Fatiamento do Plano Diretor de Porto Alegre – Parte I

A Câmara Municipal de Porto Alegre realizou no dia 10 de março passado uma Audiência Pública online para debater o Projeto de Lei Complementar 035 (PLCL 035/21), enviado pelo Executivo em 21 de dezembro de 2021. Atualmente, está na Comissão de Constituição e Justiça. É a continuação do que o prefeito Sebastião Melo (MDB) definiu como “Fatiamento do Plano Diretor”

O PLC 035 dispõe sobre a Outorga Onerosa do Direito de Construir, uma concessão emitida pelo poder público para que o proprietário do imóvel construa acima do coeficiente básico. Trata-se da utilização dos estoques construtivos públicos, variável de acordo com cada região da cidade, estabelecido mediante o pagamento de uma contrapartida financeira.

A lei federal 10.257 de 10 de julho de 2001, conhecida como Estatuto da Cidade, criou a Outorga Onerosa do Direito de Construir, antes chamado de Solo Criado, que regulamenta o capítulo “Política urbana” da atual Constituição brasileira.

O Fundo Municipal de Gestão de Território (FMGT), criado pela Lei Complementar nº 850, de abril de 2019 é mantido. O FMGT, de natureza contábil especial, é destinado à arrecadação e à aplicação de valores do Solo Criado de Médio Adensamento e de Solo Criado de Grande Adensamento. Recebe recursos do orçamento próprio do município de Porto Alegre, das transferências do Estado do Rio Grande do Sul e União, de financiamentos nacionais e internacionais e de doações vinculadas à implantação da política urbana de Porto Alegre a ser regulamentada por decreto.

Os dois temas são importantes para todos os cidadãos de Porto Alegre, pois mexem com o planejamento urbano da cidade. Infelizmente, o público não demonstrou interesse ou a divulgação foi falha. Até o dia 21 de março, apenas 28 pessoas acessaram o vídeo da Audiência Pública, que está disponível no site da Câmara de Vereadores.

O PLC 035 altera o inciso VII do artigo 2° e inclui o inciso XII no artigo 6° da Lei Complementar 612 de 19 de fevereiro de 2009 – administração de José Fogaça (MDB) -, que criou o Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social (FMHIS) e instituiu o seu Conselho Gestor.

O artigo 2°, da Lei Complementar de 2009, trata de como são constituídos os recursos do FMHIS. O inciso VII diz:
– Recursos auferidos com aplicação do instituto do Solo Criado e da alienação da reserva de índices, nos seguintes percentuais:
a) 85% (oitenta e cinco por cento) até 31 de dezembro de 2014; e
b) 90% (noventa por cento) a partir de 1º de janeiro de 2015; (Redação dada pela Lei Complementar nº 644/2010)

A nova redação dada ao inciso VII fica assim: recursos auferidos com a aplicação do Solo Criado Não Adensável e de Solo Criado de Pequeno Adensamento;

Já o artigo 6°, da Lei Complementar 612 de 19 de fevereiro de 2009, define as aplicações dos recursos do FMHIS que serão destinadas a ações vinculadas aos programas de habitação de interesse social. O novo inciso XII do artigo 6° diz: As aplicações dos recursos do FMHIS serão destinadas a ações vinculadas aos programas de habitação de interesse social que contemplem: recursos auferidos com aplicação do Instituto do Solo Criado e da alienação da reserva de índices.

A PLCL 035/21 altera, ainda, o inciso III do artigo 53-A e o parágrafo 5° do artigo 111 da Lei Complementar 434, de 1° de dezembro de 1999, que institui o PDDUA durante a administração de Raul Pont (PT). O artigo 53-A, que foi incluído pela Lei Complementar 646, de 22 de julho de 2010, na administração de José Fortunati (PDT), trata do Solo Criado.

O inciso III, original, diz: Solo Criado de Grande Adensamento, correspondendo a áreas adensáveis que podem causar impacto nos equipamentos e na paisagem urbana, sendo disponíveis nas Unidades de Estruturação Urbana (UEUs), conforme Anexo 6 desta Lei Complementar, e nos quarteirões liberados para adensamento pelo sistema de monitoramento da densificação, adquirido mediante licitação e aprovação de Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) para verificação dos impactos na infraestrutura e paisagem urbana.

O novo inciso III diz: Solo Criado de Grande Adensamento, correspondendo a áreas adensáveis que podem causar impacto nos equipamentos e na paisagem urbana, sendo disponíveis nas UEUs, conforme Anexo 6 desta Lei Complementar, e nos quarteirões liberados para adensamento pelo sistema de monitoramento da densificação, adquirido de forma direta.

O PL 035 revoga a Lei Complementar 850, de 17 de abril de 2019, da administração de Nelson Marchezan Júnior (PSDB), que trata também da Outorga Onerosa do Direito de Construir no município de Porto Alegre e cria o Fundo Municipal de Gestão de Território.

Audiência mínima

No início da Audiência Pública, o secretário municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm, fez um histórico sobre o tema em debate e a arquiteta Vanessa Henriques, coordenadora de Planejamento Urbano da secretaria, complementou com mais detalhes.

Após, somente o integrante do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) e presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil Departamento Rio Grande do Sul (IAB), Rafael Passos, questionou alguns pontos do projeto e um conselheiro do CMDUA foi favorável ao projeto da prefeitura. E nada mais.

Foi colocado em pauta para apreciação e deliberação na Audiência Pública exclusivamente os artigos 5º e 18° do Projeto de Lei. O artigo 5° trata da forma de cálculo do Solo Criado e o 18° diz que os recursos auferidos com a Outorga Onerosa do Direito de Construir serão depositados em fundos específicos relacionados com a política urbana de Porto Alegre.

Passos disse que em várias sessões do CMDUA lembrou da exigência legal de apreciação e deliberação sobre o inteiro teor do Projeto de Lei Complementar, por tratar-se de atribuição expressa em lei. “A deliberação apenas sobre dois artigos é certamente insuficiente.”

Segundo Passos, há outros artigos no Projeto de Lei que tratam tanto da metodologia de cálculo dos valores quanto da destinação dos recursos do Solo Criado, como por exemplo, os artigos 6º, 8º, 10°, 17°, 20°, e 23°, sem prejuízo de outros que porventura também tratem da matéria.

Especificamente no que trata do artigo 6º, ele acrescenta que o Projeto de Lei não revoga os dispositivos do Plano Diretor que tratam das competências do CMDUA, tampouco reforça a necessidade de aprovação dessa metodologia pelo CMDUA. “Neste sentido, nos parece fundamental que à oportunidade da regulamentação seja expressa a exigência de apreciação e deliberação pelo Conselho, sobretudo no que tange aos critérios que definirão o Fator de Planejamento.”

O artigo 14, conforme Passos, propõe que outros casos de utilização da Outorga como forma de incentivo ou isenção serão matéria de Lei Ordinária. “Novamente, como se trata de instrumento do planejamento urbano, portanto subjacente ao Plano Diretor, deve ser matéria de Lei Complementar, e não de Lei Ordinária.”

Segundo ele, o artigo 16°, por sua vez, procura abrir preocupante precedente ao prever a possibilidade de autorizar benefício do Solo Criado e capacidade construtiva superiores ao previsto no Plano Diretor, através de lei específica. “Ainda que tal artigo seja, a priori, vazio de sentido, pois remete a uma aprovação de lei futura, nos parece importante atentar-se para tal dispositivo proposto.

Os prazos previstos no artigo 17° para a utilização do Solo Criado (10 anos) parece demasiado amplo, conforme Passos. “Considerando que uma das justificativas alegadas pelo Executivo Municipal para acabar com o leilão para aquisição de potencial construtivo através da Outorga Onerosa seja a de ‘acabar com a especulação’, que alega ser promovida por aquela prática, nos parece descabido que o prazo de validade seja o dobro daquele previsto no Estatuto da Cidade, por exemplo, para dispositivos como usucapião, IPTU progressivo no tempo, entre outros.”

O artigo 23° cria o Fundo Municipal de Gestão do Território, onde serão depositados os recursos auferidos com o Solo Criado de médio e grande adensamento. “Primeiramente, cabe-nos ressaltar a perda de recursos para a Habitação de Interesse Social que a criação deste fundo promoverá, uma vez que deixarão de ser dirigidos ao Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social.  Além disso, tal fundo receberá recursos de outras fontes, o que poderá tornar-se de difícil controle o adequado uso dos recursos oriundos do Solo Criado na forma determinada pelo Estatuto da Cidade. Não seria mais adequado esse fundo ter seus recursos exclusivamente oriundos do Solo Criado?”, questiona Passos.

O parágrafo 3º do artigo 23° prevê a criação de um Comitê Gestor do Fundo, sem que defina sua composição e outras formas de participação da sociedade neste Comitê. O presidente do IAB lembra que cabe ao CMDUA (conforme Lei do Plano Diretor) a aprovação dos planos de aplicação dos recursos do Solo Criado (artigo 39°, inciso XIII da LC 434/99 e alterações posteriores), seja em que fundo estejam, logo, tal Comitê deverá se remeter sempre ao CMDUA, mas seria importante detalhar a sua composição e até mesmo incluir a representação de um ou mais membros do CMDUA no Comitê Gestor.”

Continua…