confessar); e ele, foragido de fato, rumou para o Chile.
Quando nos reecontramos, não levou muito para que Marco Aurélio – ambos, agora, já conscientemente, órfãos da utopia – assumisse o papel histórico que sua inteligência e cultura lhe reservavam, como assessor de relações exteriores, do governo Lula.
Deve ter morrido triste. Num breve encontro casual que tivemos em Congonhas – ele indo para Brasília e eu voltando de lá – relatei-lhe a resposta que o jornalista Paulo Totti, um amigo comum, me deu quando lhe perguntei sobre a situação do Brasil e do já então claudicante governo Dilma.
Ele riu muito ao lhe contar – segundo Totti – que quem explicasse a situação do Brasil, estava no mínimo mal informado.
Nunca ouvi ou assisti qualquer conferência do professor Marco Aurélio Garcia ao vivo. Mas nas entrevistas em que demonstrava o quanto era sólido o seu conhecimento sobre o Brasil e suas relações exteriores – pude aurir seus conhecimentos e o quanto ele e Celso Amorim foram importantes para que o Brasil se tornasse, por fim, um protagonista da cena mundial.
Estimo que lhe tenha sido muito deprimente ver o Itamarati nas mãos de Serra e de Aloysio Nunes Ferreira. Nada pessoalmente contra esses dois autênticos micróbios intelectuais – mas é assustador saber que saímos de um Marco Aurélio Garcia, com seu brilhantismo, sua alta cultura, sua honestidade, para dois sujeitos que devem estar fazendo corar até mesmo os mais retrógrados diplomatas brasileiros.
Bestuntice e inteligência são raras de acontecerem num mesmo período histórico.
Aliás, num tempo em que um líder como o Lula está sendo perseguido por energúmenos, justamente por não preencher as acusações que lhes movem outros homens minúsculos, Marco Aurélio Garcia deve ter padecido o diabo.
Foi um autêntico patriota, Seu imenso coração brasileiro deve ter estourado ao ver o grande país que ele projetou desde seus tempos de juventude, ir por água abaixo, sem que ninguém conseguisse opor nem mesmo um berro.
Morreu Marco Aurélio Garcia: difícil imaginar alguém para substituí-lo.