Verde-amarelismo jurídico: movimento por um trabalho sem direitos

Almiro Eduardo de Almeida*
Oscar Krost**
Em 1926 surgia no Brasil, como uma das decorrências da Semana de Arte Moderna de 1922, o movimento literário Verde Amarelo. Também conhecido como “Escola da Anta”, o movimento sustentava em seu Manifesto oficial, como regra fundamental, “a liberdade plena de cada um ser brasileiro como quiser e puder”. O grupo defendia “todas as instituições conservadoras” acreditando que somente por meio delas é que conseguiriam alcançar a “inevitável renovação do Brasil” O movimento propunha um “retorno ao passado” e via “no popular, com sua índole pacífica, a alma da nacionalidade, a ser guiada pelas elites do país”.
Quase cem anos mais tarde, como um dos desdobramentos da “modernização” das leis trabalhistas realizada pela Reforma Trabalhista, em vigor há dois anos, o Presidente da República lança um novo programa para “beneficiar” jovens trabalhadores. Sob a denominação de contrato de trabalho verde e amarelo, o programa é instituído pela Medida Provisória Nº 905, de 11 de novembro de 2019 e visa à criação de novos postos de trabalho para que jovens entre dezoito e vinte e nove anos de idade tenham acesso ao primeiro emprego.
De acordo com o texto da Medida Provisória, o programa deveria se destinar exclusivamente a novos postos de trabalho, conforme preceitua o Artigo 2º. Curiosamente, entretanto, o parágrafo primeiro do Artigo 5º autoriza a nova forma de contratação “para qualquer tipo de atividade, transitória ou permanente, e para substituição transitória de pessoal permanente” (destacamos).
Sob o fundamento de não se destinar a trabalhadores qualificados, o programa coloca um limitador salarial de um salário mínimo e meio para o salário básico mensal dos empregados contratados na nova modalidade. Garante, entretanto, a manutenção da modalidade contratual mesmo quando o salário ultrapassar esse valor em decorrência de aumento após doze meses de trabalho.
O Artigo 4º da Medida Provisória “garante” os direitos previstos na Constituição Federal – como se uma Medida Provisória pudesse dispor de modo diverso. Não são garantidos, entretanto, os direitos previstos na CLT e nas normas coletivas da categoria a que pertencer o trabalhador. Como ficam os Princípios do Não-Retrocesso Social, da Não-Discriminação e da Proteção, razões de ser do Direito do Trabalho? A projeção da aplicação da regra mais favorável, por exemplo, ganha uma ressalva, mais ou menos assim, “salvo se disposto em contrário, especialmente em MP”. E aí começa uma série de retirada de direitos trabalhistas, quer pela supressão direta, quer pela erosão, afetando, inclusive, o custeio do Estado Social.
O discurso de geração de empregos – apesar de não ser inédito, pois serviu de lastro para o movimento da reforma deflagrado pela Lei n. 13.467/17, sabidamente inexitoso – mostra-se falacioso. Não só porque a nova modalidade contratual retira direitos dos trabalhadores, diminuindo o poder de compra daqueles que mais consomem, mas também por se tratar de uma nova modalidade de contrato por prazo determinado, por até vinte e quatro meses, “a critério do empregador” (sic.). Assim, ainda que a nova modalidade contratual, fosse capaz de gerar mais empregos, esses teriam a efêmera duração de, no máximo, dois anos. Regras de exceção e temporárias em matéria trabalhista, aliás, também não se mostram novidade, servindo, apenas, como uma cortina de fumaça, passageira e frágil, com finalidade populista e eleitoreira, como em situações recentes envolvendo a realização da Copa do Mundo de Futebol. Além disso, como já referido, a norma autoriza a contratação de trabalhadores sob a nova modalidade para a substituição transitória de pessoal permanente, o que em nada faz aumentar o número de postos de trabalho.
A nova modalidade de contratação deixa o jovem trabalhador totalmente à mercê do empregador. Isso porque, além de o prazo contratual ser o que melhor sirva aos interesses desse último, fica afastada a conversão contratual para prazo indeterminado quando o contrato for prorrogado mais de uma vez, em evidente ofensa ao princípio da continuidade da relação de emprego. Acentua a hipossuficiência do polo fraco da relação, tirando o foco da luta de classes. Deixa, em seu lugar, aparentemente, um conflito de gerações, entre trabalhadores novos e nem tanto, corroendo ideais de classe e de pertencimento.
Uma leitura do artigo 6º da Medida Provisória permite compreender porque o “legislador” fez questão de referir no Artigo 4º que os direitos previstos na Constituição restam mantidos. Trata-se, na verdade, de mais um ardil para, de forma indireta, suprimir os direitos dos trabalhadores. E, dessa vez, inclusive, os direitos constitucionalmente assegurados.
O artigo 6º da Medida Provisória prevê o fracionamento do pagamento do 13º salário e das férias em períodos mensais ou inferiores, conforme ajustado entre empregado e empregador. Dessa forma, o trabalhador que receber o salário mensal de R$ 1.497,00 (teto salarial da nova modalidade contratual) receberá todo mês um acréscimo salarial de R$ 124,75 a título de 13º salário e outro de R$ 165,92 a título de férias com o acréscimo de 1/3. Ou seja, o seu salário mensal será de, no máximo, R$ 1.787,67, valor inferior a dois salários mínimos e, no final do ano, o trabalhador não terá direito à renda extra representada pelo 13º salário, tampouco receberá a remuneração com o acréscimo de 1/3 quando (e se) puder gozar suas férias. Para trabalhadores que percebem menos de R$ 1.500,00 por mês, o acréscimo de R$ 290,67 será certamente diluído nas despesas diárias com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, que o salário mínimo deveria ser capaz de atender, conforme dispõe expressamente o texto constitucional.
Para que efetivamente fosse garantido o salário mínimo assegurado na Constituição – e nem falamos aqui dos demais direitos, como faz referência o artigo 4º da Medida Provisória – o seu valor deveria ser de R$ 4.214,62, conforme aponta o DIEESE. Ou seja, mesmo com a perda do direito à décima terceira remuneração no final do ano e a perda da remuneração das férias com o acréscimo constitucional de 1/3 quando o trabalhador efetivamente as gozar, o salário máximo do novo programa governamental de “criação de empregos” não garante nem mesmo a metade do mínimo que um trabalhador deveria receber no Brasil para suprir as suas necessidades vitais básicas e às de sua família.
Assim como o 13º salário e as férias com 1/3, o FGTS também deverá ser diluído no salário mensal do trabalhador, sofrendo, ainda, uma redução de 75% de seu valor. O trabalhador que, até então tinha direito a depósitos mensais R$ 119,76 a título de FGTS, de modo a corresponder ao valor aproximado de uma remuneração por ano de trabalho, a partir de agora receberá apenas R$ 29,94 por mês, valor que tendencialmente desaparecerá no conjunto das parcelas salariais. E ainda se tem a desfaçatez de falar na garantia dos direitos constitucionalmente previstos.
O programa simplesmente acaba com a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa prevista no Artigo 10, inciso I, do ADCT. Isso porque, o seu pagamento também passa a se dar mês a mês, diluído nas demais parcelas que compõem o salário, “independentemente do motivo de demissão do empregado, mesmo que por justa causa” (sic.). Além disso, o valor passa a ser reduzido pela metade. Dito de forma clara, com o contrato de trabalho verde e amarelo, a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa assegurada na Constituição Federal de 1988 não mais se destina a proteger qualquer forma de despedida e se reduz a R$ 5,98 (cinco reais e noventa e oito centavos), no máximo!
Passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição Federal, a promessa da proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, estabelecida no inciso I do seu Artigo 7º, não apenas não foi efetivada, pela ausência da edição da Lei Complementar a que o texto faz referência, mas acaba sendo esvaziada de qualquer efetividade pela Medida Provisória em análise.
Nesse ponto, salta aos olhos a inconstitucionalidade da medida. Ainda que se entenda que a proteção estabelecida no inciso I do artigo 7º, da Constituição Federal configure de norma de eficácia limitada, não se pode olvidar que, conforme a lição de José Afonso da Silva, mesmo essas normas têm certo grau de eficácia. Com efeito, além de revogar a legislação infraconstitucional em contrário, estabelecem um dever ao legislador e aos entes públicos de legislarem no sentido de regulamentá-las e, especialmente, impedem a edição de leis infraconstitucionais em sentido contrário. Sendo assim, a Medida Provisória apresenta-se duplamente inconstitucional, no particular: não apenas esvazia uma garantia constitucional, legislando no sentido contrário ao determinado pela norma fundamental, mas ainda faz por Medida Provisória o que nem mesmo uma Lei Ordinária poderia fazer, haja vista a necessidade de Lei Complementar para regular a matéria.
Sabe-se que lei não cria emprego, salvo postos de trabalho junto ao Poder Público. O que gera emprego é produção e o que gera produção é consumo. Este, por sua vez, decorre da “renda”, cuja maior parte provem dos salários. Assim, retirando direitos e reduzindo salários, justamente da parcela da população que mais consome, como já referido, se está retirando dinheiro do mercado, agravando ainda mais a crise econômica que assola o país.
Em seus discursos de campanha eleitoral, o atual Presidente da República bradava que os brasileiros deveriam escolher entre direitos sem emprego ou emprego sem direitos, deixando clara a linha diretriz de sua política econômica. Uma vez eleito, passou imediatamente a cumprir as suas “promessas” de campanha. Como primeiro ato, editou, em 1º de Janeiro de 2019, a Medida Provisória nº 870, convertida na Lei nº 13.844/2019, não apenas extinguindo o Ministério do Trabalho, mas também o esquartejando e o distribuindo entre o Ministério da Economia, para onde foi a maior parte de suas atribuições, e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, fazendo com que, o movimento sindical voltasse a ser tratado como uma questão de polícia.
E assim, como se entrássemos em uma engenhosa máquina do tempo, somos novamente lançados ao ano de 1926, quando o último presidente da República Velha, Washington Luís, assumia o comando do país defendendo que a questão social era uma questão de polícia!
O retorno ao passado nos remete ao início do presente texto. A anta fez escola. Os ideais do verde-amarelismo de 1926 parecem encontrar terreno fértil no verde-amarelismo de 2019. Assim como movimento literário de outrora, o programa do atual governo parece acreditar que apenas pelo conservadorismo se conseguirá a renovação. Assim como lá, propõe-se aqui um retorno ao passado. Um passado em que os trabalhadores praticamente não tinham direitos e que a maior parte da população, “com sua índole pacífica” era considerada os braços operários do país, “a serem guiados pelas elites”.
E é assim, retirando-lhes os direitos mais básicos, que o governo pretende “beneficiar” os jovens, abrindo-lhes as portas para o mercado de trabalho. Como já havia feito o Manifesto do verde-amarelismo há quase cem anos, o governo convida a nova geração a produzir sem discutir. Bem ou mal (com o sem direitos), mas produzir. E, como uma reinvenção malfeita do passado, a regra fundamental da “nova economia” brasileira volta a ser “a liberdade plena de cada um ser brasileiro como quiser… mas acima de tudo, como puder”.
Santa Cruz do Sul/RS e Blumenau/SC, 12 de novembro de 2019
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*Almiro Eduardo de Almeida é juiz do Trabalho vinculado ao Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região, professor de Graduação no Centro Universitário Metodista – IPA, especialista em Direito do Trabalho pela Universidad de la República Oriental del Uruguay, mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo – USP.
**Oscar Kros é juiz do Trabalho vinculado ao Tribunal Regional do Trabalho da 12a Região, professor em nível de Pós-Graduação em Direito e Processo do Trabalho (Amatra/Furb, Cesusc, Unifebe, Femargs, Univille e Unidavi), mestre em Desenvolvimento Regional (PPGDR/Furb), membro do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (Ipeatra), coordenador e conciliador do Cejusc/Blumenau e coordenador de curso de especialização em Direito e Processo do Trabalho (Amatra/Furb).

Um comentário em “Verde-amarelismo jurídico: movimento por um trabalho sem direitos”

  1. Eu sugiro que todos os trabalhadores brasileiros, se esta MP for aprovada, mudem-se para os EUA, para o Canadá, ou talvez Europa, Oceania.
    Nestes países não há CLT, não há 13 salário, não há férias, não há FGTS, não há 40% sobre o FGTS se o trabalhador for dispensado sem justa causa, não há hora extra (ou é turno de 20 ou de 40 horas). Não ha juizes do trabalho que sempre dão ganho de causa para o trabalhador, mesmo que o empregador tenha efetuado todos os pagamentos corretamente.
    Agora, pergunte para algum trabalhador europeu, norte americano, canadense, australiano, neo zelandese, etc, se ele quer vir morar e trabalhar no Brasil. Ouvirá um sonoro NÃO !. Passear, talvez. Ou pergunte para algum trabalhador brasileiro que esteja trabalhando legalmente em algum desses lugares se ele quer voltar para o Brasil, país este onde os trabalhadores tem muitos direitos e poucos deveres.
    Este é o país dos sindicatos e dos juizes do trabalho. E em lugares onde há estes dois, não há lugar para a geração de empregos.

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