Por Márcia Turcato*
Manter a lei de responsabilidade das estatais tal como foi sancionada em 2016 é dar sobrevida ao golpe de Michel Temer contra a presidenta Dilma Rousseff e o estado democrático de direito.
A lei é, basicamente, o resultado de negociação entre PSDB e MDB, de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), e tem o objetivo de resguardar espaço para esses dois partidos nos altos cargos das estatais.
Os dois partidos, afastados há muito da liderança dos grandes centros de negociação política e, por isso mesmo, sem chances de ocupar a gestão de estatais, fizeram uma espécie de reserva técnica para si mesmos.
É praticamente impossível que uma grande liderança política, com destaque em várias áreas de atuação da vida pública, viva três anos sem participar de eleições. A exigência da lei de 36 meses de vida anônima é absurda, só favorece pessoas sem vida pública conhecida e que podem servir de fantoche para espertalhões da política.
Essa lei é apenas uma das incongruências do cenário de insensatez que o Brasil experimenta desde o golpe de 2016 e que contou com a conivência do Congresso e do Judiciário.
O mesmo Judiciário para o qual agora batemos palmas por ter saído do estado letárgico. Essa letargia permitiu a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, que construiu uma fantástica estratégia de comunicação, baseada em informações falsas, e para a qual o TSE não estava preparado, não buscou se preparar e não se preocupou em enfrentar, apesar dos esforços da sociedade civil, em especial de entidades de jornalistas profissionais, em oferecer sugestões e mão-de-obra para o enfrentamento.
Agora, às vésperas da posse do presidente Lula, vemos estarrecidos o Brasil ter 960 mil CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores de Armas), quando eram 203 mil em 2018 e 4.900 registros mensais de armas de fogo. Hoje, são 37.400 registros ao mês.
Atualmente, dois milhões de civis têm armas em casa, desde revólver a fuzis com mira telescópica e muita munição. É um exército, não institucional, e de pessoas armadas andando pelas ruas.
A maioria tem autorização de posse e pode levar a arma para onde quiser, como fez a deputada bolsonarista Carla Zambelli e o ex-deputado Roberto Jefferson, também bolsonarista.
O Brasil, que tem uma lei que regulamenta a compra, o registro e o porte de armas, deu milhares de passos atrás neste tema durante o governo Bolsonaro.
A Lei 10.926, que disciplina o tema, foi sancionada por Lula em 23 de dezembro de 2003, em seu primeiro mandato. O principal escopo da matéria, de autoria do então senador Gerson Camata (PSDB/ES), é autorizar que apenas as Forças de Segurança tenham autorização para o porte de armas de fogo.
Por ironia do destino, o senador, que também foi governador do Espírito Santo, foi assassinado com um tiro em 26 de dezembro de 2018.
Nada é por acaso. Há uma rede de fatos interligados e que sustentam o arbítrio vivido pelo país desde o golpe de 2016. A estrutura do golpe precisa ser desconstruída e, para tanto, todas as armadilhas constitucionais enterradas ao longo do caminho, como minas de guerra, e que colocam em risco a democracia, precisam ser exumadas e sepultadas para sempre.
*Jornalista, autora do livro ” Reportagem: da ditadura à pandemia”.