JORGE BARCELLOS/Por que é falso o argumento do coronavírus como promotor da crise capitalista

Foi Branko Milanovic, em sua obra Desigualdade Global: Uma Nova Abordagem para a Era da Globalização (Harvard University Press, 2019) que apontou a falsidade do argumento da crise do capitalismo. Para ele, “a insatisfação ocidental com a globalização é erroneamente diagnosticada como insatisfação com o capitalismo, quando na verdade é o produto da distribuição desigual dos ganhos da globalização”.

Ele critica a avalanche de artigos e livros que apontam para a crise do capitalismo, literatura semelhante, em seu entendimento, a produzida sobre o fim da história, nos anos 90. O ponto é particularmente importante por dois motivos: primeiro, para afinar a argumentação de esquerda, que aposta na crise geral do capitalismo para justificar a luta social e o segundo, para compreender o contexto de emergência da pandemia do coronavírus, geralmente associado às condições de desenvolvimento e/ou crise capitalista em cada país.

Nossa hipótese é a de que, na linha do autor, em ambas as questões, à esquerda ao repetir o erro e menosprezar o problema dos efeitos da globalização, perde um argumento essencial para considerar a evolução da pandemia, distinta entre países onde o capitalismo esteja consolidado para países em desenvolvimento.

Essa inflexão permite, por exemplo, reavaliar o papel das elites empresariais e do Estado no combate à pandemia. É o caso da Suécia, onde Milanovic afirma que o setor privado emprega mais de 70% da força de trabalho e dos Estados Unidos, onde emprega 85%, ou da China, onde o setor privado organizado capitalisticamente produz 80% do valor agregado.

Nos três países citados, o capitalismo vai bem como modo de produção dominante e, em que pese a obvia exploração do trabalho já criticada pela esquerda, obviamente passou por diferentes processos de tomada de decisão em relação ao coronavírus. Por exemplo, tanto a Suécia quanto os Estados Unidos foram países em que a opção de isolamento horizontal não foi adotada imediatamente, retardando-se a decisão política ou preferindo-se o isolamento vertical com o argumento nefasto de não prejudicar a economia… capitalista! A opção é clara: entre os riscos financeiros e os riscos humanos, estes países preferem os últimos.

Por isso o exemplo da China é notável no combate a pandemia. Como uma economia de mercado que enfrentou o problema do vírus em primeiro lugar com uma politica de isolamento horizontal, hoje a China lucra os dividendos de uma economia que não perdeu seu lugar no cenário econômico mundial, ao contrário. Por esta razão, a esquerda e os defensores do isolamento radical precisam reelaborar seu discurso para enfatizar que isolamento e economia não são equidistantes, ao contrário daqueles que optaram pela economia e não pela defesa das vidas. Basta lembrar que os indicadores da Suécia chegaram a cerca de 311 pessoas mortas por milhão de habitantes, enquanto que países próximos que adotaram o isolamento horizontal, não passaram de 40 pessoas por milhão de habitantes. Quer dizer, economias que optaram pelo sacrifício da população, obtiveram uma pequena redução do PIB, incapaz de justificar a politica adotada. Da mesma, os Estados Unidos, que iniciaram o ataque tardiamente a pandemia, resultando em mais de três mil mortes por milhão de habitantes, hoje amargam a imposição de uma quarentena muito maior do que a que teriam realizado se tomassem a decisão no momento certo, e com isso, tem hoje um prejuízo maior.

As economias que optaram pelo sacrifício da sua população em vez do sacrifício da economia fracassaram ao menos em parte, nesse objetivo. Se for assim, a questão ainda é investigar como a pandemia a afeta a economia. No Brasil vê-se que os novos mercados surgidos com a globalização foram profundamente afetados pela pandemia, desde o Uber, Airbnb, bem como os mercados de trabalhadores precarizados. Esse processo não foi homogêneo, já que os mercados de tarefas de compras e entrega de comida foram dinamizados em valores que ainda precisam ser determinados, mas estão longe de serem insignificantes.

Se não produziram certo equilíbrio do sistema, a pandemia não foi responsável direta pelo fechamento econômico, já que a manutenção da abertura de mercados, farmácias, bancos e outros serviços novos como cuidados com animais de estimação (pets), etc., que em muitas cidades foram considerados essenciais, apontam para o fato de que mesmo em crise pandêmica foi possível à criação de novo capital. Aponta-se, por exemplo, áreas que inclusive aumentaram seus preços para níveis maiores do que os anteriores a pandemia, o que nas palavras do autor significa que “eles criam novo capital e, colocando um preço em coisas que não tinham antes, transformam meros bens (valor de uso) em mercadorias (valor de troca)”. A conclusão é que os novos mercados foram afetados de forma desigual pela pandemia, o que significa dizer que podemos andar menos de Uber, mas compensamos pedindo mais tele-entregas, o que significa que as perdas financeiras causadas pela pandemia podem encontrar um ponto de equilíbrio e até, reforçar certos mercados.

O problema da fragmentação dos novos mercados e sua demanda parcial é que a pandemia reforça a precarização da massa de trabalhadores através da exploração de fornecedores de serviços, como entregadores de pizza, produtos de mercados ao mesmo tempo em que estimula a produção de máscaras artesanais e escudos de proteção para satisfação das novas necessidades produzidas pelo isolamento, que reforçam, mais uma vez, ainda que indiretamente, a reprodução do mercado. Portanto, quando o governo enfatiza que é preciso terminar com o isolamento porque ele está matando os CNPJ, as empresas, o governo está sinalizando para um fato que pode ser questionado em parte, de que a pandemia é a causa da crise capitalista no país, o que, para o autor, confunde o problema real que é a distribuição desigual dos ganhos, que é o que existe de fato, e não crise do capitalismo. Não é exatamente isso que ocorre quando o Governo Federal, sob o pretexto de salvar a economia, libera milhões para os bancos privados? Ele não está novamente, redistribuindo de forma desigual a riqueza? Não é esse o problema que precisa ser apontado pela esquerda?

O argumento do autor é uma defesa do capitalismo, é claro, mas o faz de uma maneira útil à esquerda já que aponta para o fato de que a premissa da globalização, de que beneficiaria a todos, não foi cumprida, inclusive no Brasil. Ao contrário, apenas alguns países, como a China, se beneficiaram “É a diferença entre as expectativas recebidas pelas classes médias ocidentais e o crescimento das de baixa renda, bem como a queda na posição de renda global, que alimenta a insatisfação com a globalização. Isso é erroneamente diagnosticado como insatisfação com o capitalismo”. É claro que nós não estamos satisfeitos de jeito nenhum com o capitalismo, mas o que ocorre quando no Brasil, a politica de combate ao coronavírus evidencia esta desigualdade? Veja o exemplo do que aconteceu quando o país correu ao mercado mundial para obter insumos para o combate à pandemia. Logo ficou claro que o país estava em desvantagem em relação a outros países como os Estados Unidos, que, inclusive, chegou a piratear produtos comprados pelo Ministério da Saúde. As expectativas das classes médias, de acesso a respiradores, logo começaram a ruir pela insegurança da prestação de serviços médicos por ocasião de uma explosão do sistema, como ocorreu em Manaus (AM).

Há também outra questão. Milanovic afirma que a expansão da abordagem de mercado também transforma a política em uma atividade comercial. Quer dizer, as relações políticas passaram a ser mediada por trocas, e com isso, a política tornou-se mais corrupta “agora é considerado semelhante a qualquer outra atividade, pois mesmo que não se envolva em corrupção explícita durante seu mandato político, eles usam as conexões e o conhecimento adquiridos através da política para ganhar dinheiro posteriormente”. É por essa razão que Ministros de Estado que são desligados da função pública entram em período de quarentena e o autor afirma com razão que é este tipo de mercantilização que ampliou o desencanto com a política e com os políticos. No caso da pandemia, isso ficou evidente com o aceno de Jair Bolsonaro aos partidos e políticos do chamado Centrão, com o objetivo de garantir suas medidas anticientíficas como o fim do isolamento social e o uso de cloroquina pelo SUS. Além disso, Bolsonaro busca apoio para um projeto polêmico, que isenta as autoridades – o presidente, inclusive – de quaisquer responsabilidades por erros na condução da pandemia.

A contribuição de Milanovic assim é de levar a esquerda a considerar a importância da crise subsequente do coronavírus não como uma crise do capitalismo, mas uma crise “provocada pelos efeitos desiguais da globalização e pela expansão capitalista para áreas que tradicionalmente não eram consideradas aptas à comercialização”. Esse argumento, ainda que reforce o grande poder do capitalismo, põe em evidência a produção de uma colisão com valores, direitos e crenças que é o campo de atuação da esquerda, que deverá se colocar a questão de como evitar que outras esferas da vida sejam comercializadas ou lutar para que seja controlado o campo de expansão do capitalismo.

Jorge Barcellos é historiador, mestre e doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homo Plásticus, 2018). Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.

 

 

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