ELMAR BONES / João Borges de Souza (anotações para um perfil )

O jornalista João Borges de Souza morreu no dia  de junho de 2022, aos 87 anos. Não se escreverá uma história do jornalismo no Rio Grande do Sul sem passar pela biografia dele.

Jornalista de alto quilate numa geração de grandes talentos, João Souza ainda se sobressaia  por uma qualidade rara entre os jornalistas, sempre suscetíveis de personalismos: a capacidade de aglutinar e alcançar consensos.

Um dos primeiros negros numa redação em Porto Alegre, integrou a lendária equipe da Última Hora, da rede de Samuel Wainer,  que mudou a maneira de fazer jornalismo  no Brasil dos anos 1960.

Foi o primeiro a acompanhar o movimento sindical como repórter de A Hora e, depois, da Última Hora, onde cobriu greves históricas, como a dos ferroviários em Santa Maria, em 1958 – época em que os, então, chamados “movimentos paredistas” não mereciam mais que tímidas notas nos jornais.

Quando a polícia empastelou a Última Hora, no golpe de 1964, e muitos tiveram que fugir, João se refugiou na Secretaria da Saúde, onde o amigo Tarso de Castro lhe havia arranjado um emprego na assessoria de imprensa.

Quando o jornal voltou a circular com outro nome (Zero Hora) e outra orientação política (a favor dos militares), aquele grupo da redação da UH, sempre sob a liderança de João Aveline, se reconstituiu na redação da ZH e ele voltou. Seria repórter e depois editor de política.

Foi nessa condição que o conheci na Folha da Manhã, em 1972. Tinha trinta e poucos anos, mas já era uma referência para jovens e veteranos. Não se tomava uma decisão importante na redação sem ouvir o “nego João”.  Nêgo, no caso era uma espécie de título nobiliárquico, algo como um xamã ou príncipe, que seu porte, sua elegância natural e suas palavras precisas referendavam.

Apesar da filiação ao Partido Comunista, não fazia proselitismo e colocava acima de tudo a fidelidade aos fatos.

Quando os editores da Folha da Manhã , num embalo de manchetes bem-sucedidas, acreditaram que haveria uma revolução no Chile, depois do assassinato de Allende, ele foi o único a sugerir um ponto de interrogação no título afirmativo, com o que poupou a redação de um vexame.

Nessa época, elegeu-se presidente do Sindicato dos Jornalistas, rompendo uma longa tradição de peleguismo na representação dos profissionais de imprensa. Levantou a bandeira da dedicação exclusiva num tempo em  que grande parte dos jornalistas eram ao mesmo tempo funcionários públicos ou assessores.

Vinculou o movimento dos jornalistas gaúchos à questão nacional das liberdades democráticas, em sintonia com o que acontecia em São Paulo sob a liderança de Audálio Dantas e resultou em importantes conquistas na constituição de 1988.

Depois de tudo isso, perdi-o de vista até uma tarde em que nos reencontramos na Lancheria do Parque, ele já aposentado, havia completado 70 anos. Estava entusiasmado, trabalhando numa biografia do dr. Breno, o lendário Breno Caldas, do Correio do Povo, com a colega Núbia Silveira. O projeto não foi adiante, mas ele seguia animado com a ideia de escrever biografias como se fossem reportagens.  Fomos juntos levar ao presidente da Assembleia, Vieira da Cunha, o projeto para um perfil do ex-presidente João Goulart, uma lacuna inexplicávei na série de Perfis Parlamentares do legislativo gaúcho. Aceitamos o desafio de produzir em três meses o perfil político de Goulart. Teria que ser um trabalho em equipe. Ele  se incumbiu de compilar e analisar discursos de Jango quando deputado. Kenny Braga fez a pesquisa bibliográfica e o repórter Cleber Dioni colheu testemunhos de familiares, amigos e auxiliares próximos do ex-presidente.

Resultado foi tal que fomos contratados para fazer o Perfil Parlamentar de Leonel Brizola, que havia morrido naquele ano, de 2004.

Com ânimo juvenil ele e o repórter Cleber Dioni foram a campo, atrás dos testemunhos de família e amigos na região de Carazinho onde  nasceu e de onde saiu adolescente o Brizola.  Depois de entrevistas na cidade, restava ir ao cemitério a 40 quilômetros sob um vento gelado, no fim da tarde. “Não vale a pena”, sugeriu Dioni, já exausto. Ele lembrou da velha lição da Última Hora: “Sempre vale a pena ir no local”.

Foram e encontraram um amigo de infância, colega da escola primária de Leonel Brizola, rezando e limpando o túmulo.

Com o mesmo entusiasmo, no ano seguinte se meteu pelo interior do Uruguai em buscas dos vestígios de Bento Gonçalves, para uma reportagem biográfica do herói farroupilha, que talvez tenha sido seu último trabalho e permanece inédita.

 

 

 

 

 

VILSON ROMERO/Famélica Pátria verde-amarela

Vilson Antonio Romero (*)

O planeta Terra está faminto.

A ONU denuncia que há 193 milhões de pessoas em 53 países em situação de insegurança alimentar aguda, ou seja, precisam de assistência urgente para sobreviver.

E o Brasil não está fora deste famélico mapa mundi, como revela a Rede Penssan: 33 milhões de brasileiros passam fome, e mais da metade (58,7%) da população tem pouco ou quase nenhuma comida no prato.

Como causas, além da pandemia, a crise econômica, o desemprego e a inflação impulsionando a favelização e a população em situação de rua. Os mais de 12 milhões de desempregados e de 5 milhões de desalentados (que desistiram de procurar trabalho) estão na ponta deste iceberg da fome.

O número de favelas e palafitas nas médias e grandes cidades dobrou desde 2010, passando de 6.329 em 323 municípios para 13.151 em 743 cidades.

A renda média domiciliar “per capita” caiu para R$ 1.353, menor nível desde 2012, segundo o IBGE. O FGV Social acrescenta que quase 11% dos brasileiros, mais de 23 milhões de pessoas, terminaram 2021 abaixo da linha da pobreza, com menos de R$ 7 ao dia.

Com o preço do gás de cozinha nas alturas, os gravetos, os tocos de árvores e a lenha voltaram a ser fonte de energia nas casas e malocas, consumindo em 2021, 24 milhões de toneladas, o maior patamar desde 2009.

Outro drama que salta aos olhos em cada esquina, semáforo, marquise ou viaduto é o aumento das “pessoas em situação de rua”, os “homeless”, o lumpesinato que o êxodo rural, a desocupação, a vagabundagem ou a drogadição empurra para as cidades

Levantamento da UFMG aponta que só em 2022, mais de 26 mil pessoas foram morar nas ruas. Essa população saltou de 158 mil em 2021, para 185 mil em maio último, em contagem, inequivocamente, subavaliada, em todo o Brasil.

As iniciativas voluntárias têm se revelado insuficientes para enfrentar essa tragédia, pois desde quando, nos anos 90, Herbert de Souza liderou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, apesar de as campanhas comunitárias continuarem, involuímos, como diagnostica a rede Penssan, pois as políticas públicas de combate à pobreza e à miséria que, entre 2004 e 2013, reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros, foram abandonadas.

Os parlamentares e governantes que assumem em 2023 devem se comprometer com essa meta: comida no prato dos brasileiros.

Como, na nona maior economia do mundo e no segundo maior exportador de alimentos, tem tanta gente passando fome? A calamidade do prato vazio está nas ruas. Alimentos para nossos irmãos!

……………………………..

(*) jornalista, auditor fiscal aposentado, vice-presidente da Associação Riograndense de Imprensa e conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip)

 

rea de anexos

VILSON ROMERO/ Dia da Imprensa e o protagonismo da ARI

Vilson Antonio Romero (*)

A história do Dia da Imprensa, comemorado em 1º. de junho, desde que, em 13 de setembro de 1999, o então presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei 9.831, nos traz rememorações da história iniciada em 1774, quando, em 13 de agosto, nasceu, na localidade de Colônia de Sacramento, hoje no Uruguai, o cidadão Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça, aliás Hipólito da Costa.

Pois a biografia de Hipólito foi esmiuçada e retratada pelo saudoso jornalista e pesquisador Raul Quevedo, pelotense de quatro costados, nos livros “Em nome da liberdade” e “Hipólito da Costa: Pioneiro da Independência do Brasil”, deixando muito escancarado o vanguardismo do fundador do Correio Braziliense.

Aos 18 anos, depois de viver alguns anos em Pelotas, Hipólito foi cursar Direito, Filosofia e Letras na Universidade de Coimbra, em Portugal. Após passagens atribuladas nos Estados Unidos e também em terras lusas, exilou-se na Inglaterra, aonde passou, em 1º de junho de 1808, a publicar o Correio, com posicionamento bastante crítico à política praticada por Portugal no Brasil.

Suas principais bandeiras, amplamente divulgadas nas edições com larga circulação cá em Pindorama, eram a independência, a abolição da escravatura e a interiorização da capital brasileira.

Com essa retrospectiva, em 1º. de julho de 1996, a Associação Riograndense de Imprensa (ARI) e o sindicato gaúcho dos jornalistas lançaram o Manifesto à Nação pugnando a alteração da data alusiva à imprensa, até então relacionada ao surgimento da Gazeta do Rio de Janeiro, em 10 de setembro, cuja circulação iniciou três após a do Correio Braziliense.

Essa tese, por solicitação expressa da ARI, foi encampada pelo então deputado federal Nélson Marchezan, resultando no projeto de lei (PL) nº 3.559, publicado no Diário da Câmara dos Deputados em 2 de setembro de 1997, com apoio de diversos parlamentares federais da época, como Germano Rigotto, Valdeci Oliveira, Wilson Cignachi, Luis Roberto Ponte, Odacir Klein, Júlio Redecker, Yeda Crusius, Airton Dipp, Adroaldo Streck, Jair Soares, Paulo Ritzel, Fetter Junior e Carlos Cardinal.

Pois esta proposta pluripartidária teve a acolhida dos congressistas, tendo sido aprovada pela Câmara em 1º. de dezembro de 1998 e pelo Senado em 3 de agosto de 1999 (sob número de PLC 60/98) e sancionada logo em seguida por FHC.

Portanto, nossa saudação a Hipólito, ao Correio Braziliense (apesar de outro, mas ainda circulando na capital brasileira), à Associação Riograndense de Imprensa (ARI), protagonista desta mudança e à toda a imprensa brasileira, tão importante e fundamental nestes tempos turbulentos de radicalização e desinformação. Feliz Dia da Imprensa.

(*) Vilson Romero, jornalista, vice-presidente da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) e conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)

 

VILSON ROMERO

MARCIA TURCATO/ A desinformação e o ataque às mulheres jornalistas

Por Márcia Turcato*

A máxima “informação é poder” foi atualizada para “desinformação é poder”.  A desinformação é uma estratégia global e concorre com a ética na informação. A desinformação integra o arcabouço das convicções ideológicas e para combatê-la um importante passo a ser dado é deixar de chamá-la de fake news. Uma notícia, por definição, não é falsa, ela foi apurada com ética por um/uma jornalista profissional. Falsas são as narrativas publicadas em portais que, embora pareçam ser sítios de notícia, publicam conteúdo sem responsabilidade social com o objetivo de prejudicar a capacidade de avaliação da audiência.

Conhecidas como fake news, as versões distorcidas da informação se apropriam de algum traço da realidade de forma a conferir credibilidade às teses de grupos de ideologia indefensável.  A desinformação imita o jornalismo na forma, mas não nos procedimentos. São criados personagens e inventados fatos para construir mentiras estratégicas para que pareçam verídicas e ganhem impulso nas redes sociais e, com isso, conquistar a simpatia de cidadãos de boa fé.

Em alguns casos, o discurso não é alterado, mas é feita edição das imagens, modificando a velocidade dos frames, ou o áudio da gravação, para que o protagonista aparente estar alterado e perca credibilidade junto a plateia. Essa é outra face da manipulação tecnológica que precisamos enfrentar.

Embora já exista um esboço de controle, as redes sociais ainda são um mundo de penumbra, onde nem sempre é possível identificar autores e seus propagadores. É um espaço sem impressão digital. Não sabemos de fato quem está teclando e não há regras claras sobre o seu uso. No entanto, é preciso reconhecer a importância da comunicação digital na sociedade e a popularização, a baixo custo, da produção de conteúdo que ela proporciona.

Nessa terra árida que é a web, as mulheres que exercem a profissão de jornalista são as maiores vítimas de ataques de toda a natureza. Em 2021, o relatório da Abraji- Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, identificou 1.270 agressões contra veículos de imprensa, sendo que em 91,3% dos casos o ataque foi contra mulheres jornalistas que haviam assinado os artigos publicados.

O relatório da Abraji aponta uma tendência de misoginia, machismo e descalabro que cresceu a partir de 2018 com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência da República. O ataque às jornalistas, e às mulheres de um modo geral, parece refletir uma tendência de comportamento coletivo que imita o perfil do chefe do Executivo federal.

Diante desses fatos, é urgente a formação de um grupo temático que discuta o que é informação, identifique as estratégias de desinformação em circulação no Brasil, suas conexões no mundo da web, atue para encontrar caminhos que exponham essa rede global da desinformação como uma ferramenta de manipulação ideológica e crie mecanismos de proteção para os profissionais da imprensa. Para isso é fundamental discutir os temas relacionados a desinformação, regulação do uso das redes sociais, informação e poder, desinformação e governabilidade, informação e ética e deepweb (web profunda, que não pode ser acessada por mecanismos de buscas).

*Jornalista profissional formada na UFRGS, autora do livro “Reportagem: da ditadura à pandemia”.

FRAGA/ Rosvita Saueressig, anotações para um perfil (2)

Após 12 anos no mercado publicitário do Rio, mudei para SP em 1º/5/97.
Uma mão na frente e outra atrás, tive uns dois anos difíceis: vivia de escassos frilas.

Ao circular por eventos, encontrei a Rosvita num deles e daí resultaram algumas visitas à casa dela e do Nei. Ela estava no Valor Econômico e o Nei tinha seu restaurante em Vinhedo, na Grande SP. Esses encontros eram um porto seguro afetivo.

Até que certa vez o cinto apertou e não tinha dinheiro nem para pagar a pensão da minha ex-mulher e os 3 filhos.

Recorri à Rosvita e ela prontamente me deu um help. Prometi pagar quando as coisas melhorassem. E quando melhoraram, me tornei redator da Made Brasil, braço de design da W/Brasil.

Procurei a Rosvita para saldar a dívida e ela, prontamente, recusou o dinheiro. E como era natal, sugeriu que eu comprasse mais presentes para a família.

Contando assim, parece apenas mais um gesto solidário entre velhos amigos. Mas foi mais que isso, e a diferença estava na atitude afetuosa da Rosvita.

Em seguida ela foi atuar no marketing de um cartão de crédito, trocamos alguns telefonemas, e acabei de volta aos pagos.

Agora que a Rosvita se foi, poderia desfiar a baita admiração pela sua extraordinária capacidade jornalística e tantos outros méritos profissionais e pessoais dela, que todos reconhecem e podem relembrar.

Mas nesse momento de perda e saudade prefiro destacar esse episódio humanitário. Rosvita sabia dar o melhor de si a todos com quem convivia, bem-humorada, atenta, sempre disposta e disponível. Uma fortaleza entre nós.

 

GERALDO HASSE / Respeito aos que vivem na pior

A maioria das pessoas se enternece diante de um cão perdido, um gatinho faminto ou um pássaro ferido. Alguns se revoltam ao ver um cavalo magro puxando uma carroça pelas ruas. De uma forma ou de outra, todo mundo se dispõe a ajudar os animais perdidos ou explorados, mas não se vê a mesma disposição quando o perdido ou judiado é um ser humano.
Com frequência se veem pessoas incomodadas ou até revoltadas com mendigos, pedintes, carentes ou catadores – todos mais ou menos confundidos com “vagabundos” ou identificados como “essa gente que não gosta de trabalhar”.
Também cresce o número de pessoas que se dispõem a proteger árvores ou defender o verde, mas não dão refresco nem estendem a mão aos que, supostamente, “vivem encostados no Bolsa Família…”
Quem já se defrontou com um flagelado (da fome, da seca ou das enchentes) sabe que uma pessoa nessa situação fica fora do eixo, abalada no seu equilíbrio, perdida e sem rumo.
Antigamente havia até uma expressão – “abobado da enchente” – usada para definir pessoas perturbadas pela perda da casa, de utensílios domésticos ou de algum parente durante uma cheia. Às vezes a pessoa parecia lesada apenas por ter ficado sem dormir ou sem comer na noite em que as águas invadiram sua casa.
A expressão caiu de uso, mas a situação se repete periodicamente nas chamadas zonas ribeirinhas ou nas encostas – áreas de baixo valor onde o povo acaba construindo suas moradas.
Agora imagine-se alguém que durma na rua, passe frio, e não faça refeições regularmente, não tenha onde tomar banho e vestir uma roupa limpa antes de se acomodar num ambiente minimamente confortável para sorver, por exemplo, uma canja, a mínima comida de sal, e depois desfrutar de um sono reparador.
Agora imagine-se o pobre flagelado (pela miséria) comendo um prato de arroz + feijão com bife a cavalo, batata fria, e a sobremesa sendo um quindim ou um camafeu feito em Pelotas, RS.
Por isso são dignas de admiração e aplauso essas pessoas que toda noite saem pelas ruas e oferecem sopa aos famintos espalhados pelos viadutos e marquises. É o mínimo de humanismo para seres degringolados.
É claro que não basta o prato de comida, como também não resolvem a esmola, as campanhas do agasalho. É preciso dar o passo seguinte, encaminhá-los, pobres carentes, aos serviços públicos capazes de lhes oferecer a ajuda mínima para que recuperem a estima e, a seguir, consigam a mínima inserção na sociedade e na economia.
Nesse aspecto, o Bolsa Família é o primeiro degrau da porta que leva à redenção do cidadão degradado não importa por que motivo. É degrau porque exige que as famílias mantenham os filhos na escola – a porta capaz de levar a um mundo novo, longe da miséria.
A relação custo/benefício do Bolsa Família precisa ser reconsiderada pelos críticos dos programas de inserção social dos caídos do caminhão da economia. O custo do BF representa menos de 10% do que o Tesouro Nacional paga de juros da dívida pública, na qual estão pendurados miles de investidores de países ricos.
Que cada um pense nisso ao ver um perdido na noite dormindo na rua nesse último inverno do mentecapto no Planalto.
ORAÇÃO DO DIA
“Senhor, dai pão a quem tem fome/e fome de justiça a quem tem pão”

BENEDITO TADEU CÉSAR / Sem alarmismo, mas com força. Não ao golpe!

Benedito Tadeu César*

Setores bolsonaristas atacam cada vez mais o sistema eleitoral e os democratas o defendem enfaticamente. Seria possível pensar na possibilidade de estarmos sendo manipulados para defender as urnas eletrônicas e o processo de apuração enquanto os próprios bolsonaristas se preparam para atacá-los de fato, com o objetivo de alterar o resultado eleitoral em favor de Bolsonaro? Se isso acontecesse, nós ficaríamos sem argumentos para discordar do resultado.

Que fique claro: não existe sistema eletrônico que seja infalível e inviolável. Fosse assim, não existiriam tantas empresas de segurança eletrônica e nem seriam contratados tantos hackers para testar os sistemas de proteção existentes nas instituições financeiras, militares etc. em todo o mundo.

Esta pode parecer uma hipótese paranoica, mas quando começaram o processo do impeachment da Presidente Dilma Rousseff e o processo contra o ex-Presidente Lula da Silva, pouquíssimos analistas e/ou militantes acreditavam que Dilma seria derrubada e, menos ainda, que Lula pudesse ser preso. Achávamos que o apoio popular a Dilma e principalmente a Lula seriam suficientes para impedir qualquer golpe e, principalmente, para impedir a prisão de Lula. A todos, parecia loucura alguém sequer tentar prender Lula.

Desta vez, estejamos alertas.

Isto significa a possibilidade de estarmos encurralados? Não devemos mais defender as urnas eletrônicas e o processo eletrônico de apuração dos votos? Claro que não, a Justiça Eleitoral e o processo eleitoral eletrônico devem ser preservados e defendidos. O que precisamos, além disto e com urgência, é construir uma forte barreira democrática na sociedade civil, capaz de resistir a qualquer tentativa de golpe.

A força desta barreira dependerá de sua amplitude e enraizamento na sociedade brasileira: todos os setores e instituições da sociedade civil e do Estado democrático, inclusive ex-bolsonaristas, a OAB, a ABI, as organizações religiosas, as centrais sindicais e os sindicatos de trabalhadores, as associações empresariais de todos os setores e níveis, as diversas instâncias da Justiça e do Ministério Público, os partidos políticos e a imprensa de todas as formas e meios precisam ser mobilizados e instados a se manifestarem fortemente contra qualquer tipo de golpe.

É preciso constituir uma frente tão ampla quanto for possível em defesa da democracia, que reúna todos os candidatos democráticos e seus eleitores no repúdio a qualquer tipo de golpe. Precisamos reunir lulopetistas, ciropedetistas, dória-ou-eduardopeessedebistas, tebetemedebistas, janoneavantistas, dávilanovistas, leonardoupistas e os demais que houver verapessetuistas e todos os demais “istas” do campo democrático.

Os setores bolsonaristas das forças armadas e da sociedade civil precisam ser fortemente alertados de que eles estarão isolados se tentarem desencadear qualquer tipo de golpe, seja ele eletrônico ou armado. A união dos democratas de todos os matizes é o caminho hoje para garantir a democracia.

* Cientista político, professor da UFRGS (aposentado) e ex-professor da UFES, integrante da coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito

VILSON ROMERO/ Imprensa livre

Vilson Antonio Romero (*)

Em 3 de maio, comemora-se no Brasil, o Dia do Parlamento, instituído por lei de 1975, saudando a instalação da primeira Assembleia Constituinte e a criação do Poder Legislativo em território nacional.

O calendário também assinala a data como o Dia do Sertanejo, Dia do Pau-Brasil, Dia do Sol e, não menos importante, o nascimento do florentino Nicolau Maquiavel, em 1469, entre outros registros.

Mas, para nós, profissionais da comunicação social, a maior referência do 3 de maio é a celebração do “World Freedom Day”, o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

A comemoração instituída em 20 de dezembro de 1993 pela Assembleia Geral das Nações Unidas celebra o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Declaração de Windhoek.

Dois anos antes, em maio de 1991, a Unesco realizou uma conferência em Windhoek, na Namíbia, que encerrou com a Declaração para o Desenvolvimento de uma Imprensa Livre, Independente e Pluralista.

Esse manifesto sublinhou, entre outras coisas, que "a criação, manutenção e promoção de uma imprensa independente, pluralista e livre é essencial para o desenvolvimento e manutenção da democracia numa nação, e para o desenvolvimento económico".

Apesar de, anualmente, a data ser saudada em todos os cantos do mundo livre e democrático, os profissionais e veículos de comunicação social seguem sofrendo todo o tipo de atentado ao redor do planeta.

A ONG Repórteres Sem Fronteiras (Reporters sans Frontiéres), com sede em Paris, já denuncia, em seu barômetro da liberdade de imprensa, a morte de 23 jornalistas, somente em 2022.

A Inter American Press Association (SIP) encerrou sua reunião semestral em abril, na Flórida, EUA, denunciando um aumento das ocorrências de agressões, prisões e exílio forçado de jornalistas nas Américas, além de ataques à mídia, assédio judicial, estigmatização e um saldo de 15 assassinatos de jornalistas.

Neste início de maio, a Unesco e o governo uruguaio realizam em Punta Del Este uma conferência para a celebração do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, com o tema “Jornalismo sob cerco digital”.

O encontro abordará o chamado autoritarismo digital, que ocorre quando há controle governamental das informações via ferramentas digitais, de modo a atrapalhar o trabalho jornalístico e colocar em risco repórteres e defensores de direitos humanos.

Dentro de uma perspectiva muito próxima aos brasileiros, também devem analisar as formas pelas quais o autoritarismo digital pode comprometer eleições, justificar guerras, além de reprimir e desorientar os cidadãos.

O mundo digital abriu janelas de oportunidade para o exercício da liberdade de imprensa, da ampliação do jornalismo investigativo, mas escancarou a porta de entrada para as ameaças e ataques virtuais, intensificados na última década.

São fatores importantes a serem objeto de muito reflexão por parte de profissionais da área, na busca de condições plenas de trabalho. Que o Dia Internacional da Liberdade de Imprensa impulsione um pouco mais as garantias do ato de bem informar à sociedade.
…………..
(*) jornalista, vice-presidente da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) emembro da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Direitos Humanos da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)

LOURENÇO CAZARRÉ/ Meninos de zinco

“Meninos de zinco”

Svetlana Aleksiévitch

Companhia das Letras, 366 páginas

Painel polifônico de uma guerra

Lourenço Cazarré

Dias atrás o Afeganistão voltou a ser citado no noticiário internacional por uma informação sobre meninas que estariam, agora, sendo impedidas de ir à escola. Era apenas uma notinha perdida em meio à verdadeira borrasca de cenas assombrosas geradas pela Guerra da Ucrânia. Mas uma notinha já esperada, claro.

Ano passado, após uma presença de quase vinte anos no Afeganistão, forças de países ocidentais – liderados pelos Estados Unidos – retiraram-se daquele país. O governo que deixaram por lá desmoronou em poucas semanas e a nação de ásperas, belas e inacessíveis montanhas voltou ao regime teocrático anterior (1996-2001), fundamentalista islâmico, o Talibã. A retirada dos últimos funcionários e soldados ocidentais foi plena de cenas bíblicas. Como as centenas de pessoas desesperadas correndo sob os aviões de transporte, com alguns homens alçando voo agarrados às rodas, para despencar em seguida. Como o dilúvio de homens, mulheres e crianças que – muitos só com a roupa que vestiam – se movimentava desesperadamente em direção ao aeroporto de Cabul.

Caçada

Os americanos e seus aliados europeus entraram no Afeganistão, no começo deste milênio, para – diziam – caçar Osama Bin Laden, o cérebro do ataque de 11 de setembro às Torres Gêmeas. Certamente sabiam onde estavam se metendo. Estavam enfiando seus pés calçados com botas em um país dividido entre incontáveis clãs acostumados a entreveros, entre os quais se destacava o famigerado Talibã, cujas proezas mais conhecidas mundialmente eram a implosão de duas imensas estátuas de Buda, esculpidas há mil e quinhentos anos num penhasco, e o veto à presença de meninas nas escolas.

Duas décadas após o desembarque, contabilizando a morte de mais de três mil e quinhentos militares, essa força ocupante se retirou de forma destrambelhada, legando ao Talibã um vastíssimo e moderno equipamento (carros de combate e armas sofisticadas) que transformou aquele país paupérrimo em uma potência militar considerável.

Não foi o primeiro fracasso de tropas forasteiras, não. Foi o terceiro.

Os britânicos, no máximo esplendor da Pérfida Albion, foram os primeiros a serem expulsos de lá. Foram derrotados pelos nativos – invariavelmente barbados e com um turbante na cachola – ao cabo de três guerras que se estenderam por oito décadas, de 1839 a 1919.

Lênin e Stálin

Os segundos foram os meninos nascidos e crescidos numa imensa pátria inventada pela dupla Lênin e Stálin. Vamos chamá-los russos para simplificar a redação. Eles se apresentaram (russos não invadem, diz Putin) por lá em 1979, quando ainda eram conhecidos como soviéticos, e se retiraram dez anos após, com um saldo de 15 mil mortos e centenas de desaparecidos.

Bem, os russos apareceram para dar respaldo a um recém-instalado governo “socialista”. Em tese, seus soldados eram internacionalistas entusiasmados e queriam ajudar o generoso povo afegão a livrar-se do seu inconcebível atraso.

O Afeganistão era então e continua sendo um país complicado. Todos os países o são, na verdade. Mas lá a população se divide entre quatro grandes etnias (pashtuns, 52%; tadjiques, 21 %; hazaras, 19%; usbeques, 5%). O islamismo, religião quase exclusiva, se reparte em dois ramos principais (sunitas, 80%, xiitas, 20%). A economia nacional gira em torno das drogas. De acordo com estudo da ONU, 93% dos opiáceos produzidos no mundo saem de lá, bem como a maior parte (80%) da heroína consumida na Europa.

Uma jornalista baixinha

Porém, no caminho dessa tropa russa – como diria um poeta – havia uma jornalista baixinha.

O jornalismo, como se sabe, é a profissão dos abelhudos. Jovens curiosos do mundo todo frequentemente viram jornalistas. Mas em alguns países essa inclinação pessoal pela busca da informação – fofoca indigesta, segundo todos os poderosos – não basta. Em nações como a Rússia, soviética ou pós, o sujeito ou sujeita precisa ter também coragem, e muita.

Esse é o caso de uma ucraniana criada em Belarus chamada Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Nobel de Literatura em 2015. Que hoje – por via das dúvidas, por cautela – reside na Alemanha.

Svetlana escreveu muitos livros. Um deles sobre a apavorante tragédia de Chernóbil, cidade que hoje sabemos estar situada na Ucrânia. Escreveu também um belíssimo livro sobre a atuação de senhoras e senhoritas nas forças armadas russas durante a Segunda Guerra Mundial: A guerra não tem rosto de mulher. E tem ainda na sua prateleira pessoal um trabalho sobre a década em que os soviéticos chafurdaram num pântano de sangue, loucura, desespero, corrupção e morte chamado Afeganistão.

Guerreiros invencíveis

Dizem os historiadores que – ao entrar num país que na nossa imaginação não passa de uma interminável cadeia de pirâmides de granito – os soviéticos queriam mostrar a seus grandes rivais (os americanos, pouco antes derrotados no Vietnã) que eles, sim, os heróis da Grande Guerra Patriótica, eram guerreiros invencíveis.

Não eram então e nem são agora, garantem os conhecedores da arte bélica. Antes, perderam uma guerra para o Japão (1904-1905) e não conseguiram vencer a pequenina Finlândia (1939-1940).

Agora, entraram na Ucrânia para uma guerra-relâmpago que deveria durar uns três dias e que culminaria com a fuga – talvez até mesmo fantasiado de dançarino cossaco – do presidente Volodimir Zelensky. Seria uma guerra muito rápida, ilustrada por belíssimas imagens televisivas: lindas mocinhas ucranianas colocando rosas vermelhas nas bocas dos canhões dos tanques; e velhinhos encurvados, apoiados em bengalas, beijando agradecidos as mãos calosas dos fortes e bravos soldados de Moscou que ali estavam para libertá-los do nazismo renascido.

Não, não foi o que ocorreu. Zelensky não fugiu e, pelo contrário, ordenou aos homens que levassem suas mulheres e filhos até a fronteira e que voltassem logo para lutar.

Na Ucrânia, os invasores russos atolaram-se num engarrafamento de sessenta quilômetros de blindados e carros de transporte. Os pneus dos caminhões eram ruins e rebentavam. Os tanques eram velhos e fumacentos. A comida rareou. Em grande parte, talvez mais da metade, os soldados eram meninos de 18 anos, que podiam voltar a pé para casa – algo impossível para os que foram enviados ao longínquo Afeganistão.

A invasão russa da Ucrânia – segundo analistas de questões guerreiras – serviu principalmente para tranquilizar os dirigentes dos países signatários do Tratado do Atlântico Norte. Ou seja, serviu para mostrar aos generais das nações integrantes da Otan que o novo césar da terrinha da vodca não tem aquele exército fantástico que costuma propagandear. Aliás, já se fala que os russos tiveram que recorrer ao socorro (bem remunerado) de quem realmente sabe combater e matar: os nada gentis mercenários sírios e chechenos.

Incompetência e corrupção

Talvez uma ideia mais próxima do que seja verdadeiramente o exército russo atual possa ser encontrada no livro Meninos de zinco. Características marcantes: total incompetência em logística, falta de boa comida e de medicamentos básicos, armas e equipamentos obsoletos, violência extrema contra os adversários e igualmente entre os integrantes da própria força e, acima de tudo, uma corrupção avassaladora em todos os níveis da administração.

Svetlana esteve no Afeganistão: “Subi num helicóptero… De cima vi centenas de caixões de zinco preparados de antemão, brilhando ao sol, belos e assustadores…”

Na verdade, Meninos de zinco é muitíssimo mais que um retrato de uma conflagração. É um libelo candente contra a guerra, contra todas as guerras. Essa obra gerou contra a jornalista um processo que se arrastou por anos e que está, em parte, reproduzido nas páginas finais da edição brasileira do livro.

Um painel polifônico

A técnica de Svetlana é aparentemente simples. Ela ouve centenas de pessoas sobre um determinado tema e depois transcreve as partes mais importantes (e impactantes) desses depoimentos. Trabalha com o acúmulo de vozes fragmentárias. Sem discursos, sem frases feitas, sem slogans, ela avança. E esses pequenos retalhos – monólogos, confissões, explosões, delírios – acabam formando um painel polifônico do assunto tratado.

Seguindo o exemplo de Svetlana, reproduziremos aqui alguns retalhos de falas de gente que viveu e padeceu a Guerra do Afeganistão – soldados, oficiais e mulheres que integraram as tropas. E ainda, e principalmente, mães de meninos que voltaram para casa – estraçalhados seus corpos – em caixões funerários de zinco.

Depoimentos

Mãe:

Ele matou um homem… Meu filho… Com uma machadinha de cozinha… Ele tinha voltado da guerra e aí matou…  Anunciaram na tevê que pescadores tinham recolhido um cadáver no lago da cidade… em pedacinhos… Uma amiga me ligou: Você leu? Foi um assassinato profissional… Estilo afegão….

Está escutando um latido de cachorro? Não? Eu sempre escuto um latido de cachorro assim que começo a contar isso.

Só teve uma vez que ele falou do Afeganistão. Eu estava preparando um coelho. Tinha uma tigela com sangue… Ele molhou os dedos naquele sangue e olhou… E falou para si mesmo:

– Trouxeram um amigo com a barriga destruída… Ele pediu que o matasse com um tiro… E eu o matei com um tiro…

Soldado, atirador de granada:

Dezoito cirurgias, quatro com anestesia geral… No hospital recebi uma carta de um amigo. Através dele fiquei sabendo que o nosso blindado tinha explodido numa mina… Ele tinha visto uma pessoa voando junto com o motor. Era eu.

Depois de duas, três semanas não sobra nada de quem você era antes, só seu nome… Fomos ensinados: fica vivo quem atira primeiro…

Vendíamos munição cozida… A bala cozida não voa, é cuspida para fora do cano. A gente botava uns baldes e jogava lá a munição e cozinhava por duas horas! À noite levávamos para vender. Comandantes e soldados, heróis e covardes, todos negociavam…

Enfermeira:

É uma guerra justa, nos diziam, estamos ajudando o povo afegão a terminar com o feudalismo e a construir uma bela sociedade socialista…

Os oficiais bebiam todo o álcool, tratávamos as feridas com gasolina. As feridas cicatrizavam mal… O sol ajudava. O sol forte mata os micróbios…

Não havia pijamas, chinelos, mas já tinham pendurado slogans, palavras de ordem e cartazes…

A coisa mais desagradável no Exército é o ambiente de delação, a ordem de delatar.

Podia salvar, mas não consegui acordar o cirurgião bêbado…

Muitas vezes de uma pessoa só sobrava meio balde de carne… E escrevíamos: morto num acidente de automóvel, caiu num barranco, intoxicação alimentar…

Ao lado, no kichlak (aldeia), os afegãos andavam com nossos pijamas de hospital, com nossos lençóis na cabeça como turbante. Sim, nossos meninos vendiam tudo…

E eles vendiam armas, munição para depois serem mortos por essas mesmas armas…

Soldado, motorista:

Os comandantes andavam meio agitados, cochichavam entre si. Estava chegando a hora do almoço, começaram a puxar caixas de vodca… Eles nos enfileiraram e ali mesmo anunciaram que em algumas horas um avião viria nos buscar – estávamos a caminho da República do Afeganistão para cumprir nosso dever militar.

Quando minha esposa perguntou como seu marido tinha ido parar no Afeganistão, responderam a ela: “Ele manifestou o desejo, voluntariamente”.

Soldado, artilheiro:

Passamos num kichlak, pedimos algo para comer. Segundo as leis dele, se uma pessoa está na sua casa e tem fome, você não pode recusar comida. As mulheres nos sentaram à mesa e nos deram comida. Quando fomos embora, espancaram essas mulheres e seus filhos com pedras e paus. Elas sabiam que iriam matá-las, mas ainda assim não nos expulsaram…

Funcionária:

Nos postos nas montanhas o pessoal não vê ninguém por anos. Vai um helicóptero três vezes por semana. Eu fui. Um tenente se aproximou:

-Moça, tire o lenço da cabeça. Solte o cabelo. – Eu tinha cabelo comprido. – Já faz dois anos que só veja a cabeça raspada dos soldados.

Os soldados… Os meninos… Eles saem daqui devastados… Viram muita coisa aqui… Como uma mulher que se vende… por duas latas de carne moída.

Subtenente, enfermeiro:

Faltavam remédios.

A metade (das seringas descartáveis) não sugava nem aspirava.

Curativos elásticos não tinha mesmo.

O soldado soviético é o mais barato. O mais paciente, sem exigências…. Era assim em 1941. Cinquenta anos depois ainda é assim. Por quê?

Trazíamos dinheiro das missões de combate… Quem tivesse a patente mais alta tomava da gente. Ali mesmo, diante dos nossos olhos, dividiam entre si.

Na alfândega levavam os presentes que trazíamos para casa: perfumes, lenços, relógios.

– Não é permitido, pessoal.

Mãe:

Ele era baixinho. Nasceu feito uma menina, pesava dois quilos, media trinta centímetros. Eu tinha medo de segurá-lo…

Eu o apertava contra mim:

– Você é meu raio de sol…

Foi aceito no Exército. Eu rezava… para que não o espancassem. Eu tinha medo que os rapazes mais fortes fossem humilhá-lo. Ele dizia que eram capazes até de mandar limpar o banheiro com uma escova de dentes e lavar as cuecas dos outros.

Eu estava esperando que ele voltasse para casa, faltava um mês para o final do serviço…

Primeiro veio o capitão do centro de recrutamento:

– Força, mãe!

Caí no chão:

– Meu raio de sol! – Me levantei e parti para cima do capitão com os punhos fechados: – Por que você está vivo e meu filho não? Você é tão saudável e forte. E ele é pequeno. Você é um homem e ele é um menino. Por que você está vivo?
Soldado, comunicações:

Eu só tinha um problema: onde roubar carregadores de munição adicionais… No combate você pega o último carregador e a última munição – e põe nos dentes. É para você.

Quando andamos de carro por Cabul, as mulheres jogavam paus e pedras nos nossos tanques. (Nos) xingavam com palavrões russos sem sotaque, gritavam: Russo, vá para casa…

Vi num mesmo avião voltar para casa caixões de zinco e malas com casacos de pele…

Em nosso país cada geração recebe sua guerra…

Mãe:

Eles iam em fila ao banheiro… Não tinham permissão para ir sozinhos porque, quando souberam que iam ser mandados para o Afeganistão, um se enforcou no banheiro e outros dois cortaram os pulsos…

Não sou louca, mas espero por ele. Contam um causo: trouxeram um caixão para uma mãe, ela o enterrou. Depois de um ano, o filho voltou… Também estou esperando. Não sou louca…

Major, de um regimento de artilharia:

De quem foi essa guerra? Das mães. Elas combateram. E vão combater até a morte. Cuidar, rogar por nós. Por nossas almas…

Por que quem tem dezoito anos, dezenove anos, mata com mais facilidade do que quem tem trinta? Eles não têm pena.

Mas nos quartéis aqueles meninos tinham oito, dez camas vazias todo mês. Quem dormia nelas já estava na geladeira… No necrotério.

Nas operações – ali mesmo nos deitávamos, ali mesmo, desculpe, fazíamos as necessidades. Um provérbio de soldado: é melhor ficar na própria merda do que virar merda nas minas…

Primeiro-tenente, de um pelotão de morteiros:

A guerra acabou. Agora vão nos esconder em algum lugar mais distante. Encerrar. Isso já aconteceu com a guerra da Finlândia.

Funcionária:

Não deixam as mulheres entrar no banheiro dos oficiais, porque as mulheres são sujas… E esses mesmos oficiais vêm nos procurar… Para uma coisa só… Para isso mesmo… Batem à porta à noite com uma garrafa de vinho. Na carteira têm fotos dos filhos, da esposa, eles nos mostram. É normal…

Mãe:

À noite, eu me deito e peço:

– Apareça no meu sonho, filhinho. Venha fazer uma visita.

Uma vez sonhei com um caixão… A janelinha estava no lugar da cabeça… Eu me inclinava para dar um beijo… Mas quem estava ali? Não era meu filho… Era alguém moreninho… Um menino afegão…

Primeiro tenente, tradutor:

Soldados com fome… Distróficos… Todo o corpo coberto de furúnculos. Avitaminose…

As pupilas de alguém morrendo por estilhaços perdidos que giram furiosamente…

Nosso oficial ao lado de um afegão enforcado. Sorrindo.

Soldado, batedor:

Normalmente você abre a porta e joga uma granada, para não levar uma rajada de metralhadora. Para que arriscar? Joguei a granada e entrei: estavam caídos uma mulher, dois meninos maiores e um bebê de colo. Numa espécie de caixinha… Em vez de berço…

À noite é terrível porque vejo… Nos sonhos não sou cego…

Funcionária:

Por acaso um hospital militar consegue funcionar sem mulheres? Os pacientes queimados… Desfigurados… Nem que seja só para colocar a mão sobre a ferida, transmitir alguma energia. Isso é compaixão. É trabalho para um coração de mulher. Você acredita em mim? Acredita em nós? Que nem todas lá éramos prostitutas?

Não dê meu nome. Considere que eu já não existo.

Mãe:

Você corre para o cemitério como se fosse um encontro…

Nos primeiros dias passei a noite lá… E não sentia medo…

Fico ao lado dele até terminar a tarde. Até chegar a noite. Às vezes grito e eu mesma não escuto até os pássaros saírem voando… Um bando de corvos. Paro de gritar. Por todos esses quatro anos fui todo dia. Só não fui por onze dias quando tive um início de enfarto. Não me permitiam levantar. Mas eu me levantei, fui quietinha ao banheiro… Quer dizer, queria correr para encontrar meu filho, queria cair no túmulo dele. Fugi com o uniforme do hospital…

Antes disso tinha tido um sonho. Valera (apelido do filho) aparecia.

– Mamãe não venha ao cemitério amanhã. Não precisa.

Lá, no túmulo… de certa forma meu filho mora ali… Calculei onde está a cabeça dele… Me sento ao seu lado e conto tudinho a ele… Como foi minha manhã, como foi o dia…

 

Escrito em 28, 29 e 30 de março de 2022.

Revisado em 6 de abril.

 

PAULO HADDAD / Uma sociedade dividida e os patamares da pobreza

No período que se estende no pós II-Grande Guerra até 1980, o Brasil teve 33 anos, em dois ciclos de expansão, em que a taxa de crescimento da economia foi superior a 7,5 % ao ano. Se tivéssemos mantido esse ritmo de crescimento, o brasileiro poderia ter atualmente, em média, um padrão de vida equivalente ao que tem o italiano ou o espanhol hoje em dia. Entretanto, nas últimas quatro décadas, o Brasil tornou-se um país de baixo crescimento econômico, sendo que, desde 2014, a nossa economia encontra-se semiestagnada com quase 30 milhões de desempregados, subempregados ou desalentados (os que deixaram de procurar emprego).

A falta de um processo de crescimento sustentado da economia brasileira tende a expandir o tripé das desigualdades sociais ao longo do tempo: as desigualdades da renda entre as famílias e entre as pessoas, as desigualdades da riqueza financeira e não financeira, e, principalmente, as desigualdades de oportunidades para que os jovens possam realizar os seus projetos de vida. O Brasil tem uma das mais elevadas taxas de desigualdades sociais do Mundo, o que ficou escancarado durante o ciclo da pandemia do coronavírus. Há, atualmente, segundo o IBGE, mais de 67 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza, dos quais muitos se encontram na miséria social. Somos uma sociedade dividida entre poucos brasileiros muito ricos e muitos brasileiros pobres e miseráveis.

Em um país de baixo crescimento ou em recessão crônica não se forma um excedente econômico que possa financiar as políticas de geração de renda e emprego ou, até mesmo, as políticas sociais compensatórias. As experiências históricas de diversos países nos mostram que:

  • As economias de mercado que apresentam melhor desempenho econômico sustentado são as que têm os melhores indicadores de igualdades sociais.
  • Políticas econômicas que aumentam as desigualdades sociais resultam em menor crescimento econômico.
  • As economias de mercado que têm piores indicadores de desenvolvimento social sustentável são as economias com pior distribuição de renda e de riqueza, independentemente do seu nível de desenvolvimento.
  • Políticas públicas bem concebidas e implementadas têm a capacidade de reduzir sensivelmente o número de pobres e de miseráveis de um país ou de uma região.
  • Economias de mercado que se envolveram em processos excessivos e dominantes de financeirização têm os seus níveis do tripé de desigualdades acentuados.
  • Entre os indicadores de desigualdades mais recentes, dois fatos merecem destaque: cresceu o número de pobres que se tornaram miseráveis (segmentos D e E da sociedade) e é possível identificar as trajetórias de empobrecimento de grupos sociais da classe média (funcionários públicos, profissionais liberais, microempresários, etc.) pelo desemprego, pelo apelo ao subemprego, pela fragilidade financeira ou pela perda de poder aquisitivo.

A trajetória, nesse caso, tem observado, frequentemente, o seguinte passo a passo: após a primeira queda de renda real, busca-se recompor o padrão de vida através da monetização dos ativos financeiros e não financeiros acumulados no passado. Esgotada essa alternativa ao longo dos meses, o efeito cremalheira ou a resiliência do padrão de consumo já conquistado induz a diferentes formas de endividamento (cartão de crédito, prestações), que pode ser fatal no momento seguinte. Um novo passo ocorre quando se abre mão do padrão de consumo, migrando do plano de saúde particular para o sistema público de atendimento à saúde, do aluguel em residências localizadas em bairros de classe média para moradias em áreas periféricas, etc. Nesse passo a passo, acumula-se o desalento, perde-se a autoestima, aumentam o estresse e a tensão emocional.

Quando um país passa por uma recessão prolongada ou por um extenso período de crescimento econômico muito baixo, a pobreza vai se configurando em diversos patamares que se diferenciam quanto ao acesso dos pobres a bens e serviços públicos e privados que atendam às suas necessidades básicas de sobrevivência, com o mínimo de dignidade humana. Não basta destacar como evoluem os indicadores de concentração de renda e de riqueza nacional, é também necessária uma imersão nas entranhas de cada patamar da pobreza a fim de se formularem e implementarem as políticas públicas mais adequadas à realidade de cada um.

Se a atual geração deixar como valor de legado para as futuras gerações de brasileiros uma sociedade dividida entre poucos ricos e muitos pobres miseráveis, terá confessado sua derrota na boa luta para a construção do futuro. E como disse o nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, em “Elegia 1938”: “Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição porque não podes sozinho dinamitar a Ilha de Manhattan”.

*Paulo Haddad é Membro do conselho consultivo no Instituto Fórum do Futuro. Economista, com especialização em Planejamento Econômico no Instituto de Estudos Sociais de Haia – Holanda, Professor Emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, ex-Ministro da Fazenda e do Planejamento. Presidente da PHORUM Consultoria e Pesquisas em Economia e Diretor da AERI – Análise Econômica Regional e Internacional.