Mariano Senna
“A qualidade moral da política alemã está em seu nível mais baixo desde os nazistas. Netanyahu está cometendo genocídio, matando crianças de fome, bombardeando hospitais e tornando Gaza inabitável com uma ampla ajuda alemã.”
A frase seria uma obviedade irrelevante, não tivesse sido publicada por um cidadão alemão de alto gabarito.
Aos 84 anos, Jürgen Todenhöfer é um empresário e político de longa experiência. Doutor em direito e ex-juiz, ele consagrou-se internacionalmente como parlamentar pela União Democrata Crista (CDU), onde atuou até a década de 1990, defendendo posições conservadoras.
Decepcionado pela hipocrisia da política, foi aos poucos se afastando. Dedicou-se então por mais de duas décadas a empreender no ramo da mídia, aprimorando seu conhecimento sobre as causas e consequências dos conflitos bélicos nos confins do mundo.
Em 2020 desfiliou-se formalmente do CDU e criou seu próprio partido, o “Team-Todenhöfer”, com o qual tem concorrido como candidato independente às eleições do parlamento federal em Berlim.
Suas propostas são ousadas, fazendo dele uma espécie de franco-atirador da política. Na questão de Israel, por exemplo, Todenhöfer é um dos únicos alemães de destaque que ousam criticar diretamente o Estado-Sionista, arriscando inclusive ser punido por antisemitismo.
“O Holocausto moldou toda a minha vida. Nosso lema comum era “Nunca mais!”. Agora Netanyahu está fazendo algo semelhante. E os políticos alemães são seus cúmplices mais próximos”, ataca ele, justificando que “a liberdade é o direito de dizer o que os outros não querem ouvir. No caso de genocídio, esse direito se torna um dever”.
Dilema humano
Para ele, a questão envolve um dilema. Entre a acusação de antisemitismo, ou da cumplicidade com um genocídio, Jürgen defende a observância aos valores fundamentais da constituição alemã, evitando o relativismo hipócrita do poderoso lobby sionista.
Sozinho e por vezes até isolado no contexto europeu, Dr. Todenhöfer é uma das poucas vozes que tenta manter a sanidade mental na política do continente.
Segundo ele, a raíz do problema está justamente no papel da chamada mídia mainstream. Para tratar o assunto, publicou o livro “A Grande Hipocrisia” (Die Grosse Heuchelei) em 2019, curiosamente um ano antes da Pandemia da Covid-19.
Na obra, Jürgen denuncia o descompromisso da classe política europeia com os mais básicos princípios morais e éticos do nosso tempo.
Além de acusar a dupla-moral que caracteríza a União Europeia na atualidade, o texto traz um capítulo inteiro sobre a responsabilidade dos jornalistas no corrente processo da derrocada do velho continente.
Intitulado “O fracasso das mídias” (Das Versagen der Medien), o trecho de 11 páginas esmiuça alguns dos casos recentes que explicitam a falta de compromisso do chamado “quarto poder” com qualquer tipo de noção daquilo comumente denominado de humanidade.
Todenhöfer vai além, e desmascara o caráter imoral do establishment jornalistico do ocidente. Com fatos e fontes irrefutáveis, mostra o compromisso das grandes redes de informação com a narrativa do poder vigente, onde nacionalidade, etnia ou mesmo opção político-ideológica importam mais do que a própria condição humana.
Jornalistas de ventríloco
Mesmo tratando-se de exemplos no palco internacional, é possível traçar inúmeros paralelos com o comportamento do jornalismo brasileiro. Como se as cordinhas que animam os apresentadores dos telejornais fossem, em muitos casos, as mesmas.
O texto vale sobretudo como um exercício de reflexão. Por isso a decisão de traduzir o capítulo em sua íntegra. Ainda que alguns fatos não sejam mais atuais (ex.: Assad já foi derrubado na Siria), a comparação entre discursos ao longo das últimas décadas demonstra a profunda hipocrisia dos destacados jornalistas que produzem o notíciário nos grandes veículos.
Como demonstra Todenhöfer, do alto de seus cargos prestigiados, tais profissionais se prestam ao lamentável papel de reforçar a narrativa em defesa da guerra como meio político para combater problemas complexos e difusos, sem apontar as causas de tais mazelas.
Confiram o texto do capítulo 19 do livro “A grande hipocrisia” a seguir:
Jornalismo torcedor
Muitos dos principais meios de comunicação não estão sentados como observadores objetivos na arquibancada da política mundial. Eles se sentam nas arquibancadas dos poderosos. Eles praticam o jornalismo de torcedor. Apitam apenas as faltas cometidas pelo “adversário”. Ignoram as faltas cometidas por sua própria equipe, ou as relativizam como “dureza necessária”. Exatamente como os torcedores. Quando a região oeste de Mossul foi destruída sob a liderança americana e pelo menos 20.000 civis foram mortos, a mídia principal falou de uma vitória sobre o terror, de uma “libertação”. Quando o leste de Aleppo foi destruído sob a liderança russa e, de acordo com estimativas locais, 10.000 pessoas morreram, eles falaram de uma derrota, ou até mesmo do “fim da humanidade”. O Estado Islâmico estava sediado em Mossul e a Jabhat Al-Nusra em Aleppo. Ambos são plantas de pântano da Al-Qaeda.
A palma de ouro da dupla moral
Grande parte dos outrora tão diferentes centros culturais mundiais de Mosul e Aleppo tem a mesma aparência hoje: como Hiroshima teve no passado. No entanto, o jornalismo ocidental fez uma grande diferença em sua avaliação dos bombardeios americanos e russos: as bombas americanas eram “bombas do bem”. As bombas russas eram “bombas do mau”. O lema do “jornalismo-de-torcida” ocidental dominante é: o que os Estados Unidos e nós podemos fazer, a Rússia e outros “oponentes” nem de longe podem.
Visitei as duas cidades várias vezes. Fiquei chocado com o sofrimento das pessoas, com o fracasso de nossa política e com o fracasso de nossa mídia. Somente por causa de Mosul e Aleppo, alguns dos principais meios de comunicação ocidentais merecem a “Palma de Ouro da Dupla Moral”.
Quando a mídia cria guerras
Alguns jornalistas importantes são mais belicosos do que seus governos. Até mesmo na Alemanha. O espirituoso Berthold Kohler, editor do Frankfurter Allgemeine Zeitung, não apenas saudou as últimas guerras do Ocidente. Ele queria mais guerra, e lamentou muito o fato de Obama ter cancelado sua intervenção militar contra a Síria no último momento. O Ocidente tinha que “proteger seus valores com unidade, (…) se necessário, com suas próprias tropas na Síria”. Essa batalha histórica não seria possível sem sacrifícios. Kohler atestou generosamente a “legitimidade” da guerra dos EUA contra o Iraque, que violou a lei internacional. Afinal de contas, houve “consentimento visível para a invasão da coalizão”.
Josef Joffe, editor belicoso do Die Zeit, defendeu a guerra no Afeganistão como uma “guerra de defesa”, que “duraria até que a rede terrorista fosse destruída”. Nesse meio tempo, o número de terroristas no Oriente Médio explodiu como resultado das “guerras antiterroristas”. Mas isso não impede Josef Joffe. Ele chamou a guerra da OTAN na Líbia de “golpe de sorte”. Também queria ter visto uma intervenção militar ocidental contra a Síria: Os sírios “teriam merecido a ajuda militar do Ocidente ainda mais do que os líbios”. Infelizmente, isso não acontecerá porque o real é mais forte do que o ideal. E assim, “a Europa não precisa temer um influxo em massa de refugiados sírios”, escreveu ele em 2011. Bem, desde então…
Em 2013, Joffe escreveu: “Se você quiser derrubar ou paralisar a ditadura de Assad, destrua o fornecimento de energia, os sistemas de comunicação, as fábricas e as pontes como na Sérvia; melhor ainda: refinarias, depósitos de petróleo, campos de aviação e portos. E, com armas de precisão ou não, aceite milhares e milhares de mortes de civis… Na guerra, aplica-se a “falácia do último movimento”: se um lado ataca na expectativa de que o outro abaixe as armas. Nesse caso, o golpe deve ser quase fatal. Caso contrário, a guerra ‘curta’ se tornará uma guerra interminável, o que o Ocidente quer evitar a todo custo.”
Imprensa belicosa
Mas Assad ainda está lá, apesar dos mais de 100.000 rebeldes e terroristas armados pelo Ocidente e seus aliados. A estratégia criminosa de caos do Ocidente não “destruiu” o regime, mas o povo, o país.
Steffan Kornelius, diretor de política externa do Süddeutsche Zeitung, apresentou um argumento igualmente belicoso. Ele chamou a rejeição do governo alemão à guerra do Iraque em 2002 de “tola” e “errada”. A Alemanha estava “sacrificando a OTAN … no altar da nova política externa alemã … Bem-vindo ao Isolarion! … O preço por essa decisão será enorme”. Ele chamou as bombas contra Gaddafi de “corajosas” e a abstenção alemã no Conselho de Segurança das Nações Unidas de “o maior erro de política externa” do governo alemão. A Alemanha vai pagar um preço alto por isso”, previu ele aos seus leitores.
Hoje, os três jornalistas estão chateados com a explosão do terrorismo no Oriente Médio. A ideia de que eles próprios poderiam estar contribuindo intelectualmente para o caos que está nos atingindo como um bumerangue, não lhes ocorre. Muito pelo contrário! Kohler e Joffe ridicularizam os oponentes da guerra como “abutres da propaganda islâmica” e “pacifistas vulgares”.
Kohler, Joffe e Kornelius não fazem comentários muito diferentes de seus famosos colegas do New York Times ou do Washington Post. Os principais meios de comunicação do mundo ocidental ajudaram a provocar muitas guerras. E não apenas nos últimos anos. Há livros inteiros sobre a belicosidade da mídia americana.
Sentados no quentinho e cantando para a guerra
Tais jornalistas também parecem desejar que exércitos inteiros se movimentem em resposta a seus comentários. Afinal de contas, as bombas não estão voando em torno de seus ouvidos, mas dos ouvidos dos outros. Eles raramente são encontrados onde as coisas acontecem de verdade, mas ainda assim veem a guerra como um sinal de masculinidade. Por segurança, não se submetem a esse teste de masculinidade. Goethe desprezava as pessoas que se sentavam em suas salas quentes e cantavam canções de guerra.
Convido cada um desses três grandes jornalistas – Kohler, Joffe e Kornelius – a passar uma semana comigo em uma zona de guerra. E para visitar um hospital de guerra depois disso. Nas zonas de combate do Afeganistão, Líbia, Iêmen ou Somália. Não como um “jornalista infiltrado”. Mas sem guarda-costas e sem colete à prova de balas. As pessoas que o Ocidente está bombardeando também não têm coletes à prova de balas. Quer apostar que ninguém vai aparecer? Cantar canções de guerra é mais fácil se você ficar no calor de sua sala de estar.
O “triângulo de ferro” de Kohler, Joffe e Kornelius não pode falar pela maioria dos jornalistas alemães. Em minha experiência, a maioria dos jornalistas alemães está do lado da paz. Mas Kohler, Joffe e Kornelius representam uma mídia poderosa e líder de opinião na Alemanha. Eles são aliados jornalísticos do projeto de dominação mundial dos EUA. Eles nunca serão aliados na luta contra a hipocrisia.
Dupla atração
A proximidade dos principais jornalistas ocidentais com os líderes da política ocidental já foi analisada muitas vezes. O principal problema não é a participação deles em determinadas conferências transatlânticas. Em vez disso, é o fato de alguns jornalistas se sentirem confortáveis demais perto dos poderosos. Eles se deixam intoxicar pelo ambiente de poder. Esquecem-se de seu papel de cão de guarda e abandonam seu distanciamento seguro. Eles se tornam cortesãos.
Durante anos, testemunhei em primeira mão o respeito com que os principais representantes da mídia se aproximavam dos chanceleres Brandt, Kohl, Schröder e Merkel. O quanto eles gostavam da proximidade pessoal que os caracterizava na frente de seus colegas. Depois de uma longa conversa individual com um dos poderosos, seus artigos geralmente não continham uma palavra crítica por um longo tempo. E, se alguma delas escapasse, eles se retiravam por meses.
Os juízes precisam se declarar “tendenciosos” se estiverem tão próximos. Retirar-se da disputa legal. O mesmo fazem os árbitros de futebol e os juízes de patinação artística. Isso é, de fato, uma questão natural. E, no entanto, quase ninguém adere a essa regra básica do jornalismo objetivo e consciente. Quanto mais tendenciosas algumas pessoas são, mais abertamente elas escrevem.
Falta liberdade interna na imprensa
Passei vinte anos da minha vida trabalhando na política e 22 anos na mídia. Conheci inúmeros jornalistas. Muitas vezes, pessoas impressionantes com quem me senti muito à vontade. Pessoas que estão do lado da paz. Até mesmo nos três principais jornais alemães que mencionei.
Por que é tão raro ouvirmos suas vozes em momentos cruciais? Por que é tão difícil para eles enfrentar o belicismo irresponsável de seus superiores? Por que eles não usam seus erros catastróficos de julgamento contra eles?
Um dos motivos provavelmente é que a liberdade de imprensa garantida pela Carta Magna protege mais as organizações de mídia do que os jornalistas. É verdade que os jornalistas individuais também são protegidos de intervenções externas. Entretanto, eles não estão protegidos contra intervenções internas. De instruções de seu superior, seu editor-chefe. Os jornalistas não têm “liberdade de imprensa” em relação ao editor-chefe ou ao editor. Nossa constituição garante apenas a “liberdade externa”, não a “liberdade interna de imprensa”.
País livre?
Quando os editores-chefes de alguns dos principais meios de comunicação alemães decidem na conferência matinal: “É assim que vamos comentar sobre o conflito no Irã hoje”, o conflito geralmente também é comentado “dessa forma” pelo editor responsável. Mesmo que eles discordem completamente. É claro que ele pode discutir e discordar. Se o editor-chefe mantiver sua opinião, ele terá de ceder. Depois de uma certa idade, não é fácil simplesmente pedir demissão.
Com Friedrich Schiller, eu gostaria de gritar para todos os editores e chefes de redação: “Dê liberdade de pensamento, senhor!” Mas o que eu gostaria de ver nos jornalistas, também com Schiller, é “mais coragem de homem diante dos tronos principescos!” Às vezes, é preciso lutar por sua opinião. E, se necessário, pagar um preço por ela.
Direito à “linha editorial”
Ninguém deve negar aos editores e editores-chefes o direito de determinar a direção básica de sua mídia. Mas em questões fundamentais de guerra e paz, em questões centrais de certo e errado, em questões importantes de consciência, o jornalista individual deve ter mais liberdade. Até mesmo o Tribunal Constitucional Federal publica os “votos da minoria”. Será que algo semelhante não pode ser feito na mídia? Na questão da guerra e da paz, muitas vezes esses seriam até mesmo “votos da maioria”.
Por mais de vinte anos, fui assistente de Hubert Burda, um editor alemão com ideias políticas claras. Durante esse período, escrevi vários livros sobre as guerras no Afeganistão e no Iraque. Eles fazem uma análise crítica da política externa americana. Neles, também formulei minhas preocupações sobre a política externa de Israel.
Na época, meu editor era um grande amigo dos EUA. E um amigo ainda maior de Israel. Ele me deixou fazer isso mesmo assim. Embora certamente não tenha sido fácil para ele. É claro que tivemos discussões sobre minhas declarações. Mas elas eram justas e soberanas. É isso que quero dizer quando falo sobre tolerância editorial. É possível.
A mentira destrói a credibilidade
Essa tolerância e atitude liberal em relação a opiniões divergentes também é do interesse dos proprietários e editores-chefes da grande mídia. Um dos motivos da perda de credibilidade da grande mídia é que ela frequentemente suprime opiniões contrárias. E marginalizam os fatos que não se encaixam em sua visão de mundo.
Tenho mais de 700.000 assinantes em minha página do Facebook. Alguns de meus artigos alcançaram milhões de leitores. Não porque meu texto seja particularmente original. Mas porque o corajoso Süddeutsche Zeitung (SZ), o diversificado Frankenfurter Allgemein Zeitung (FAZ) ou a atrevida revista Spiegel do passado não existem mais. E os jovens geralmente não acreditam mais na mídia tradicional. Porque eles foram enganados com muita frequência. Infelizmente, as notícias falsas não são apenas um problema da mídia social, mas também da mídia tradicional.
Quando viajei pelo Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, Palestina, Irã ou Iêmen nas últimas décadas e estudei as reportagens da mídia ocidental à noite, muitas vezes pensei que estava assistindo ao filme errado. Porque eu estava lendo coisas que tinham pouco a ver com a realidade no local. Também tive que corrigir minha opinião várias vezes durante minhas viagens. Mas a corrente principal nunca muda sua opinião pró-Ocidente. Ela sempre segue o mesmo roteiro.
Especialmente em questões de guerra e paz, a grande mídia ocidental tem sido, muitas vezes, o farol dos poderosos. Muitas vezes, eles espalham suas mentiras sem controle. Eles pensavam: Por que um ministro da defesa ou outro membro do alto escalão do governo deveria nos contar uma mentira? Sim, por que eles diriam? Porque a política sempre precisa de propagandistas.
Pelo renascimento da diversidade de opiniões
Eu costumava encontrar uma grande variedade de opiniões sobre questões importantes no FAZ. Por exemplo, sobre a guerra no Afeganistão, no “Politisches Buch”, partidários e opositores tinham sua opinião. No “Feuilleton” ou na editoria de “Economia”, eu encontrava outra visão das coisas.
Isso foi um ótimo jornalismo, onde se testemunhava a liberdade intelectual. Mas isso é coisa do passado. As reportagens sobre questões de política externa agora tendem a ir em uma única direção. O que aconteceu com a antiga diversidade de opiniões do FAZ?
Há meios de comunicação que ainda tentam permitir um certo grau de “liberdade de imprensa interna” e diversidade de opinião. O Die Zeit, por exemplo, ou as emissoras públicas. E alguns jornais regionais. Mas mesmo eles raramente resistiram ao zeitgeist em questões importantes. Sua voz contra a guerra e a hipocrisia raramente foi ouvida. Ou apenas de forma discreta e sutil. Em geral, eles não eram um contrapeso real.
Guardiãs da democracia
Até mesmo a outrora grande Spiegel não é mais um farol da imprensa livre. Não apenas desde o “caso Relotius”*, embora grandes jornalistas ainda escrevam em algumas editorias da publicação. A Der Spiegel costumava ser tão controversa, que você podia odiar e amar numa mesma edição, mas agora está atrasada em relação ao zeitgeist em muitos tópicos de uma forma quase embaraçosa. Em algumas questões que posso julgar razoavelmente bem, como a questão da Síria, ela estava e está tão longe do alvo que quase dá para sentir pena dela.
A revista foi obrigada pela justiça a se retratar por conta de uma reportagem de várias páginas sobre a nossa viagem ao “Estado Islâmico”. No final da audiência, a Der Spiegel anuiu todos os quatorze trechos que eu havia classificado como falsos e emitiu “declarações de cessação e desistência com penalidades anexas”. A publicação nunca mais deve repetir essas 14 declarações.
Seguindo o conselho do Tribunal Regional de Hamburgo, a Der Spiegel até mesmo se comprometeu a excluir completamente seu artigo da Internet. “Não dá para ser pior do que isso!”, disse-me um observador no julgamento, balançando a cabeça. A Der Spiegel nunca se desculpou com seus leitores por essa falha. Pelo menos não para mim. Basicamente, isso é triste. A Der Spiegel foi uma das mais importantes guardiãs de nossa democracia. Ela só voltará a sê-lo com um jornalismo muito mais corajoso.
A coragem de historiadores
Enquanto alguns meios de comunicação seguem as opiniões dos poderosos, banalizam-nas ou defendem-nas, os historiadores geralmente têm uma visão mais intrépida e livre das linhas gerais da política mundial. Os historiadores apontam abertamente as hipocrisias e os erros de nosso tempo. Na preparação para este livro, li inúmeras obras de historiadores alemães, americanos e franceses. Eles raramente contam o conto de fadas da luta “heróica” do Ocidente pelos direitos humanos e pela democracia. É absurdo demais. Quase ridículo. Será que alguns jornalistas não poderiam, pelo menos, dar uma olhadinha nesses trabalhos?
Hipocrisias dos poderosos
Será que não vou mais ler o SZ, o FAZ ou o ZEIT? Eu estaria me punindo. Leio pelo menos duas horas de jornais todos os dias. Com grande proveito. Passo pelo menos uma hora por dia em minha bicicleta ergométrica lendo o FAZ. Incluindo artigos de Berthold Kohler, é claro. Não para “observar o inimigo”, mas porque também encontro análises fortes nesse jornal. Também de Kohler. O mesmo se aplica ao SZ e, cada vez mais, também ao Die Zeit. Ou o jornal semanal Der Freitag.
Os jornais fazem parte de nossa cultura. É exatamente por isso que o fracasso de muitos dos principais meios de comunicação sobre a questão da guerra e da paz me deixa tão irritado. O fato de eles permitirem que as hipocrisias dos poderosos passem tão facilmente, e até mesmo concordarem com elas, coloca em risco a paz no mundo todo. E enfraquece sua própria importância.
A mentira vitalícia de nossa civilização
Não acredito que haja jornalistas na mídia que mencionei que escrevam deliberadamente inverdades. As exceções comprovam a regra. Acredito que a maioria dos defensores jornalísticos da guerra são, eles próprios, vítimas de uma grande mentira. A mentira vitalícia do Ocidente, de que sua política de poder é uma ação humanitária. Nunca será uma política de poder. Os EUA gastam inimagináveis 700 bilhões de dólares em armamentos porque querem fazer valer seus interesses em todo o mundo. Não para dar acesso à escola às meninas afegãs.
A grande mídia deve parar de divulgar esses contos de fadas tolos. Não deveriam ser elas a aplaudir o guarda-roupa inexistente do imperador, como no conto de fadas de Andersen, As roupas novas do imperador. Você deveria ser o garotinho que afirma abertamente que o imperador não está vestindo nada.
* O “Caso Relotius” se refere a uma serie de reportagens fraudulentas produzidas pelo jornalista Claas Relotius, membro do staff principal da revista Der Spiegel entre 2017 e 2018.