O jornalista Ayrton Centeno foi ao Instituto de Educação Josué de Castro (IEJC), centro de formação instalado no Assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, apresentar seu livro “Primeira Terra”.
O livro conta com detalhes de romance a ocupação da Fazenda Sarandi, em 1979 — antes portanto da fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Foi um momento diferente na carreira de Centeno.
Jornalista desde os 17 anos, ele sempre foi um repórter discreto que cedo se revelou um editor prolífico, autor de livros sobre ecologia (biografia de “Roessler, o primeiro ecopolítico”), resistência à ditadura (“Os Vencedores”), poesia (biografia de Alceu Wamosy) e futebol (“O Segundo Sangue”).
De tanto fazer reportagem junto aos camponeses sem terra, virou fonte de informação do próprio MST.
Com 224 páginas, “Primeira Terra” é fruto do esforço pessoal do repórter. Por sua amplitude e contundência, é um épico do jornalismo que merece ser lido e discutido, tanto pelas histórias que conta como pela linguagem extremamente enxuta com que fala dos párias da sociedade brasileira.
É uma história sulina que a partir de certo momento passa a fazer parte do movimento migratório para o Brasil Central, no embalo da sojicultora e sob a tutela dos governos militares, envolvendo loteadores agrários e cooperativas de colonização.
Em sua narrativa, Centeno junta no mesmo contexto, mas em lados opostos, índios expulsos de suas reservas e colonos sem terras que agem como posseiros e/ou invasores de terras alheias.
Segundo antropólogos que se debruçaram sobre esses
movimentos, seus protagonistas – colonos sem terras e índios banidos de suas áreas originais – constituem as categorias sociais mais sacrificadas da população brasileira.
Nesse aspecto, “Primeira Terra” é uma lição de jornalismo.
Os nomes desses episódios dramáticos fazem parte da história: Sarandi, Nonoai, Encruzilhada Natalino; e tiveram eco ou repeteco em Chapecó, Laranjeiras do Sul e no Mato Grosso.
Não é difícil concluir que esse drama prossegue hoje em dia na Amazônia, onde agricultores, criadores de gado,
garimpeiros e madeireiros invadem terras de índios.
Com foco nos episódios de 1979, Centeno recupera documentos gerados por colegas da imprensa e estudiosos da universidade.
Um dos repórteres que estiveram nas origens da briga foi Najar Tubino, que trabalhava para o Coojornal, de Porto Alegre. Na sequência, buscaram material nessa mesma área outros repórteres: André Pereira, Renan Antunes de Oliveira, Imara Stallbaum, Carlos Wagner e Ana Amélia Lemos, hoje senadora.
Entre eles, correndo por fora, o próprio Centeno. Ele conta:
“Logo após a ocupação, em 1980, eu e o Guaracy Cunha, que trabalhávamos na sucursal da editora Bloch (em Porto Alegre), fizemos o filme da ocupação chamado Fazenda Sarandi. Era um super 8. Em seguida, como decorrência da ocupação, começaram a surgir barracas e mais barracas de lona preta, palha, zinco em Encruzilhada Natalino. Passamos a acompanhar o caso de Natalino, o maior acampamento de sem terra do país na época e fizemos outro super-8”.
Mais de vinte anos depois, Centeno escreveu o roteiro do documentário chamado “Sarandi”, dirigido por Carlos Carmo, português que fora diretor de produção da TVE/RS.
Com apoio do Ministério do Desenvolvimento Agrário, então chefiado por Miguel Rossetto, o vídeo recontou a ocupação das granjas Macali (Madeireira Carazinhense Ltda) e Brilhante, esta pertencente a Ari Dalmolin, então presidente da poderosa Fecotrigo.
As duas granjas eram parte da fazenda Sarandi, latifúndio que abarcava as terras onde estão hoje vários municípios, como Sarandi e Ronda Alta.
Além de contar a história dos primeiros tempos da ocupação, o filme documenta a situação do assentamento ali estabelecido quase três décadas após a desapropriação da área pelo governo do Estado.
Para fazer o livro, Centeno aproveitou depoimentos gravados e não utilizados ou parcialmente utilizados no filme. E foi mais três vezes à região para colher mais depoimentos e fazer fotos. Além disso, o livro foi enriquecido com leituras e pesquisas históricas.
Em alguns trechos, a narrativa toma ares de romance, pois recupera declarações dos envolvidos, na linguagem crua usada no cotidiano dos agricultores sem instrução.
O resultado final é um livro raro que por enquanto só está disponível em dois locais: na Editora Autografia, do Rio (R$ 65,21, segundo consta em sua livraria digital) e (por R$ 45) na Livraria Vanguarda, de Pelotas, a terra natal do autor. (Geraldo Hasse)