Agapan, Apisbio e o Cara

GERALDO HASSE
Por seu conhecimento técnico e radicalismo verbal, o agrônomo Sebastião Pinheiro pode ser considerado o sucessor natural do líder ecológico José Lutzenberger, fundador da Agapan que deixou uma lacuna ao falecer em 2002 aos 76 anos. É certo que Pinheiro não tem a flama do velho Lutz, mas se iguala a ele no respeito ao saber dos agricultores tradicionais e na ojeriza à interferência humana nos processos ecológicos naturais.
Foi o que pensei ao ouvir a rica palestra de Pinheiro a um auditório formado por mais de 200 estudantes, professores e cidadãos de Porto Alegre na noite da última segunda-feira. Entre os ouvintes silenciosos, identifiquei a bióloga Lara Lutzenberger, filha do líder ecológico gaúcho. A última vez que vi tanta gente reunida em torno de um tema ecológico foi em 2005, quando o JÁ levantou um debate sobre o incentivo oficial a grandes projetos de celulose de eucalipto. Naquela época, falou-se no risco de desfigurar o Pampa com a implantação de mais de 1 milhão de hectares de eucaliptos.
A eucaliptocultura ocupa atualmente 500 mil hectares no território gaúcho. Além de produzir madeira para diversos fins, sobretudo a celulose, a árvore australiana é uma das principais fontes de néctar e pólen com que contam as abelhas para produzir mel. E aí se juntam as pontas do processo agroecológico: cada vez mais morrem abelhas por ação de venenos usados em lavouras, sobretudo de soja, que ocupa 6 milhões de hectares no RS e mais de 30 milhões de ha no Brasil.
Assim como não há problema em cultivar uma árvore australiana para produzir madeira, nada impede que se produza um grão asiático nos trópicos sulamericanos. O problema é o uso intensivo de produtos químicos que não apenas matam as abelhas, mas contaminam o meio ambiente, especialmente os cursos d’água; e provocam doenças nas pessoas e nos seres vivos em geral. Além dos venenos, há a manipulação genética de sementes. E aqui entra Sebastião Pinheiro com sua capacidade de cruzar informações antigas e recentes, fazendo uma crítica demolidora do modelo agrícola “venenoso” em que estamos inseridos.
Em sua critica às multinacionais que controlam o mercado de grãos e assim interferem na alimentação de boa parte da humanidade, comportando-se como totens donos irrefutáveis da verdade científica, Sebastião indica a leitura de Émile Durkheim (1858-1917), considerado o pai da sociologia e um dos pensadores mais importantes da modernidade, ao lado de Karl Marx, Sigmund Freud e Max Weber. Foi Durkheim que estudou a função dos totens nas sociedades humanas que os têm como divindades, forças imanentes que não aceitam ser contestadas. Na vida moderna, há marcas, produtos e empresas com poder totêmico. As multinacionais do agronegócio operam como deuses intocáveis que manipulam governantes e controlam populações inteiras.
Aqui entra o Tião Sem Medo: “É preciso contestar seu domínio na vida moderna”. Esses agentes não apenas manipulam a produção de alimentos. Estão envenenando a Terra. Contaminam pessoas, florestas, rios, insetos.
Vendo Tião falar, acredito que estamos assistindo a uma refundação do movimento ambientalista gaúcho. Em 1971, Lutz tinha ao seu lado Augusto Carneiro. No início, os dois lembravam D. Quixote e seu escudeiro Sancho no afã por denunciar o desmatamento, a destruição dos banhados e o uso abusivo de agrotóxicos nas lavouras. Pouca gente entendia seu recado. Na redação dos jornais, o próprio Lutz sentava-se a uma mesa e datilografava o que queria dizer, pois ninguém o entendia. Em 1972, sua mensagem foi logo entendida pela população chocada com o fedor de ovo podre emitido pela Borregaard, recém-instalada em Guaíba. A recém-fundada Associação Gaucha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) logo se tornaria um dos vértices da luta pela criação da Lei dos Agrotóxicos.
No final da palestra de segunda-feira, Francisco Milanez, o presidente da Agapan, conclamou o público a associar-se ao movimento ecológico – “não apenas à Agapan, mas a qualquer associação em defesa da vida” — e cedeu o microfone a José Renato Barcelos, professor de Direito que faz parte da APISBIO, nova entidade formada por cientistas dispostos a responsabilizar os fabricantes. comerciantes e usuários de agrotóxicos pela mortandade das abelhas. A Apisbio entregará ao Ministério Público Estadual um documento nesse sentido. Na prática, é o começo da judicialização da morte das abelhas, responsáveis pela polinização da maior parte dos vegetais naturais e cultivados.
Sugiro que os interessados acompanhem pelo Facebook (Coletivo Catarse) o evento que ocorrerá na tarde desta quinta, 28 de março, em Mata, na região de Santa Maria. Essa pequena cidade de 5 mil habitantes foi escolhida para a reunião porque foi lá que mais morreram abelhas melíferas no último verão.

Um comentário em “Agapan, Apisbio e o Cara”

  1. E como seria o plantio de soja, milho, trigo, algodão, etc em larga escala, sem os defensivos agrícolas, sem os herbicidas, inseticidas, etc? Plantar digamos, 10 mil hectares de soja e colocar gente pra carpir (ou “capiná” como diz o pessoal por aqui)? irrigar com regadores? não utilizar sementes geneticamente modificadas que produzem muito mais e utilizam muito menos defensivos? Quem seria capaz de produzir trigo em alta escala sem isto? não há um pouco de exagêro nas palavras deste pessoal? Em 30 alqueires, por exemplo, se você não usar defensivos, considere-se falido, morto. Você não produzirá nada, as lagartas comerão tudo, o mato tomará conta e você não colherá nada. Se for milho você tem a oportunidade de quando estiver seco, tacar fogo e colher com pessoas e balaios, agora imagine isto numa área de milhares de hectares. Impossível. E não adianta os acadêmicos de poltrona falarem que existem defensivos “naturais” porque estes, todo agricultor produtor em grande escala, sabe que não funcionam. Ser contra melhorias genéticas, contra defensivos agrícolas me parece ser contra a produção agrícola.

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