ANTONIO BRITTO / A democracia também precisa de vacina

Sinal dos tempos e assustador. A maior democracia do mundo, os Estados Unidos, entra na fase decisiva para escolha do novo presidente tendo como principal tema a ameaça de uma infindável disputa judicial, um nível recorde de radicalização e, talvez, o comprometimento do próprio processo de transição entre Trump e Joe Biden, se este obtiver a vitória até agora apontada pelas pesquisas.

Trump nos últimos dias confirmou, definitivamente, que conhece apenas um limite – o seu interesse. Trata o país e a constituição norte-americana como um dos terremos ou prédios que conquistou, geralmente de forma controvertida, ao longo de sua vida como empresário.

A entrevista que concedeu nesta 4ª feira (24) rompeu, mesmo para quem está acostumado aos padrões dele, qualquer noção de respeito ao processo democrático. Basicamente, Trump diz: vou apressar a indicação de um novo juiz para a Suprema Corte porque a disputa com Biden, se eu perder, vai se transformar em um impasse e este será decidido lá. Preciso garantir – e logo – um voto a mais.

Não haveria situação mais clara para identificar a crise política norte-americana: a uma semana do primeiro debate entre os dois candidatos e a seis semanas da eleição, Trump não prioriza buscar o voto de milhões de norte-americanos. Concentra-se na Suprema Corte, diminuída à condição de “tapetão” onde derrotas sofridas no campo legítimo de jogo possam transformar-se em vitórias.

A estratégia, que se amplia à medida em que as pesquisas indicam uma possível vitória de Biden, passa por requintes como o estímulo –pelo próprio Trump – à irregularidade com o pedido para que cada eleitor vote mais de uma vez pelos correios. Logo depois, o mesmo Trump anuncia que a eleição será fraudada. Por isso não se compromete a reconhecer seu resultado e, em consequência, a assegurar uma transição nos termos da Constituição e da tradição democrática, como demonstrou a extraordinária reportagem publicada esta semana pela revista The Atlantic.

Diante de um personagem como esse – e não é o único no mundo – como a democracia pode se defender? Que dispositivo legal poderia prevenir ou corrigir atitudes como esta ? Os norte-americanos, seguramente, deverão aprofundar a discussão sobre o anacronismo de um colégio eleitoral que pode se opor ao veredito popular e um complexo e ultrapassado sistema de apuração dos votos.

Voltemos, uma vez mais, ao “Como as democracias morrem”, obra emblemática sobre as crises atuais. A aceitação das regras do jogo, que os autores classificam como “tolerância mútua” e a “contenção” , não se pode estabelecer ou exigir por lei. A democracia, assim, não é apenas um conjunto de dispositivos escritos mas, e principalmente, uma prática consolidada e respeitada que pressupõe, para isto, que seus personagens compreendam, aceitem e atuem em conformidade com o não escrito –reconhecimento e tolerância com os outros.

Levitsky e Ziblatt, os autores, já tinham alertado: o maior risco, hoje, para as democracias não está no golpe de Estado, a quartelada tão típica de tempos idos e, sim, na “erosão” de práticas e princípios. “Democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos… que subvertem o próprio processo que os levou ao poder”.

Hoje, porém, a revolução tecnológica gerou um grave problema político: equilíbrio, moderação, sensatez não “causam” nas redes sociais, não “impulsionam” o número de seguidores, não “viralizam” e passam como antigas nesses tempos em que o ódio virou instrumento de marketing. As figuras quase paternas que o Pós-Guerra consagrou como estadistas seriam hoje “entediantes”, como se diz de Biden. E maus candidatos.

As próximas semanas não serão importantes apenas por elegerem um novo presidente para os Estados Unidos. O que acontecer de hoje até novembro ou janeiro ou… dirá muito sobre o tamanho da doença que afeta o processo político no mundo. Não é, por enquanto, uma pandemia mas, a exemplo da que nos aflige com a covid-19, não descobrimos ainda a vacina que preserve sofridas conquistas civilizatórias como a liberdade e a democracia.

Antônio Britto é jornalista e foi governador do Rio Grande do Sul (1995-98)

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