Amyra El Khalili*
“Financeirização da natureza” é uma expressão nova que significa tornar financeiro tudo aquilo que deveria ser apenas econômico e socioambiental . Nem tudo o que é econômico é financeiro. Lamentavelmente, porém, tudo o que é financeiro é econômico.
Quando defendemos a importância da água em quantidade e qualidade, estamos tratando dos direitos fundamentais e do direito socioeconômico. Sem água não há vida; daí seu reconhecimento como direito de viver, garantido, inclusive, pela Constituição. Sem água também não é possível nenhuma atividade econômica. Experimente ficar uma semana sem água. Haverá convulsão social. Podemos ficar dias sem comer, mas nosso organismo não resistirá se passarmos dias sem água. Nenhuma cidade prospera sem água. E se ficarmos sem ar? O que acontece?
Sabemos o que significa ficar sem terra, sem casa, sem um lugar digno para viver. Quem paga aluguel já experimentou o gosto amargo da “financeirização”. Quem paga aluguel mensalmente está pagando para morar por um imóvel que não lhe pertence, assim vivendo refém da eterna dívida imobiliária. Igualmente, os que pagam condomínios, mesmo que sejam proprietários do imóvel, pagam pelos serviços e custos de manutenção de um imóvel coletivo, de modo que o condomínio não deixa de ser uma forma indireta de aluguel. Outros pagam, além do aluguel, o condomínio e o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano). Quando é que não temos que pagar? Muitos recorrem a empréstimos e pagam juros sobre juros, considerando que no Brasil se aplica o juro composto e não o juro simples, como ocorre nos países do norte. No juro composto, soma-se a dívida principal ao juro; no próximo vencimento, este juro se soma ao juro da conta anterior. Vira uma bola de neve, que vai crescendo caso não se consiga pagar. Esta é a contabilidade a que chamamos de “financeirização”.
A financeirização provoca o endividamento e é bem diferente de financiamento. O financiamento opera com taxas de juros compatíveis com a capacidade de pagamento de quem necessita do empréstimo. Permite que o empréstimo seja pago a longo prazo e com taxas baixas ou adotando juros simples, como ocorre, por exemplo, nos países do norte, que praticamente subsidiam os juros aos agricultores. No subsídio, o Estado empresta dinheiro sem cobrar juros e/ou isenta de tributos ou os reduz.
A “financeirização”, apesar de legal, também poderia ser qualificada como prática de “agiotagem institucionalizada”. A agiotagem é crime contra a economia popular, repudiada por nossa Constituição, e deveria ser combatida em todos os rincões do planeta; no entanto, essa velha prática, condenada desde sempre, historicamente se repete de diversas formas, com novas roupagens, portanto cada vez mais normatizada e legalizada. Para dar legitimidade à agiotagem, a prática de usurpação, que constitui um “pecado capital” pelo catolicismo, judaísmo e islamismo, políticos corruptos e corporações, entre outros, têm pressionado a sociedade para aceitar a adoção de determinados instrumentos econômicos que viabilizam esse modus operandi através de leis que promovem a “financeirização” para os pobres (endividamento com juros caros, como, por exemplo, o cartão de crédito) e o financiamento para os ricos (empréstimos com juros baixos, ou mesmo sem juros). Nessa conta, poderíamos incluir também os tributos, que são sempre mais altos para os pobres e mais baixos para os ricos.
Na natureza, a prática da “financeirização” vincula os direitos fundamentais do ambiente saudável e o direito à vida ao criar mecanismos de pagamento por tudo aquilo que a natureza produz gratuitamente. A natureza nos fornece água, ar, terra, minérios, biodiversidade (florestas, fauna e flora) e não cobra por esse benefício providencial. No entanto, para que possamos ter água em quantidade e qualidade, ar puro para respirar, terra boa para plantar, plantas medicinais para curar, rios e mares para nos banhar e nos abastecer, com a “financeirização da natureza” teremos que pagar para ter o que sempre tivemos por direito inalienável.
Os que propõem a “financeirização da natureza” argumentam que, sem pagar, não é possível manter as florestas em pé, ter rios limpos, ter a cidade limpa de resíduos sólidos, possuir terra sem agrotóxico e químicos, ter o ar respirável sem reduzir gases tóxicos, enfim, afirmam não ser possível preservar e conservar o meio ambiente sem que os bens comuns (água, minério, solo, ar, biodiversidade) se tornem produtos financeiros.
Alegam que estão financiando a transição de uma economia marrom (degradadora) para a “economia verde”. Dizem que não existe alternativa, senão a de tornar financeiro o que é eminentemente econômico. Confundem conceitos e posições para que a população, sensibilizada com as justas causas socioambientais e desavisada dos riscos, aceite o pacote financeiro imposto com a legalização da “agiotagem”. Juntamente com a “agiotagem institucionalizada”, promovem a legalização de outras práticas de crimes, como a biopirataria, o roubo de terras de povos indígenas e tradicionais, a expulsão de campesinos, o controle da água e do ar por oligopólios, a produção de alimentos industrializados, institucionalizando a “dependência da sobrevivência” da espécie humana e demais seres vivos.
Acontece que alternativas sempre existiram. São as propostas que estão justamente na contramão da infame “financeirização da natureza”. Os povos indígenas tradicionais, os campesinos e as populações carentes do sertão, que sabem lidar com o ambiente natural e sua diversidade, têm muito a nos ensinar, sem nunca terem precisado de agentes financeiros, especialistas ou consultores ambientais para lhes vender pacotes de produtos e serviços. Aliás, os banqueiros jamais tiveram interesse em suas possíveis contas!
Felizmente, cresce o movimento internacional contra a “financeirização da natureza”, uma maldição que, dia após dia, cria novas formas complexas e sofisticadas para driblar as normas, os direitos constitucionais adquiridos e os acordos internacionais para perpetuar a doutrina do “neocolonialismo”, da submissão e escravidão com guerras, tragédias e misérias.
Se há esperança, esta reside no fato de ficarmos atentos a essa manobra e seguirmos denunciando para que as presentes e futuras gerações não sejam afetadas por esta desgraça como somos nós e o foram nossos antepassados.
Que o povo não se engane com conceitos vazios e falsas soluções: os refugiados e violentados nos campos e nas florestas por esta guerra fatídica a que assistimos diariamente na mídia são vítimas da “financeirização da natureza” em seus territórios.
Sabemos que errar é humano, mas persistir neste erro é ser cúmplice de genocídio!
Referências:
El Khalili, Amyra. Desmistificando REDD e Serviços Ambientais por Michael F. Schmidlehner (quatro vídeo-apresentações disponíveis online) <http://port.pravda.ru/cplp/ brasil/07-03-2016/40518- desmistificando_redd-0/> . Disponível 07/03/2016. Acesso em 07/03/2016. Assista as vídeo-apresentações aqui: http://www.youtube.com/ playlist?list= PLDhITDL8VFLpJyO1Bi0WpioxFpuvJ DQaK
EL KHALILI, Amyra. O que se entende por “financeirização da natureza”? Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 15, n. 87, p. 85-86, maio/jun. 2016.
Autor: Análise & Opinião
Na exceção
Fernando Risch*
Quando Marielle Franco, vereadora eleita no Rio de Janeiro – com 46 mil votos, a quinta mais votada – é assassinada com quatro tiros na cabeça, quem está seguro?
Quando uma pessoa pública, ativa, forte, denunciante é executada brutalmente, sem que os agressores se importem com as consequências e repercussões, é porque não vivemos mais num estado democrático de direito. Estamos na exceção.
Marielle Franco era relatora da Comissão da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro que acompanhava a intervenção federal na segurança do Estado. Sua posição era contrária à medida. No dia 13 de março, a vereadora postou em seu Twitter: “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”.
No dia 14, denunciou abusos em Acari: “Precisamos gritar para que todos saibam o está acontecendo em Acari nesse momento. O 41° Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro está aterrorizando e violentando moradores de Acari”. Antes mesmo da denúncia, pessoas eram ameaçadas caso expusessem tais abusos. Ela teve a coragem de fazer.
E como se a barbárie em si não bastasse, ainda há de se ler que a culpa foi dela, que ela foi morta “pelos bandidos que tanto defende”, como se Marielle, por ser ativista de direitos humanos, defendesse algum bandido; e como se uma perseguição, seguida de uma execução com quatro tiros na cabeça e nove disparos – vitimando também seu motorista, Anderson Gomes –, fosse uma tentativa de furto, um mero latrocínio perpetrado por trombadinhas.
Há de ser muito estúpido, idiota e mau caráter para formular tese tão pequena, mesquinha e ideologicamente manipulada; há de ser um alienado completo, uma sombra de vida, um fantasma de pensamentos, para acreditar num conto de fadas imbecil; há de ser o maior néscio a pisar na terra e de ser cúmplice da barbárie, justificando o injustificável e passando a mão na cabeça dos assassinos, se tornando aquilo que acusavam Marielle Franco de ser: defensor de criminosos.
Para gente assim, quando a onda engolir, não saberão de onde veio. Quando uma pessoa pública, ocupando cargo público, representando ativamente muitas pessoas, é assassinada, quem não pode ser? O estúpido que passa pano para a barbárie, que diminui a morte de Marielle a um mero acaso, não saberá quando for tragado pela maré.
A verdade precisa aparecer e que nenhum comandante com ares de generalíssimo, defensor de regime de exceção, venha querer barrar a justiça de ser feita e de termos os culpados condenados. Sem sindicância obscura. Sem investigação sem conclusão. Se esses passarem impunes, o Brasil acabou – mais uma vez. Que não temam a verdade, seja ela qual for.
*Escritor
Marielle Franco, o anti-“mito”
MARÍLIA VERÍSSIMO VERONESE
Foi assassinada uma mulher que reunia em si mesma tantos sentidos, condensados numa só existência humana, que penso que possa ser considerada verdadeiramente arquetípica. Nós consideramos, pois este texto está sendo escrito após longa conversa, durante o ato em homenagem à Marielle, com minha amiga Jacqueline Silva. Jacque me acompanhou durante todo o evento e juntas refletimos que Marielle era o múltiplo condensado na singularidade individual.
A vereadora carioca era uma mulher negra, vinda da favela da Maré (pobre de origem); era bissexual, pois tinha uma companheira, embora já tivesse se relacionado com homens. Além disso tudo, ela era feminista e de esquerda, filiada ao PSOL, e era também uma mulher de axé. Ávida buscadora do conhecimento, fez curso pré-vestibular comunitário e estudou Sociologia na PUCRJ, depois fez mestrado em Gestão Pública na UFF. Ousou ir longe. Era militante pela justiça social e pelos direitos humanos. Candidatou-se à vereadora pelo PSOL no Rio e foi eleita expressivamente com 46 mil votos. A moça arrojou projetar-se, relatar comissões que investigavam “intervenções” militares desastradas e violência policial/abuso de poder, destacar-se com brilhantismo na atuação política e parlamentar.
Devido à todas essas características, Marielle virou o alvo de assassinos, cujos mandatários perseguem tudo que ela representava; que propagam o ódio de classe e o classismo, a homofobia, o racismo, o falso e cínico moralismo, a ideia de que pobre tem de ser subserviente e servir ao rico. Tudo isso junto sintetiza, hoje, a ideologia que grassa no país. Desde a redemocratização (parcial e incompleta) de meados dos anos 80, da constituinte de 1988 e da constituição cidadã que dela resultou, essa escória esteve recolhida à sua insignificância. Generais de pijama, embora absurdamente impunes por crimes de lesa-humanidade, estavam, contudo, dentro do armário; odiadores de pobres e negros, misóginos, classistas e racistas não ousavam vomitar seu chorume fétido em voz muito alta.
Ocorre que, após os acontecimentos posteriores às eleições de 2014 – ou mesmo anteriores a ela, e que não vou aqui retomar porque já foram tema de outros textos, – esses bichos escrotos (como diziam os Titãs na minha juventude), voltaram a pôr as cabeças e línguas apodrecidas para fora. Saíram do armário onde hibernavam, babando de ódio quando viam pobres no aeroporto, criação de secretarias federais para a igualdade racial, transferência de renda para crianças miseráveis terem o que comer e ficarem na escola, direitos trabalhistas para empregadas domésticas e outras inovações republicanas, muitas advindas da constituição federal de 88.
Seus valores deturpados, equivocados e banalizadores do mal são excludentes e abominam a igualdade na diferença, mas são alçados de forma canalha à condição de “moralidade” máxima. As autointituladas “pessoas de bem” (na verdade, praticam e banalizam o mal no sentido de Hannah Arendt, que nunca leram porque são frequentemente anti-intelectuais e só leem bobagens de livraria de aeroporto) agora gostam de se achar honestas e exemplares, cheias de mérito, quando na verdade são o oposto disso. Essa gente, com sua atitude relativizadora do golpe de Estado sofrido pelo Brasil, chancela a violência contra pobres, negros, periféricos, favelados e LGBTs, que costumam chamar de “vagabundos” (muita embora saibamos que 99% dos favelados trabalhem duro e sejam muito mal remunerados).
Marielle Franco condensava numa só pessoa tudo o que eles temem, abominam e combatem, ignorantes que são. Ela era um arquétipo das lutas por igualdade cidadã, justiça para tod@s, incluindo mulheres, LGBTs, negros, pobres, favelados e periféricos. Defendia ativamente o direito à igualdade na diferença das identidades específicas, das muitas possíveis combinações identitárias. Nesse sentido, pensamos eu e Jacqueline, ela era arquetípica, era o plural expresso na singularidade. Justamente por isso, foi assassinada.
Segundo Karl G. Jung, psicanalista suíço, pupilo dissidente de Freud, arquétipos são conjuntos de “imagens primordiais” originadas de uma repetição progressiva de experiências de muitas gerações, armazenadas no inconsciente coletivo. As experiências ancestrais, herdadas do processo histórico que vai produzindo nossas subjetividades, conformam os arquétipos, carregados de sentido, com os quais vamos nos identificar, ou vamos rechaçar, ou um pouco de cada coisa. A bruxa, a santa, a prostituta, o ditador, a morte (figura sinistra com a foice), o “bandido”, o sábio etc, são alguns arquétipos que estariam presentes, para Jung, em todos os lugares, de diferentes modos; ou seja, são universais. E o real, para ele, é arquetípico.
A pluralidade que condensava todas as características – “imagens primordiais” – alvo do ódio de reacionários e canalhas materializou-se num indivíduo, a mulher negra, feminista, favelada, bissexual, de esquerda, militante, Marielle. Se tivesse ficado quieta e subserviente, não representaria perigo; mas ela ousou lutar, publicizar a luta, destacar-se. Era corajosa e intrépida. E por essa linda ousadia, pagou com a própria vida, deixando órfã a filha Luyara, de 18 anos, a família, os eleitores, as periferias ávidas por justiça e oportunidades iguais para todos.
Mas por que pensamos na figura do anti-“mito”? Quem tem sido denominado “mito” pelos anti-intelectuais que não sabem o que é, mas odeiam a tradição dos direitos humanos, é um homem branco rico, que defende a tortura, odeia negros e indígenas, LGBTs, despreza as mulheres (declarou que quando “fraquejou teve uma filha mulher”, após a suposta glória de ter 3 filhos homens). A covardia verdadeiramente desprezível, aquela contida no ódio aos mais frágeis e desprotegidos, virou um “mito” para os que se identificam com a pusilanimidade.
Uma pessoa que reúne essas lamentáveis características vira um “mito” para os medíocres de alma bem pequena, que remoem suas pequenas ignorâncias e ódios como insetos em volta da lâmpada. Querem ser europeus, mas ignoram totalmente o que talvez seja a melhor herança da tradição ocidental europeia, as declarações de direitos humanos (civis e políticos, sociais, econômicos e culturais, autodeterminação dos povos, viver em paz etc).
Foi assassinada com 4 tiros uma pessoa que era a antítese do horror, da distopia em forma de gente e de discursos macabros de ódio. Que trazia em si própria a luz da coragem, que lutava por todos nós, para que o mundo fosse um lugar melhor, mais digno, mais seguro para tod@s, inclusive para mim, mulher branca de classe média no Rio Grande do Sul. Ou vocês acham, conterrâneos gaúchos, que o que acontece no Rio de Janeiro não nos afeta? Afeta todo o país.
Outra amiga, intelectual carioca, Adriana Facina, declarou: “Perdemos o que tínhamos de melhor”. Concordo plenamente. Perdemos a coragem, a beleza, a esperança numa outra política, que ela trazia. A velha política dos conchavos antipopulares, do coronelismo que mata, aterroriza, oprime e explora, deu 4 tiros na esperança de transformação.
Para não enlouquecer, eu me agarro justamente na esperança: nesse exato momento estão crescendo, em algum lugar das periferias desse país tão sofrido, muitas Marielles. E nós, que somos mais velhos, brancos e de classe média, mas que compartilhamos seus sonhos de justiça e liberdade, estaremos ao lado delas. Seremos escudos – apelo de uma liderança negra histórica aqui de Porto Alegre, Sandrali Bueno, ontem durante o ato que participei – para os tiros que vierem a receber, para as bombas (simbólicas e reais) que jogarem contra elas quando soltarem suas vozes nas ruas ocupadas de cidadãos.
Não sairemos das ruas, pois é nelas que o civismo é exercido, que a condição humana da política se realiza. Sujeitos que se encontram, na ação e no discurso, para construir o social, a esfera pública, para tecer os modos de vida nos quais acreditam.
Marielle estará conosco em exemplo, em inspiração para os corações, mentes e corpos que seguem lutando por tudo o que ela desejou e construiu. Na potência da subjetividade capaz de escolher para identificação aqueles arquétipos que nos conduzam à justiça, igualdade e à ampliação de direitos de cidadania. E em muitas jovens mulheres que decidiram que chega! Basta de injustiças, mortes, violências e abandonos.
Famintos x obesos: as duas faces do Agro
Geraldo Hasse
Toda vez que leio alguma coisa sobre o brasileiro que dirige a FAO, vem à minha memória a reportagem “Meus Queridos Boias Frias”, publicada em outubro de 1976 pela revista Veja.
A matéria de seis páginas focalizava o drama dos trabalhadores rurais temporários, cujo número era estimado pelo IBGE em 6,8 milhões de pessoas em uma população de 94 milhões, cifra do Censo de 1970.
A expressão que deu título à reportagem fora usada inocentemente pelo governador paulista Paulo Egydio Martins em junho num palanque eleitoral no interior. Como a maioria da plateia era formada por gente humilde da roça, Martins achou que tratá-los afetuosamente por “boias-frias” geraria uma empatia favorável a ele, filhote da ditadura militar.
Mal sabia o político sem votos, amigo do general Ernesto Geisel, que a expressão “boia-fria” era estigmatizada pelos trabalhadores rurais. Tanto que no norte do Paraná fazia sucesso em emissoras de rádio uma canção cuja letra começava assim: “Meu patrão me ofendeu / Me chamou de boia-fria/ Não bati na cara/ Pra não perder o dia”.
O comício de Martins terminou sem incidentes mas, nos anos seguintes, os trabalhadores rurais foram protagonistas de diversos episódios. O mais grave foi em meados de 1984 na pequena cidade de Guariba, onde os rurais promoveram uma rebelião urbana contra a exploração de seus direitos, incendiaram um carro da Sabesp e entraram em conflito aberto com a Polícia Militar, do que resultou uma pessoa morta e vários feridos. A partir daquele momento, os boias frias passaram a ser tratados com mais consideração pelos governos.
Nessa época, Elis Regina, no LP Transversal do Tempo, 1978, transformou em sucesso a canção Rancho da Goiabada, com letra de Aldyr Blanc e música de João Bosco. Começava assim: “Os boias-frias / quando tomam umas biritas / Espantando a tristeza / sonham com bife a cavalo e batata frita…”
Voltando à reportagem de 1976: uma das pessoas entrevistadas fora o agrônomo José Graziano Gomes da Silva, atual diretor geral da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação). Na época, ele era professor de economia rural na Faculdade de Agronomia de Botucatu. Os boias frias faziam parte de seus estudos sobre a desigualdade de renda na sociedade brasileira e, particularmente, na zona rural.
Graziano conhecia o problema não apenas como técnico, mas por vivência familiar: seu pai José Gomes da Silva, também agrônomo, possuía uma fazenda de cana na região de Pirassununga e fora um dos criadores da Associação Brasileira de Reforma Agrária, com sede em Campinas.
O professor Graziano acabou se transferindo mais tarde para a Unicamp, tornando-se um militante ativo do Partido dos Trabalhadores. Quando da eleição do presidente Lula, em 2002, o professor-agrônomo foi nomeado assessor especial e, como tal, deu a ideia da criação do Programa Fome Zero, que começou um esforço legal para reduzir a subnutrição das populações rurais e suburbanas. A inspiração do programa vinha do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que havia lançado, em plena ditadura militar, uma campanha para acabar com a fome no Brasil.
O Fome Zero se converteu no Bolsa Família, programa mantido até hoje, mas sofrendo cortes orçamentários no governo do vice Michel Temer. A agricultura familiar também está sofrendo restrições oficiais. A reforma agrária está praticamente congelada. Enquanto isso, José Graziano segue na luta contra a fome.
Quando foi demitido do Fome Zero por sua intransigência, ele ganhou como compensação um cargo na FAO em Roma. Poderia ter se aposentado por lá, mas continua na ativa. E chegou ao topo da instituição mantendo o mesmo discurso em favor da eliminação da fome não apenas no Brasil, mas no mundo.
No último dia 6 de março, em pronunciamento público como diretor geral da FAP, diante de 33 representantes de países da América Latina reunidos na Jamaica, Graziano fez um alerta sobre o grande contraste da atualidade: enquanto a fome ainda afeta cerca de 1 bilhão de pessoas situadas na faixa da miséria econômica, a obesidade atinge 650 milhões e o sobrepeso, mais de 1,9 bilhões de adultos. Em suma, falta comida numa ponta e sobra na outra. Há mais pessoas se alimentando mal do que sem alimento.
Em seu discurso, o diretor geral da FAO disse que a combinação de medidas de proteção social com o fortalecimento da agricultura familiar, que gera desenvolvimento local e contribui para a dinamização dos territórios, é a saída para reduzir a pobreza rural e enfrentar as diferentes formas de má nutrição no momento em que as mudanças climáticas estão afetando profundamente os sistemas agroalimentares em todo o mundo.
Um belo discurso que não ficou só em palavras. Na semana passada, o Fundo Verde do Clima, criado pela FAO, aprovou a primeira proposta de financiamento — um projeto de US $ 90 milhões a ser desenvolvido no Paraguai.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“A memória cumpre um papel fundamental na proposta de reconciliação entre a natureza e a sociedade”.
Héctor Ricardo Leis, filósofo argentino, no livro “A Modernidade Insustentável” (Vozes, 1999)
Os riscos do jornalismo passivo
A policia abriu um inquérito para identificar os responsáveis pelo desvio ético que resultou no comprometimento da autoridade policial com uma farsa, no caso do ritual satânico de Novo Hamburgo.
Segundo as notícias, a Corregedoria da Polícia destacou três delegados para elucidar como se construiu a trama falaciosa e qual o envolvimento de policiais nesse lamentável episódio.
Nessas horas é que se vê como o jornalismo, pela falta de regramentos e de auto crítica, se tornou um atividade irresponsável. Tira o assunto de pauta, e está tudo resolvido.
Esta farsa do ritual satânico não se teria constituído e adquirido foros de verdade diante de um jornalismo crítico, cioso de seus princípios.
É provável que toda a culpa, inclusive pela violência que se cometeu contra os acusados, recaia tão somente sobre o delegado Moacir Fermino, que bancou e turbinou a versão do ritual satânico.
Será uma reducionismo. Em certo momento, mesmo a cúpula da polícia acolheu essa versão, dadas as evidências expostas acriticamente na mídia.
E a mídia, ela também foi vítima do delegado? Ou foi vítima da própria passividade-cumplicidade que a coloca na dependência das autoridades para poder informar?
Isenções tributárias e rendimentos declarados dos excelentíssimos magistrados
RÓBER ITURRIET ÁVILA E JOÃO SANTOS CONCEIÇÃO*
A transparência progressiva das declarações de Imposto de Renda de Pessoas Físicas (IRPF) é um avanço que deve ser saudado, na medida em que permite melhor ciência da realidade brasileira. Os dados desagregados contribuem para elucidar as desigualdades e distorções existentes no País, não apenas no setor privado, como no caso do impacto da isenção de IRPF aos dividendos, mas também para os problemas do setor público.
Quando se observa as médias salariais do setor público, a constatação imediata é a de que os valores mais elevados estão vinculados ao Poder Judiciário. Os mais de 35 mil membros do Poder Judiciário, do Tribunal de Contas e do Ministério Público receberam acima do teto constitucional no ano de 2016. A média dos rendimentos totais mensais dos integrantes do Ministério Público foi de R$ 51.807,99 e a média dos membros do Poder Judiciário e do Tribunal de Contas foi de R$ 51.366,07. É preciso notar que essa média diz respeito a todos os servidores, incluindo, portanto, os inúmeros cargos de nível médio e não apenas os juízes e promotores. Embora a alíquota máxima de IRPF seja 27,5%, baixa em termos internacionais, este grupo de declarantes pagou em média 12% de imposto em relação a seus rendimentos anuais. O auxílio moradia de R$ 4.300, por exemplo, que é superior ao rendimento de 92% dos brasileiros, é isento de IRPF.
Os membros do Poder Judiciário, do Tribunal de Contas e do Ministério Público também estavam entre os declarantes do IRPF com as maiores médias patrimoniais. Esses indivíduos declararam possuir uma média patrimonial de R$ 1,3 milhão no ano de 2016. As heranças e doações recebidas na forma de transferências patrimoniais desses indivíduos estão também entre as mais elevadas, o que contradiz a necessidade de um auxílio-moradia, por exemplo.
Além de estarem entre os declarantes com as maiores médias de rendimento e de patrimônio, os membros do Poder Judiciário, do Tribunal de Contas e do Ministério Público são os declarantes que mais abatem despesas no IRPF. Esses mais de 35 mil declarantes abateram no IRPF mais de R$ 2,5 bilhões no ano de 2016. As despesas deduzidas foram com contribuições previdenciárias, dependentes, pensão alimentícia, despesas de instrução e despesas médicas. A média de deduções de imposto dos Procuradores e Promotores do Ministério Público foi de R$ 72.672,21 e a média dos membros do Poder Judiciário e do Tribunal de Contas foi de R$ 70.591,79.
Parte dessas deduções são subsídios com gastos privados, quando deveriam servir para redistribuir a renda daqueles que possuem maiores proventos, a fim de financiar o serviço público coletivo. Os subsídios concedidos vão em sentido oposto ao imposto sobre a renda, que visa redistribuí-la e não subsidiar aqueles que mais ganham. Há vasto espaço para que alterações tributárias contribuam na edificação de uma nação menos desigual.
*Róber Iturriet Avila é professor adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS e João Santos Conceição é graduando em Ciências Econômicas na Unisinos. Este artigo foi publicado originalmente no IHU Unisinos.
O que mudou na Contribuição Sindical
Paulo Sergio João
A Lei n. 13.467/17, ao dar à contribuição sindical caráter facultativo (art. 545), rompeu, de um lado, com a tradição histórica de sindicato custeado de forma compulsória por trabalhadores e empregadores, cujos efeitos do passado são discutíveis sobre os resultados dessa representação formal e, de outro lado, a nova disposição revisitou o direito à liberdade sindical do art. 8º da Constituição Federal.
O que se constata no modelo anterior é que a fragilização da representação sindical trouxe desqualificação do negociado e a atuação frequente da Justiça do Trabalho para atuar no mérito das negociações e, em alguns momentos até, reconhecendo a eficácia da negociação coletiva com função da representatividade sindical e da autonomia da vontade coletiva (emblemático a OJ transitória nº 73 sobre PLR mensal negociado entre metalúrgicos de São Bernardo do Campo com a Volkswagen).
Nestes momentos que antecedem para trabalhadores a data da antiga contribuição sindical, os sindicatos profissionais têm anunciado a fixação de contribuições por meio de assembleia, por ocasião da data base, ou romarias a empresas para recolher dos trabalhadores a autorização de desconto a ser encaminhada pela entidade aos empregadores. E neste aspecto é que pareceria duvidosa a obrigação transmitida aos empregadores de uma ou de outra forma para o desconto em folha.
Em matéria de negociação coletiva as cláusulas são variadas e os sindicatos repetem mais do mesmo, concedendo prazo para oposição de trabalhadores em formulário do sindicato e em horário comercial.
O nome da contribuição pode ser variado, sendo frequentemente utilizado a expressão “Contribuição para fortalecimento sindical laboral” e é imposta aos empregados não sindicalizados, excluindo o associado. Trata-se de previsão que já foi resolvida pela jurisprudência e o STF já consolidou em Súmula Vinculante (n. 40) a restrição de decisões de assembleias que decidem a imposição de contribuição de não associados à entidade sindical.
Ainda neste caso, a previsão de prazo para os trabalhadores de exercer o direito de oposição, a partir da publicação da Convenção, é inconsistente porque, na vigência da norma, outros empregados serão admitidos e não poderão exercer o direito de recusa porque já ultrapassado o prazo inicial. E, ainda, transfere ao empregador uma obrigação que viola o disposto no artigo 5º, X, da Constituição Federal quanto à inviolabilidade da intimidade e a vida privada. Ora, se o ato de manifestação de adesão ao sindicato é livre, não poderia ser controlado pelo empregador a fim de efetuar os descontos previstos em norma coletiva e que têm como fundamento a opção de uma manifestação política. É um assunto “interna corporis” que deve ser tratado de acordo com a Convenção Internacional n.98 da OIT.
Outra situação, noticiada no jornal O Estado de São Paulo de 18/02, é a da peregrinação de dirigentes sindicais em empresas para, por meio de listas, permitir ao sindicato o encaminhamento de autorizações coletivas aos empregadores. Esta situação nos coloca diante da validade jurídica na imposição porque viola regra fundamental do exercício da liberdade sindical.
De fato, o exercício da liberdade sindical pressupõe manifestação livre diante de um modelo plúrimo porque a simples adesão ou não ao sindicato gerado na unicidade atende apenas parcialmente o direito à liberdade sindical.
Todavia, a análise crítica também pode ser encaminhada ao sindicato patronal quanto insere no bojo da norma coletiva a obrigação às empresas do setor econômico de recolher o que se denomina “Contribuição para o fortalecimento sindical patronal”. É assunto que diz respeito ao sindicato e seus representados e não deveria integrar a norma coletiva que regulamenta os contratos de trabalho dos trabalhadores pelo período definido na convenção ou acordo coletivo.
Parece, salvo melhor juízo, que tais cláusulas de contribuição aos sindicatos (profissionais e patronais) estão alocadas impropriamente em convenções coletivas e o caráter obrigacional não é entre as partes e sim das partes em relação aos seus representados e somente nesta relação é que poderiam admitir eficácia jurídica.
Finalmente, o artigo 545 da CLT, com sua nova redação, traz a obrigação para os empregadores de desconto em folha de pagamento “dos seus empregados, desde que por eles devidamente autorizados, as contribuições devidas ao sindicato…”. Ainda que previsto em norma coletiva, independentemente de sua inadequação jurídica, as empresas deveriam aguardar a manifestação expressa e individual dos trabalhadores ou, pelo menos, a ratificação individual consentimento previsto no documento que o sindicato venha a encaminhar.
Portanto, o ato de manifestação autorizando o desconto deveria ser de modo a respeitar sua natureza pessoal, homenageando o livre exercício do direito à liberdade sindical entre trabalhadores ou empresas relativamente aos respectivos sindicatos.
* Paulo Sergio João é advogado e professor de Direito Trabalhista da PUC-SP e FGV.
Em Defesa do Código Florestal
Aldo Rebelo
Mapa de equilíbrio estratégico entre a exploração e a conservação da natureza, o Código Florestal Brasileiro, aprovado pelo Congresso Nacional em 2012, no mais amplo debate legislativo desde a Constituição de 1988, ainda sofre nos tribunais a perseguição de correntes que criminalizam a agricultura.
A elas não importa que o Brasil utilize apenas 7,6% de seu território continental para a produção de alimentos, ante 18% nos EUA e até 65% na Europa. Nem levam em conta que somos o país que mais preservou sua mata nativa, mantendo de pé 66% da vegetação original de seus 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Importa caracterizar-nos como predadores.
Vale destacar que o Código Florestal foi celebrado na Conferência do Clima, em Paris, como fiador dos compromissos brasileiros para as metas de redução das emissões de carbono. Nas audiências públicas realizadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), representantes do Ministério do Meio Ambiente apresentaram a lei como o instrumento capaz de oferecer proteção aos agricultores e à natureza.
O jogo bruto é travado, de um lado, por um movimento ambiental bem-intencionado, mas mal informado, e, de outro, por grupos extranacionais que pregam a redução da área cultivada para favorecerem a exportação de seus produtos agropecuários, com os quais concorre o nosso agronegócio.
Ignorando o pacto tecido arduamente no Congresso, com apoio dos principais partidos do governo e da oposição, esses grupos recorreram ao STF para que vários artigos do código sejam declarados inconstitucionais.
Seu breviário é um ambientalismo faccioso, que extrapola a necessária e indispensável proteção que a todos nos cabe garantir ao planeta. Mas desdenham da importância histórica, social e econômica da agropecuária e a estigmatizam como o cavalo de Átila, que não deixava nascer grama onde passava.
A rigor, em cinco séculos de trabalho duro o agricultor soube preservar a natureza e destina boa parte da propriedade à proteção do meio ambiente.
Na Amazônia, a exigência da reserva é de 80% da propriedade. Mas em Roraima o total das áreas de conservação e terras indígenas chega a 66% da superfície estadual, sobrando apenas 7% para a agropecuária. Por isso reduzimos as exigências. Esse foi um caso em que, na elaboração do Código Florestal, consideramos, como deve ser próprio das leis, peculiaridades da diversa realidade nacional.
O código de 2012 manteve o espírito conservacionista que distingue o Brasil como país pioneiro na proteção de recursos naturais essenciais, como as florestas e a água.
A tradição já vinha das propostas do patriarca José Bonifácio no século 19 e figurou nos códigos de 1934 e de 1965, além da rígida lei de proteção da fauna promulgada em 1967.
O zelo ambiental bem calibrado não impediu o excepcional desenvolvimento do agronegócio, que em anos recentes se tornou tecnologicamente avançado e viga mestra da economia. Mas nas décadas de 1980 e 1990 a legislação passou a ser retalhada e adulterada por numerosos enxertos urdidos a trouxe-mouxe, alheios à realidade do campo. Fazia-se necessário, no ambiente de contraditórios do Parlamento, a partir de inúmeras consultas técnicas e mais de 200 audiências públicas e privadas por todo o País, reintroduzir o princípio da razoabilidade num labirinto legiferante.
Daí germinou a patranha da suposta anistia concedida a desmatadores dispensados de recuperar a reserva legal para manter uma porcentagem da propriedade com espécies nativas. Os críticos reclamam ao Supremo que o Código de 2012 retroagiu a 2008 para livrar agricultores dessa obrigação, e que a lei não pode ter efeito retroativo. Ora, a celeuma em torno da suposta anistia não tem outro lastro senão portarias e uma medida provisória que nem foi votada, as quais, elas, sim, retroagiram aos primórdios da colonização.
Todo o ousado e suado processo de conquista e consolidação do território nacional, incluindo as capitanias hereditárias, a epopeia dos bandeirantes, a penetração da agropecuária nos sertões, o ciclo do açúcar, a grande lavoura cafeeira, tudo foi considerado desmatamento ilegal, embora na época não o fosse, a ser punido séculos depois por uma norma de… 2008.
O proprietário de um sítio em Pernambuco cuja mata nativa tivesse sido derrubada pelo donatário Duarte Coelho para plantio de cana-de-açúcar no século 16 foi tachado de delinquente 400 anos depois, quando o ato passou a ser considerado delito ambiental. Multados, impedidos de obter financiamento rural, a maioria esmagadora dos agricultores foi intimada a recuperar a reserva legal mesmo que a propriedade estivesse sendo explorada desde a gênese do País.
A medida infeliz castigou principalmente o pequeno produtor, sobretudo em minifúndios, onde quase toda a propriedade é usada para plantio. Eles detinham nada menos que 90% dos imóveis rurais, com área média de minúsculos 26 hectares.
Ao dispensá-los da exigência, embora obrigando-os a manter ao menos a reserva que tinham em 2008 e a recuperar o que derrubaram depois dessa data, o código desfez uma patacoada. Ademais, já estava em vigor o Decreto n.º 7.029, de 10/12/2009, que instituíra o Programa Mais Ambiente, para permitir aos proprietários rurais autuados obterem a “regularização ambiental”. Quem tivesse desmatado “qualquer tipo de vegetação nativa” teria suspensas as multas lavradas até a véspera da publicação do decreto. O código apenas recuou para 2008 o marco de 2009 estabelecido pelo decreto.
Portanto, não concedeu anistia alguma. E se a tivesse concedido, apenas teria dado razão ao chiste do Barão de Itararé, que tanto citamos na época: “Anistia é um ato pelo qual os governos resolvem perdoar generosamente as injustiças e os crimes que eles mesmos cometeram”.
*Jornalista, foi relator do código florestal, ministro de Estado e presidente da Câmara dos Deputados
Porto Triste é de menos!
Pobres de nós, porto-alegrenses!
A nossa “mui leal e valerosa” metrópole agoniza. Padece e se desestrutura a olhos vistos. Mesmo no eixo Moinhos de Vento/Bela Vista, sempre referenciado como top em termos de qualidade de vida e nível de renda, a degradação é humilhante.
Sob o mantra do caos orçamentário e financeiro e dos óbices da burocracia pública, os inquilinos do Paço dos Açorianos e das cercanias da Praça da Matriz se lamuriam e pouco fazem no que diz respeito à acessibilidade, limpeza, iluminação, segurança, entre outros pontos críticos.
Por outro lado, os nobres edis, representantes do povo, se omitem na cobrança e no auxílio na busca de reverter o quadro de horror que atordoa os seus conterrâneos.
Horror, preocupação e sobressaltos que assomam em cada esquina, viela, beco, ruas ou avenida dos mais de 80 bairros da metrópole gaúcha.
Prestes a completar 246 anos de fundação, a capital da República Farroupilha, morada de cerca de 756 mil mulheres e 654 mil homens, nos mais de 574 mil domicílios oficiais, vê proliferar a população de pessoas “em situação de rua” – preciosismo para falar dos “homeless”: na rua por drogadição, criminalidade, miséria plena ou doença mental.
A população citadina também tem sua parcela de culpa na verdadeira deterioração pública da cidade, pela falta de educação, pelo comportamento criminoso e irresponsável dos que sujam, picham, emporcalham a cidade e colocam em risco o bem-estar, a tranquilidade e a vida dos cidadãos.
É doloroso ver locais nobres e referências históricas como o Viaduto Otávio Rocha e a Praça Marechal Deodoro transformados em favelas e “cracolândias” imundas e fedorentas.
É lamentável ver as margens do arroio Dilúvio serem ocupados como moradia precária de dezenas de jovens, velhos e crianças que fazem suas necessidades a céu aberto e jogam dejetos e porcarias no regato que deságua no Lago Guaíba, de onde também sai a água bebida pelos porto-alegrenses.
É deplorável ver avenidas como a Farrapos, Assis Brasil e Bento Gonçalves e adjacências se degradarem a passos rápidos, escancarando cada vez mais a porta do crime, do meretrício e da insegurança.
Faltam recursos, mas falta educação, tirocínio e consciência pública.
Faltam providências dos gestores públicos, sejam eles estaduais, como na questão da segurança pública, ou municipais, nos assuntos relativos à limpeza urbana, à iluminação pública, à identificação dos logradouros, à buraqueira existente em quase todas as vias públicas.
Mas, acima de tudo, padece muito a capital gaúcha daquelas condições estruturais que durante décadas a mantiveram como de uma das melhores capitais em termos de qualidade de vida do país. O morador desta hoje Porto Triste acorda todo o dia acabrunhado, amedrontado, louco para estar em outro lugar que não aqui. Até quando?
Mariante centenário
ELMAR BONES
Quantas vezes você viu alguém apagar com um sopro uma velinha de 100 anos em cima de um bolo de aniversário?
Eu vi pela primeira vez nesta segunda feira, 26 de fevereiro, quando tive o privilégio de estar entre os amigos que o dr João Gomes Mariante reunir para comemorar o seu centenário.
“Uma celebração da vida”, como disse o jornalista Batista Filho que saudou o aniversariante e seus familiares em nome dos convidados.
Voltarei ao assunto.