A nova distribuição do poder global

Na famosa reunião secreta em Camp David, no estado de Maryland, 15 agosto de 1971, o então presidente dos Estados Unidos (EUA), Richard Nixon, acabou com o padrão ouro-dólar do regime de Bretton Woods e decretou o fim do regime monetário do pós-guerra. Surgia uma nova moeda totalmente fiduciária, sem lastros no ouro e com a possibilidade de emissão via decreto. A moeda fiduciária só possui valor porque o governo, empresas e pessoas em geral atribuem algum valor a ela. Portanto, seu valor é baseado na autoridade e confiança do emissor. 

A partir daí, a dívida pública dos EUA passa de US$ 70,2 bilhões (valor da época) em cinco anos do governo de Richard Nixon (1970-1974) para US$ 126,9 bilhões em dois anos do governo Gerald Ford (1975-1976), pulando para US$ 226,6 bilhões no governo de Jimmy Carter (1977-1980). Nos dois governos de Ronald Reagan (1981-1988) a dívida explode para US$ 1.338,7 bilhões, que representou algo em torno de 80% da circulação monetária total no mercado interbancário internacional.

E a dívida pública dos EUA continuou aumentando. Hoje, ultrapassou US$ 33 trilhões (cerca de R$ 160 trilhões) – pela primeira vez na história, conforme dados divulgados pelo Departamento do Tesouro. O recorde vem em meio a uma possível paralisação do governo norte-americano, que enfrenta um embate sobre gastos federais.

O Congresso norte-americano tem até este final de semana – 30 de setembro -, encerramento do atual ano fiscal, para chegar a um acordo para financiar o governo federal. Caso contrário, as agências federais terão que fazer uma paralisação, o que não acontece desde 2019.

Em 2023, a dívida dos EUA disparou ainda mais depois que o presidente dos EUA, Joe Biden, aprovou um projeto de lei no início de junho passado que removeu o teto da dívida de US$ 31,4 trilhões por dois anos, permitindo efetivamente ao governo continuar a contrair empréstimos sem limites até 2024. O teto foi suspenso após repetidas advertências do Tesouro de que, a menos que a medida fosse tomada, o país não cumpriria as suas obrigações.

No artigo “A retomada da hegemonia norte-americana” (1997), a economista Maria da Conceição Tavares explica que o componente do déficit dos EUA é crescente graças à mera rolagem da dívida pública. “Esta dívida é o único instrumento que os EUA têm para realizar uma captação forçada da liquidez internacional e para canalizar o movimento do capital bancário japonês e europeu para o mercado monetário americano…O preço desta ‘estabilidade’ tem sido a submissão dos demais países à diplomacia do dólar e ajuste progressivo de suas políticas econômicas, aspirando o ‘equilíbrio global do sistema’… O resultado deste movimento é que o espectro das taxas de crescimento, das taxas de câmbio e de juros passou a ser concêntrico ao desempenho destas variáveis no âmbito da economia americana.”    

O domínio do dólar nas transações cambiais no mundo foi definido no final da 2ª Guerra e tornou-se efetivo a partir da década de 1970. Já o tema da desdolarização entrou na pauta de forma mais consistente durante a crise financeira mundial de 2008 e se fortaleceu com as sanções econômicas impostas à Rússia pelo conflito com a Ucrânia, em 2022, com o bloqueio de US$ 643,2 bilhões. A rapidez com que os EUA impuseram sanções à Rússia, acompanhada dos reajustes da taxa básica de juros definida pelo banco central dos EUA (o Federal Reserve), levaram a um movimento de venda de dólares e investimento em outros ativos.

Outra medida dos EUA foi a exclusão de bancos russos da plataforma Swift, que viabiliza transferências e pagamentos internacionais. Segundo a agência Tass, a criação de uma alternativa ao Swift será uma das questões na agenda da reunião dos países do Brics no próximo ano, informou o ministro das Finanças russo, Anton Siluanov, num fórum, acrescentando que alguns membros do Brics já possuem os seus próprios sistemas.

Movimentos recentes mostram o aumento da utilização da moeda chinesa, o renminbi (RMB), entre Rússia e China; Arábia Saudita e Índia disseram que vão trabalhar usando a rúpia indiana. Um dos focos dos chineses na cruzada contra o dólar é o petróleo. Desde o ano passado, a China, maior importadora global da commodity, vem discutindo com a Arábia Saudita e com outros países do Golfo Pérsico que o comércio de barris também seja feito em moedas locais.

Segundo a BBC News, os bancos centrais de todo o mundo estão usando os dólares de suas reservas para comprar ouro com o objetivo de reduzir sua dependência dos EUA. O Conselho Mundial do Ouro, organização dedicada ao desenvolvimento de mercado para o setor, informou que as autoridades monetárias adicionaram em 2022 a maior quantidade de ouro às suas reservas desde 1950 (início da série histórica). E os dados deste ano indicam que essa tendência vai continuar.

Só que os países devem ser prudentes e manter o ouro em seus cofres. Em 2022, o Supremo Tribunal de Londres rejeitou a solicitação do presidente Nicolás Maduro para obter o controle de mais de US$ 1 bilhão das reservas de ouro da Venezuela armazenadas nos cofres subterrâneos do Banco da Inglaterra devido às sanções.

O conflito está instalado. A hegemonia do dólar é imprescindível para os Estados Unidos preservarem o poder global. Ao mesmo tempo, usar o dólar como arma de disputa geopolítica torna-se incompatível com o mundo multipolar que está em formação, principalmente pelas ações dos países integrantes do Brics.