É o Schaan, agora em romance ecológico

A paisagem do pampa é cenário do romance

Geraldo Hasse

Eis um livro surpreendente. Começa com a capa – tomada pela cabeça negra de uma jaguaruna (cujo desenho não tem autor identificado nos créditos) –, segue com a orelha assinada pelo escritor Luiz Antonio de Assis Brasil afirmando tratar-se, este romance, de uma obra-prima da
literatura regional e, logo depois, vem o preâmbulo do
jornalista-historiador Juremir Machado da Silva dizendo que o leitor encontra neste livro “um rio caudaloso, selva de imagens, (…), enchente de metáforas”.
O que dizer mais?

Felizmente, logo no início, o autor Roberto Schaan Ferreira (que não é um estreante, em 2011 ganhou o Açorianos de Narrativa Longa com o romance Por que os Ponchos são Negros) dá uma pista do caminho que vai trilhar. Caminho áspero, selvagem, violento, no qual a divindade se faz representar por um felino invisível. Na primeira de suas 270 páginas, Schaan faz referência ao espaço vasto e o tempo moroso. É seu modo denso de falar do pampa profundo, onde se cria gado sem cercas, graças a seres humanos que se movimentam no lombo de cavalos. Os fabulosos centauros da mitologia gaúcha…
Como um esgrimista incansável, o ficcionista opera em alta voltagem. A tensão aparece logo na primeira frase do romance: “De repente o cavalo voltou a cabeça para a esquerda, orelhas tesas em direção ao mato”. Em outras palavras, seria o caso de dizer que alguma coisa acontece atrás das árvores, mas somente algumas páginas adiante o narrador voltará a esse episódio-chave. “Isso é onça”, diria um compositor caipira. Já temos leitura suficiente para concluir que o cavalo estava pressentindo o jaguar, ou a jaguaruna, que sempre andará por perto, mas sem mostrar.
A narrativa é exuberante na descrição de detalhes da paisagem e dos procedimentos no trato com os animais, especialmente os cavalos. A gadaria pasta e os humanos se alimentam de carne bovina. Qualquer semelhança com a gastronomia gauchesca não será mera coincidência. Foi mais ou menos aqui que tudo começou.
O cenário tem nome: Rincão do Inferno, nas cabeceiras do rio Camaquã.
No romance não é citada nenhuma cidade, mas quem nasceu na metade sul do Rio Grande acaba percebendo que esse território fantástico fica entre Lavras do Sul, Jaguarão, Pinheiro Machado, Bagé e Piratini, a vila histórica escolhida pelo coronel Souza Netto para proclamar a república, à revelia dos companheiros entreverados em outros locais.
O autor Roberto Schaan Ferreira nasceu em Passo Fundo mas na juventude campereou à larga no Rincão do Inferno, onde já havia ambientado seu primeiro romance (Por Que os Ponchos são Negros). Agora ele vai mais
fundo e não parece fora de propósito dizer que Deus Estava Longe, a segunda narrativa longa, é um resgate sentimental de uma paisagem única, quase desconhecida da maioria dos sul-rio-grandenses.
Leitura fácil como andar em cavalo manso. Por conhecer o terreno, Schaan viaja voluptuosamente para o passado. As terras e os animais têm donos, mas estes não aparecem, mal são nomeados em parágrafos passageiros. À medida que a leitura flui, vai ficando claro que os protagonistas dessa história são os trabalhadores que lutam para sobreviver nesse meio áspero, quase deserto: são capatazes, peões, posteiros, domadores, negros escravos, quilombolas e uma surpreendente índia charrua, que vive e procria com o fugitivo (negro) de uma estância. Nesse lugar não há soldados mas, de vez em quando, aparecem
grupos de caçadores empenhados em aprisionar negros que fugiram de seus donos e se organizaram em quilombo. Sim, no Rincão do Inferno há pelo menos um quilombo cujos pioneiros, depois de um ano, decidem sair em busca de mulheres, sem as quais a vida transcorria sem graça. Não foi difícil raptar ou propiciar a fuga de algumas escravas sedentas de liberdade.
O ano das ações iniciais é 1831, mas logo se vê que as datas não importam muito. De repente, os acontecimentos podem estar dentro do chamado período farroupilha, que começou em 1835 e continua até hoje, em eventos oficiais e programas de CTG. Mas para o final do livro, já se fala nos soldados imperiais comandados por um certo Barão até que se ouvem, mal e mal,  os ecos do massacre de Porongos.
Mesmo com poucos e esquivos personagens, este livro apresenta maior riqueza de detalhes sobre o pampa do que o decantado Don Segundo Sombra, romance do argentino Ricardo Güiraldes sobre a vida campeira
lançado em 1924 em Buenos Aires. Bueno que apareça no Rio Grande de hoje um escritor capaz de produzir relatos carregados de sentimento telúrico.
Aos falar da potência das plantas, da força das águas e do poder dos ventos, além de outras minúcias da vida no campo, Schaan produziu um romance ecológico que nos remete a um das maiores obras da literatura brasileira. Quem se lembra do rio Urucuia citado intermitentemente no maior livro de Guimarães Rosa? É um rio pequeno consagrado por personagens que só andam a cavalo nas veredas dos sertões de Minas Gerais. Respeitemos o Camaquã, cujas águas nascidas numa serrania
inóspita descem ao encontro da Grande Laguna, como Schaan chama a Lagoa dos Patos. É um rio pequeno, de uns 250 km, que ganhou uma nova dimensão graças a essa copiosa narrativa.
Roberto Schaan Ferreira autografa Deus Estava Longe na praça de autógrafos da Feira do Livro de Porto Alegre, às 18h de terça-feira (14/11), o mesmo dia do massacre dos lanceiros negros no Cerro dos Porongos, em 1844.