A saúde, ou a dinâmica do processo saúde-doença, é tema permanente em nossas vidas, do berço à sepultura. Não podendo evitar a morte, queremos viver com o maior bem estar possível, com autonomia, com força e potência criativa. O conceito da Organização Mundial da Saúde é muito mais um horizonte, uma busca, do que uma realidade: “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença.” (OMS).
Por essa definição, não teria ninguém completamente saudável. Mas a busca ativa de bem estar, em todas as esferas da vida de nós humanos, esses seres biopsicossociais complexos, nos levará para mais ou menos perto desse ideal inatingível (ou atingível apenas em alguns momentos da vida). Saúde seria o resultado de um processo social que expressa a maior ou menor qualidade de vida de uma população. É algo a ser pensado no âmbito do político, não somente individual. Daí o termo saúde coletiva, pois não há como ser saudável sozinho.
Os determinantes sociais da saúde, como acesso a trabalho e renda, à terra, à segurança alimentar, ao lazer, à educação, aos serviços em todos os níveis de complexidade, ao transporte público etc. são tomados como produto da ação humana em sociedade, a partir de sua perspectiva política, ideológica, cognitiva, econômica, organizativa e cultural.
O Sistema Único de Saúde foi uma conquista cidadã após muita luta, fruto de uma emenda popular na constituição de 1988. Ou seja, o povo conquistou a implementação legal da universalização da saúde, a partir da luta das bases comunitárias (associações de mães, de comunidades, movimentos sociais etc.), que se uniu aos intelectuais da área da saúde, como David Capistrano, ou Sérgio Arouca, que foi Secretário Estadual de Saúde do Rio de Janeiro e presidente da Fundação Oswaldo Cruz, e tantos outr@s.
De lá para cá, aumentamos a expectativa de vida*, diminuímos a mortalidade infantil, programas como a Estratégia de Saúde da Família entraram interiores adentro, melhorando os índices de saúde do país a cada ano. O SUS abrange desde o simples atendimento ambulatorial até o transplante de órgãos (cerca de 95% desse tipo de procedimento é feito pelo SUS, porque coisa cara os planos privados não gostam de bancar, não!) garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. São milhões e milhões de procedimentos em todos os níveis de complexidade, e sabemos que uma atenção básica universal bem feita previne que as pessoas cheguem aos níveis mais altos que são mais caros e exigem tecnologia pesada dentro do hospital.
O SUS tem muitos problemas, evidentemente, como o sub-financiamento e profissionais despreparados e não identificados com seus princípios filosóficos; mas sempre foi boicotado, atacado, só se ouve falar mal dele na mídia. Nesse exato momento, temos um ministro interino da saúde cuja campanha política foi financiada pela Amil, um plano privado!
Segundo a revista Época, que não prima pelo apoio aos interesses públicos, mas até ela admitiu que o maior doador individual da campanha de Ricardo Barros (recém-nomeado ministro da Saúde) para deputado federal pelo Paraná em 2014 foi Elon Gomes de Almeida, sócio do Grupo Aliança, administradora privada de benefícios de saúde. E aos planos privados não interessa um SUS bem financiado e forte.
O SUS é uma política de Estado, não de governo: é constitucional, qualquer governo que entrar tem de mantê-lo em funcionamento. Cada governo desenvolve os seus programas e projetos, as políticas de governo; mas as políticas de Estado são contínuas e como exemplos temos a merenda escolar, o ensino fundamental obrigatório, o sistema de saúde pública. Ah, claro que Ricardo Barros é investigado por corrupção, todos os “quadros” do governo interino o são. Parecem escolhê-los pela ficha corrida, não pela competência ou identificação com as áreas de atuação.
O ex-ministro da saúde, médico sanitarista José Gomes Temporão, disse em entrevista à Carta Capital que em um país desigual como é o Brasil, com 80% da população dependendo do SUS, é totalmente irreal imaginar cortes ou que uma medicina privada possa substituir o sistema público.
Eu pessoalmente acredito que uma gestão pública responsável trataria de pensar em como financiar o SUS, e não em deixar de financiá-lo por falta de recursos. Mortes evitáveis acontecerão em massa se isso for levado a cabo, constituindo um crime de enorme gravidade. Infelizmente, no Brasil, o preconceito/ódio de classe é tanto, que se as mortes forem entre os pobres e periféricos, parece que isso “importa menos”. Os estratos socioeconômicos mais baixos, tidos como “classes perigosas” (êita país cheio de mitos irreais, esse nosso!
O que tem de bandido realmente perigoso em classes abastadas…) afinal, são consideradas descartáveis. Nas favelas, nas periferias, moram os sub-humanos na opinião de boa parte dos brasileiros. Tão distantes do povo estão, que passam a ter medo dele. Vivem entre shoppings centers altamente vigiados (onde os pobres não são bem vindos, como vimos no recente fenômeno dos rolezinhos), restaurantes caros, suas casas e seus locais de trabalho.
Andam pouco na rua, e jamais nas periferias. Apavoram-se cada vez que eu conto que subo favelas, visito periferias, faço pesquisa e participo de festas em bairros periféricos. E, pasmem, nunca me aconteceu nada de ruim nesses lugares, sabem por quê? Porque 99% das pessoas que lá residem são honestas, trabalhadoras e inacreditavelmente resilientes. Sempre fui bem acolhida e tenho bons amig@s nesses lugares.
Mas voltando à saúde, nosso tópico central nesse texto, continua o ex-ministro Temporão, na entrevista publicada em 23/05/2016, a falar que todos os brasileiros usam o sistema público de saúde. Seja para transplantes, tratamento de doenças crônicas, medicamentos de alto custo, vacinas, vigilância sanitária e epidemiológica, atendimento de emergência (SAMU), entre outros, os serviços de saúde pública chegam a todos nós.
Uma política nacional de saúde vista com olhar integrador e global, deveria dar conta dos dois subsetores: o público e o privado. Trazer a racionalidade do mercado para o SUS seria o seu fim: saúde não é mercadoria, é patrimônio de bem estar de uma população, de indivíduos e coletivos! Cortes de financiamento do SUS nesse momento trarão um impacto terrível na oferta de serviços e acessos, justamente em uma recessão econômica, em que aumenta a vulnerabilidade social e mais gente precisa utilizar o sistema. Sim, é assassinato: pessoas vão morrer de mortes evitáveis, por decisão política de gente irresponsável e criminosa. Dando uma de Émile Zola, eu acuso os irresponsáveis que querem acabar com o SUS de crime de lesa-pátria, de crime contra a humanidade.
Urge formar profissionais da saúde com sensibilidade social, com visão de amplo alcance, com foco na saúde pública. Urge incluir Medicina de Família e Comunidade na estrutura acadêmica dos (geralmente conservadores) cursos de medicina. Procuro fazer a minha parte com a atuação nas graduações de saúde da UNISINOS, na disciplina de Saúde na América Latina.
Num trabalho em aula, com estudantes de várias graduações da saúde, propus trabalharmos com nossos conceitos próprios de saúde, nossa visão pessoal do que ela significa. Também elaborei o meu, para estimular os estudantes. Ficou mais ou menos assim: O meu conceito de saúde, no âmbito individual, é sentir-se forte o suficiente para enfrentar a vida e seus desafios; é não ter dores físicas, mas se tiver alguma crônica, é saber lidar com elas do modo mais natural possível; é manejar com sabedoria as dores emocionais ou da alma; é não ficar indiferente ao sofrimento de ninguém; é ter capacidade de empatia com o outro, ajudar e ser ajudada, vivenciando a reciprocidade; é não desistir de tentar construir uma vida melhor, um mundo melhor, de lutar pela justiça; é não perder a capacidade de se indignar com a injustiça; é amar e ser amada; é ter um corpo que interage de modo sensível com o mundo e com as pessoas que ama, sabendo “ouvi-lo” e respeitá-lo (incluindo seus limites).
Viver numa comunidade forte, solidária e constituída sobre bases de justiça social, também me parece vital para sentirmos que estamos saudáveis e bem integrados com as alteridades de convívio. Disso faz parte um modelo de cidade inclusivo, no qual impere a valorização da cultura e a ocupação democrática dos espaços públicos.
Precisamos de participação da população nas decisões do poder público, na saúde, na educação, cultura e demais esferas. Tivemos, a partir de 1988, um momento político de ampliação de direitos; contudo, esta jamais foi unanimidade no Brasil. Forças conservadoras sempre agiram contra a implementação dos direitos civis e cidadãos, que sequer são os do socialismo, mas sim os do liberalismo dos séculos XVIII / XIX / XX: liberdade, igualdade, fraternidade.
Direitos civis, direitos sociais, econômicos e culturais. Direito a votar e ser votado/a, à livre expressão e manifestação; direito a trabalho e renda dignos, à saúde e educação; direito à autodeterminação dos povos, a viver em paz e ter o meio-ambiente preservado. Portanto, precisamos ainda lutar pela organização e mobilização da sociedade civil, fazendo a defesa do SUS nos conselhos de saúde e pressionando por mais democracia e mais direitos sociais!
Lamentavelmente, com o quadro político que se instaurou no país, precisamos lutar pelo que já é, para não perdermos direitos a duras penas conquistados. Lembrando os versos da Marselhesa, mas adaptando-os ao pacifismo que me caracteriza, convido @s amig@s a formar batalhões de defensores das políticas públicas cidadãs, da reforma sanitária, da educação de qualidade. Nossas “armas” são a livre e pacífica manifestação pública, as ocupações e a pressão contínua aos usurpadores do poder. Não passarão! Aux armes citoyens! Formez vos bataillons! Marchons! Marchons!
*Diferença de expectativa de vida, em 2016, por estado brasileiro (as desigualdades percebidas nesses dados ficam para uma próxima coluna): Rio Grande do Sul: 75 anos; Santa Catarina: 75,3 anos; Paraná: 74,1 anos; São Paulo: 74,2 anos; Rio de Janeiro: 73,1 anos; Goiás: 71,4 anos; Mato Grosso do Sul: 73,8 anos; Mato Grosso: 73,1 anos Maranhão: 67,6 anos; Piauí: 68,9 anos; Ceará: 70,3 anos; Rio Grande do Norte: 70,4 anos; Paraíba: 69,0 anos; Pernambuco: 68,3 anos; Alagoas: 66,8 anos; Sergipe: 70,0 anos. (Fonte: FREITAS, Eduardo De. “Expectativa de vida dos brasileiros”; Brasil Escola, baseado em dados do IBGE. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/brasil/expectativa-vida-dos-brasileiros.htm>. Acesso em 13 de junho de 2016).
Mais um texto maravilhoso.