Rio Grande entre a plantation e o Ceitec

A promessa da ministra de Ciência e Tecnologia, Luciana Santos (PC do B), de que o processo de liquidação do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), localizado em Porto Alegre, será revogado nos primeiros dias do Governo Lula tem uma importância além do fato em si para o futuro do estado gaúcho.

Luciana disse à imprensa que a medida entrará no pacote de revogaços para invalidar medidas do governo Bolsonaro, pois é a única estatal do país que projeta e fabrica semicondutores. Considera que a liquidação do Ceitec é um crime contra o interesse nacional.

Hoje, a estatal está em processo de liquidação. No entanto, a liquidação está parada desde setembro de 2021, por decisão cautelar do Tribunal de Contas da União (TCU).

É interessante observar como as lideranças empresariais gaúchas mudaram de opinião sobre o Ceitec. Em 31 de julho de 2008, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou a lei que cria o Ceitec como empresa pública, passando a ser vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A cerimônia foi realizada no Palácio do Planalto, quando o então presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), Paulo Tigre, comemorou: “Este empreendimento faz parte da Nova Economia que o Estado vê nascer. A inovação e a tecnologia são as marcas da nossa futura história econômica.”

Em março de 2009, a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, inaugurou, em Porto Alegre, o Centro de Design no Ceitec. Entre as metas já estava a inserção do Brasil no mercado global de semicondutores, com a primeira fábrica de chips do País. Em seu discurso, Dilma avaliou que o Ceitec proporcionou uma nova matriz produtiva para o Rio Grande do Sul. “Muitas vezes, no Brasil, se considera transferência de tecnologia a vinda de uma fábrica para cá. Não é. Isso é fácil. O difícil é construir um centro de excelência capaz de gerar tecnologia própria. Os primeiros passos estão dados”.

Um ano depois, ao participar da inauguração oficial do Ceitec, em fevereiro de 2010, o presidente Lula destacou que um empreendimento desse porte mostra que “o Brasil voltou a gostar e a acreditar no Brasil. A gente não acreditava, não apostava na gente.” Em seu discurso, Lula dirigiu-se ao presidente da Fiergs, Paulo Tigre, como representante dos industriais gaúchos, pedindo que trabalhasse junto com o governo federal para convencer os empresários a acreditarem mais na inovação.

E a Fiergs acreditava. Em seu material de divulgação dizia: “A consolidação de um centro de tecnologia avançada nas áreas de semicondutores e microeletrônica faz parte das ações que vêm sendo desenvolvidas pela Fiergs. A entidade trabalhou fortemente e obteve a primeira vitória em 2000, quando foi criado o Ceitec.”

Realmente o projeto Ceitec começou a tomar forma em 2000, quando um protocolo de intenções foi firmado entre os governos municipal, estadual e federal, instituições de ensino superior e empresas privadas (incluindo a Motorola). Em 20 de abril de 2002 foi realizada a assembleia de fundação de uma associação civil que daria início aos trabalhos. Em 2005 iniciaram-se as atividades do Centro de Design, onde são desenhados os projetos de chips, nos parques tecnológicos da UFRGS e da PUCRS. No mesmo ano, também começou a construção do prédio de pesquisa e manufatura da futura empresa, localizado no bairro Lomba do Pinheiro. Portanto, era um projeto que envolvia amplamente o Rio Grande do Sul.

De repente, em julho de 2018, o jornal Zero Hora, do Grupo RBS, publicou um editorial com o título: “Ceitec: coleção de promessas”, com uma linha de apoio: “A criação de uma fábrica estatal de chips é, sobretudo, fruto da visão equivocada de que o Estado deve gerar riqueza, quando o papel deve ser o de não atrapalhar a livre-iniciativa”. Poucos meses depois, Jair Bolsonaro conquistou a Presidência da República. 

Em junho de 2021, Bolsonaro determinou a extinção do Ceitec. A recomendação pela extinção foi formalizada pelo conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), sob a alegação de que, apesar dos aportes, a estatal ainda depende de injeções anuais do Tesouro. O argumento era que a Ceitec tinha prejuízo de R$ 80 milhões por ano e consumido R$ 1 bilhão de recursos federais.

A presidência da Fiergs ficou em silêncio, assim como boa parte dos empresários gaúchos, que passaram a apoiar a financeirização em detrimento da produção, que representa uma alteração nas configurações do sistema capitalista. Por diversos mecanismos, aconteceram as transferências de riqueza da produção para os mercados financeiros, com o dinheiro ficando cada vez mais nas mãos de poucos, além da transferência das estatais às multinacionais, na periferia do mundo.

Naquele momento, quem se manifestou contra a possibilidade de extinção da Ceitec foi Ricardo Felizzola, empresário do setor de microeletrônica, CEO do grupo Parit, que reúne Altus e a coreana Teikon, e fundador da HT Micron. Para ele, a companhia cumpriu o papel de fazer com que o Brasil passasse a dominar o processo de produção de chips e ajudou a criar um ambiente que fez surgir outras empresas e formou mão de obra qualificada. Salientou que se investiu pouco. “Em qualquer lugar do mundo, se gasta de US$ 5 bilhões a US$ 10 bilhões”, disse à imprensa.

É verdade, o governo indiano – parceiro do Brasil no Brics – anunciou um programa de incentivo de US$ 10 bilhões para desenvolver um ecossistema de semicondutores no país. A China – também integrante do Brics – destacou os semicondutores como uma prioridade na iniciativa “China Manufacturing 2025”, lá em 2015.

No artigo “Por que defender o Ceitec”, em julho de 2020, Miguel Rossetto, ex-vice-governador do RS e deputado estadual eleito pelo PT, lembrou que o Ceitec, com os parques tecnológicos Tecnopuc e Tecnosinos, integra o ecossistema de inovação idealizado pelo Porto Alegre Tecnópole e atraiu empreendimentos como a HT Micron.

Segundo ele, produzir chips é difícil, exige curva de aprendizado e períodos de investimento e participação estatal, suportando déficits operacionais eliminados ao longo do tempo. EUA, China, Coréia do Sul, Taiwan que dominam esta tecnologia, percorreram este caminho. “Não fosse isto, Samsung, Huawei ou a Intel não existiriam. Aliás, se estes países asiáticos tivessem líderes como Bolsonaro, que quer fechar um programa da importância do Ceitec, continuariam como grandes campos de arroz.”

Neste ponto está o Rio Grande do Sul. Uma análise simples dos números deixa clara a opção do estado em exportar commodities, abandonando a retomada da industrialização.  Enquanto isso, o mundo desenvolvido está vivendo o momento da Indústria 4.0, também chamada de Quarta Revolução Industrial, que propõe a convergência entre os meios físicos de produção e a tecnologia da informação, como a Internet das Coisas, robótica, análise de Big Data, computação em nuvem, Inteligência Artificial e Realidade Aumentada, que necessitam de semicondutores. 

A opção de exportar commodities não é novidade no Brasil que, mesmo com governos neoliberais, têm uma organização econômica presa na transição entre o feudalismo e o mercantilismo. Ainda somos uma grande plantation, um modelo antigo em que se destacam quatro aspectos principais: latifúndio, monocultura, mão-de-obra escrava e produção voltada para o mercado externo.

 

 

4 comentários em “Rio Grande entre a plantation e o Ceitec”

  1. Esqueceu de contar que entre 2010 e 2018, o Tesouro Nacional repassou cerca de R$ 600 milhões à estatal. Mesmo com o recebimento de recursos públicos, a companhia registrou prejuízo acumulado, no mesmo período, de R$ 160 milhões. O Ceitec desenvolve chips para rastreamento de rebanhos de gado, identificação veicular, monitoramento de saúde e para o passaporte eletrônico, por meio de um convênio com a Casa da Moeda. No entanto, a companhia pública não alcançou o mercado desejado e sua produção resultou em vendas inexpressivas. Nos últimos 10 anos, o Ceitec recebeu da União mais de R$ 1,8 bilhão, dinheiro do contribuinte para, não sei hoje, mas em 2021 a empresa tinha mais de 180 funcionários. Só para informar aos jornalistas petistas, uma empresa com a mesma capacidade de produção do Ceitec, em Taiwan, opera com menos de 30 funcionários e gera lucro.
    “Nestepaíz” dos petistas, 46 empresas públicas consumiram R$ 190 bilhões do dinheiro meu, seu e de outros pagadores de impostos entre 2010 a 2020. Mas não é só isso. Só outra “empresa” gerada nos governos petistas , uma tal de Empresa de Planejamento e Logística (EPL) cujo objetivo inicial era implementar o trem-bala que faria a ponte Rio-São Paulo-Campinas. Mesmo antes de nascer, já recebera um mimo: o ex-presidente condenado a mais de 20 anos de cadeia afirmou que a União garantiria o financiamento de até R$ 20 bilhões ao concessionário do trem-bala via BNDES. A promessa de conclusão da obra ficou para 2016, quando o Brasil seria a sede das Olimpíadas. Rebatizada EPL no ano seguinte à abertura, teve suas funções ampliadas. Além de desenvolver o trem-bala, subsidiaria “o planejamento de outras modalidades de transporte”. Em 2013, o número de funcionários, que até então era 65, aumentou para 162 — na época, a empresa já acumulava uma dívida de R$ 1 milhão. Em 2014, ano do segundo mandato de Dilma, a EPL passou a abrigar 181 empregados, e assim o prejuízo alcançou R$ 20 milhões. No ano seguinte, apesar de algumas demissões, o saldo devedor foi para R$ 40 milhões. Em 2018, do Orçamento foram injetados R$ 64 milhões — quase metade para pagar os salários e encargos de 140 pessoas (cada um dos três diretores da estatal recebia R$ 29.274,26, enquanto na iniciativa privada a média para o cargo era de R$ 15.702,20). Passados doze anos desde sua criação, a estatal ainda não entregou o trem-bala, e nem entregará mas provavelmente essa “empresa”, hoje com 132 funcionários, que tem sede no Distrito Federal, estatuto definido e um orçamento de quase R$ 100 milhões por ano que produz quase nada e mal consegue pagar as próprias contas, servirá para abrigar sob seu teto mais algumas dezenas (ou centenas) de apadrinhados. Parece algo impossível? Sim, ma essa empresa existe – e quem a financia somos nós.

    1. Não sei qual empresa em Taiwan opera com 30 funcionários pra fazer chips, mas a TSMC tem cerca de 70 MIL funcionários. (Claro, é incrivelmente maior, mas é ridículo comparar a ÚNICA empresa que faz chips no Brasil com uma empresa onde já há um ecossistema dessas empresas formado).

      E é esse o ponto que tu perdeu do artigo: a CEITEC não é pra ser lucrativa; ela é um esforço incipiente de formação de um ecossistema que ainda não existe no Brasil. Taiwan gastou centenas de bilhões de dólares para formar esse ecossistema. A Coreia do Sul, idem. E agora a China está seguindo o mesmo caminho.

      Mas claro, de repente, pra bolsonarista, é melhor gastar esse dinheiro dando subsídio pra plantar soja.

      1. Prezado petista Lucas.
        Primeiro, você precisa crescer intelectualmente e aprender que nem todos aqueles que são contra os princípios marxistas, são bolsonaristas. Sei que é extremamente difícil para esquerdistas olhar à sua volta, afinal de contas, a viseira e o cabresto não permitem. Dito isto, há várias pequenas empresas em Hsinchu com número pequeno de funcionários fabricando chips para , principalmente, a TSMC e UMC. Dito isto, voltemos ao assunto em pauta, a fabricação de chips. Primeiro, o Brasil não tem requisitos para atrair fábrica de semicondutores.
        Falta de mão de obra qualificada, alto valor dos investimentos e demanda baixa das indústrias da região são alguns dos entraves. Segundo, o investimento na fabricação de microchips é “altíssimo” e a demanda na América Latina é baixíssima frente a países da Ásia, Europa e EUA. O Brasil não tem como competir com os mercados maiores. Não nos esqueçamos que perto de 60% da produção de chips hoje estão em Taiwan, e estes podem aumentar a produção do dia para a noite, inviabilizando investimentos em repúblicas bananeiras, principalmente aquelas governadas por criminosos condenados (caso do seu ídolo).
        Subsídio para plantar soja? Interessante, vou pesquisar à respeito, afinal, vários familiares meus produzem soja, trigo e milho no Paraná e no Mato Grosso do Sul. Ah, e eles não puxam o saco de governo algum pedindo dinheiro do contribuinte para abrir empresas públicas ineficientes geridas por incompetentes torrando o dinheiro dos contribuintes.
        No auge de sua receita, a Ceitec arrecadou R$ 7 milhões no ano, mas teve R$ 80 milhões de despesa. Ou seja, só obtém menos de 10% do que precisa para desempenhar suas atividades. É injustificado colocar R$ 80 milhões por ano para investir numa fábrica que depende cada vez mais de recurso público. De qual brasileiro, de qual política pública o governo vai retirar para continuar investindo no Ceitec?
        O problema é sempre o mesmo. Criam-se estatais ineficientes para gerar emprego para apadrinhados pendurarem seus paletós e quem paga sempre somos nós (você não…), os contribuintes, aqueles que realmente trabalham e geram riqueza para todos.

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