Luiz Eurico Tejera Lisboa (Ico)

Luiz Eurico Tejera Lisboa (Ico)

Luiz Eurico Tejera Lisbôa, conhecido como Ico, nasceu em Porto União (SC), em 19/01/1948, mas desde criança viveu no RS, em Caxias e Porto Alegre. Ao se intensificar a luta contra a ditadura, na década de 60, Ico liderava – com outros companheiros – o movimento estudantil secundarista, através da União Gaúcha dos Estudantes Secundários – UGES. Em novembro de 1969, foi condenado pela LSN a seis meses de prisão pela tentativa de abertura de entidade ilegal, no caso o Grêmio Estudantil do Colégio Julio de Castilhos. Como militante da ALN, fez treinamento em Cuba a partir do final de 1970 e regressou ao Brasil em 1971, no auge da repressão política. Em setembro de 1972, foi sequestrado e desapareceu em São Paulo. Em agosto de 1979 a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, onde sua esposa Suzana Lisboa teve papel protagônico, anunciou o achado de seu corpo, sendo o primeiro dos desaparecidos localizado, enterrado com nome falso no Cemitério Dom Bosco, em Perus (SP). Somente em 2012, uma análise dos peritos da Comissão Nacional da Verdade, atestou que foi assassinado, contestando a versão oficial de suicídio. Em 1993, foi publicado o livro Condições Ideais para o Amor, com poesias e cartas resgatadas por seus familiares. Em 1999, nova edição do livro, com editoração de Nei Lisboa, apresentação de Luiz Pilla Vares e texto de Noeli Lisboa.
 
Tempo Novo
Há um Novo Tempo
De novas coisas!
Todos sabem
A mudança é irreversível
Mas as velhas formas
Não cedem sem um último gesto
De desespero.
O importante é persistir
Confiar na vitória do Povo.
Avancemos
Seguros
Passo a passo.
Pois a história não se volta
Sobre sí mesma
É uma espiral infinita
Que nada consegue deter!
Porto Alegre, 11/6/66
 
Liberdade
Há um povo que sofre
Há um povo que geme
E há outros
Como eu
Que embora
Saibam desse sofrimento
E ouçam esses gemidos
Não sofrem
E não gemem.
Ah prisão de minha classe!…
Amarras de minha família
Cordames de meus vizinhos
Tendões de meus amigos
Redes de meu lar e minha escola
Todos! Todos eu rompi.
E encontrei melhor família
Na fraternidade universal
Melhores amigos
Nos companheiros de luta
E dei sentido à vida
Ao lado dos que sofrem
E dos que gemem
Ah! Prisão de minha classe…
Pouco a pouco
Aumenta a brecha de teus muros
Pouco a pouco
Encontro a minha LIBERDADE.
Santa María, 15/2/67
 
Procuro o Homem do Povo
Procuro o homem do povo
o proletário
o camponês
o assalariado
Procuro o homem do povo
o explorado
famélico
desabrigado
o que dorme na mansidão
do não saber.
Procuro o homem do povo
para ultrapassar a frieza
do vocabulário político,
e ver na “massa oprimida”
nas “contradições sociais”
na “luta de classes”
nas “análises da realidade”
o homem do povo.
Renuncio à Revolução calculada
milimétrica e friamente
no racionalismo tecnicista
dos “cientistas”
da transformação social.
Hoje
procuro o homem do povo.
quero além da ignorância
além da fome
além do frio
o homem que se consome
nessa dor.
Quero as mesmas contorções
de suas entranhas
sem alimento.
as mesmas chagas
de seu corpo maltratado.
As mesmas lágrimas
o mesmo sofrimento
a mesma angústia
de não compreender.
Hoje
quero ser um homem do povo.
Viver por um día
as estatísticas
dos levantamentos do Partido.
Fugir por um momento
ao jargão, ao palavreado
e chegar ao real.
Quero uma mente rústica
que até mesmo creia em Deus
e outras divindades.
Quero um corpo dorido
e um olhar sem luz
perdido languidamente
no incompreensível.
Quero vender meus braços
sufocar minha voz
amordaçar-me
crucificar-me todos os días.
Hoje
serei um homem do povo
porque necessito
mais do que os dados minuciosos
mais do que a ciência.
Busco o sofrimento
naquele que sofre
para amá-lo
acima dos pronunciamentos políticos
para que nasça em meu peito
o ódio incontrolável
que dê força às minhas mãos
e torne certeiros os meus golpes!
Procuro o homem do povo
porque recuso
a mistificação revolucionária
dos gabinetes.
Porque necessito
Paixão em minha luta
entusiasmo em minha voz
firmeza em meus passos
amor a meu povo
e fé na sua vitória.
18/4/68
 
Patos azuis em meu pensamento
Patos azuis selvagens
dos grandes lagos
pousaram resvalando
na limpidez de meu pensamento
esta manhã
as águas se abriram
silenciosas, ternas
como uma mulher que ama.
espadanar de espumas
carícias de luz
paraíso de cores
verdes planícies
das cobiçadas terras do sul
estive preso num iceberg
navegando no
mar das Antilhas
ao longo da ilha de Cuba
Ah!… doce calor
que me liberta…
as águas engolem as águas,
meus olhos se abrem,
caem os últimos cristais de gelo,
movo lentamente
os membros entorpecidos,
saboreando a surpresa
desta exótica liberdade
milhares, milhões
de patos azuis selvagens
dos grandes lagos
pousaram resvalando na limpidez de meu pensamento
esta manhã.
1968/1969
 
Noite singular
Dos limites do mundo
Eu espiava as coisas humanas.
Tu chegaste no seio da noite
E me levaste à outra margem.
Juntos na escuridão partimos,
Teu coração palpitante,
Meu coração palpitando,
Lado a lado
Na unidade natural de nossos caminhos.
Os grandes ventos da noite
Agrediram nossas faces
Mas nós seguimos
E nossas mãos se enlaçaram.
Os grandes ventos da noite
Agrediram nossas faces
Mas nós sorrimos
E nossas almas
Se inundaram de ternura.
 
Singular instante de tristeza
Há na simplicidade do teu gesto
um aceno inexplicável para mim,
na limpidez do teu olhar
há um momento turvo
que não posso comprender.
E o teu sorriso se torna
às vezes
sério
sem que eu saiba o porquê.
É verdade…
conheço todos os caminhos
do teu corpo.
Mas ignoro as trilhas misteriosas
De tua alma de menina e de mulher.
E embora eu te ame
e eu te deseje tanto
há nessa felicidade sem par
um instante singular de tristeza.
 
19 de janeiro
19 de janeiro
19 anos
Só.
19 de janeiro
e eu choro
de saudades
do Bolão
do menino sardento
sempre no 1º lugar
do gurizinho briguento
que ia pra rua
de bodoque
enfrentar a espátula
do filho do vizinho
do menino que tinha
um sonho encantado
uma menina linda
de rabo-de-cavalo
e fita na cabeça.
Saudades do Bolão
tão tímido que chorava
envergonhado
do apelido
que eu hoje
mergulho no tempo
só pra ouvir novamente.
Do Bolão que jurou ser
“um grande herói”
-“um dia”.
Do “campeão” de botão
Do “chutador” de sorvete
Do Bolão mentiroso
Que aos 15 anos
Já tinha mil casos de amor.
19 de janeiro
19 anos
Só.
Quanta saudade!…
 
Balada de Ham-Li
Na pequenina aldeia
de Luang-Dinh
um menino
de pele amarela
e olhos rasgados
está
silencioso
deitado no chão.
Seu nome
Ham-Li.
As mãos
as pequeninas mãos
de Ham-Li
estão crispadas
retorcidas
por uma grande dor.
Os pequeninos braços
fortes de Ham-Li
– menino camponês –
estão descarnados
e já se decompõem.
A pequenina face
de pele macia
onde brilhavam
os negros olhos rasgados
o menino Ham-li
escondeu-a no ventre aberto
para que o mundo
não visse tanto horror.
Mas ao pequenino coração
do menino Ham-li
o napalm
não poderá jamais atingir!
Entre os escombros
da pequenina aldeia
de Huang-Dinh
um menino
de pele amarela
e olhos rasgados
está
silencioso
deitado no chão.
O pequenino coração
pulsa
inalterado
sobre todo o Vietnã.
 
Longa a Marcha
É longa a marcha
– camarada –
As sombras envolverão
nossos passos mudos
em eterno caminhar
O inimigo se aproxima
e já nos alcançam
os ruídos cautelosos dos seus batedores.
Avancemos
Não se trata
simplesmente
de nossas vidas
– camarada –
Essa verdura
esse andar
sem fim
já nos deram
a medida
da nossa pequenez
É a chama que
devemos
manter acesa!
Ela ainda é tímida
incerta
bruxuleante
O dever é protegê-la
alimentá-la
eternizá-la
ela é o coração do povo
que inicia a palpitar
Dantos e Bustos
lhe ofereceram
em holocausto
a própria liberdade
Ramon entregou-lhe
a vida em Camiri
sem hesitar
O sangue de Bolívar
e San Martin
verteu em Bolívia rebelde!
E a chama agigantou-se
no peito ardente do povo.
 
À Camarada que Fica
Adeus. Doce amada.
É preciso partir.
Seguirei tranquilo por outros caminhos
pois nosso andar
busca uma mesma pousada.
Breve descansaremos na Rubra Aurora
de nosso Povo.
Mas preciso confiar-te
que dou às cegas muitos dos meus passos largos
que são frágeis as minhas pernas
e muito dura a jornada.
Só em teus olhos encontrarei a luz
Que iluminará meu caminho.
No mais profundo do teu ser
fortalecerei meu corpo,
firmarei meus passos,
acumularei energias
para o desafio do presente.
Em tuas mãos aquecerei as minhas
para enfrentar o rigor dos tempos.
E se algum dia
– meu anjo lindo –
novo amor florescer em tua vida
ainda assim
pensa sempre em mim
com carinho
porque estarei pensando em ti
e estarei sozinho.
Junho/1968.
 

Luiz de Miranda

Luiz de Miranda

Poeta nascido em Uruguaiana (RS) e já com mais de 48 anos de carreira literária, tem 41 livros publicados. Premiado em diversos países, tem uma carreira poética consagrada, onde se destacam as obras Quarteto dos Mistérios, Amor e Agonias, Trilogia do Azul, do Mar, da Madrugada e da Ventania, Trilogia da Casa de Deus, Canto de Sesmaria, e Nunca Mais Seremos os Mesmos. Miranda participou da luta armada contra a ditadura militar. foi preso em Uruguaiana, em 1969, e no Teatro de Arena, em Porto Alegre, em 1971. Mesmo caçado pela polícia política dos militares, participou em São Paulo de ações da resistência democrática.
Artefatos para cumprir a vida
I
Nasci em Uruguaiana
com todos os benefícios da memória
O rio Uruguai é o mar de infância
pendurando no rosto
a fuselagem de meus ossos
II
Quando indaguei
no transe das coisas íntimas
agora prendo nelas o tambor do meu desejoas fatias desprovidas destes dias
Quanto dói a lonjura
que fecha nossa infância
e mais se sabemos rompido
o caminho da lembrança
III
Onde tenho a injustiça
me detenho
não há entrave no meu canto
e canto (prova mais dura
de ser presente – não aparente)
o que resiste e sem demora
veste a roupa de sua hora
Para tanto
asilar as dores de cabeça
em carreiras
despedir dos relógios
a despedida
ser de resguardo
nos guardados
da esperança
Asilar o primeiro amor
o coração desabitado
e nesse arredo
suspender dos meses a solidão
arredar o medo
sem o segredo do transporte
ao visto vigiá-lo
como pedaço do próprio corpo
IV
Em todos os nortes e ventos
disponho os trastes inábeis
já auferi a vida outro trajeto
e abandono de vez
a ressaca dos domingos
Haverá quem pergunte
coisas mais solenes
haverá quem indague
no branco das camisas
nas gravatas e sapatos
minha altivez
Não isso não
a vida é corredor sem regresso
derivando derivando
aonde se abandona
o mofo do regime
V
Ah! uma canção
lonjura de pó
nas paredes que me cobrem
Tanta morte enfeixa
minha camisa de brim
que morrer faz a diferença
na distância
onde meu sonho se anuncia
Tanta morte equilibra no meu ombro
no lado esquerdo
onde escondo o pensamento
que viver é ir com todos
sem nunca se perder
VI
Na linha do horizonte
a justiça equilibra seu pronome
é deveras distante
é deveras enrolado ao falso de seu nome
nos documentos vigentes do sistema
A justiça é porto seguro
represa de vento
onde desembarcamos a vida
é porta operária
onde o tempo é arma acesa
e fantasma
VII
Onde tenho a injustiça
me detenho
Sou desembarcado
não por desejo
nos domicílios de mil novecentos
e setenta e dois
num abril que resseca minha idade
Sou desembarcado
e desde muito
teço junto aos irmãos
nova rede nova arma
Não exaspera minha descida
nesta hora
aprendi do caminho
como a serpente
o veneno de si mesma
Aprendi não de repente
a rebeldia elementar
e nos seus volumes cinzentos
fundei minha casa
Golpe a golpe
desmembramos o dia
o difícil instante
onde fundamos nossa casa
VIII
A vida é o trajeto vivo
cumpre movê-la
suspendendo nos dentes
o mal nascido
mas até amanhã
onde até dezembro
colocar a mão desprovida
o coração maduro que despencou?
O amor
ainda censurado
é permitido às palavras
nelas fazemos muradas e abrigos
em dia de boa paz
o roto amar da vida
Onde antes que a noite
permita todo seu pasmo
colocar o sal e a pólvora
e tristeza e as horas
roubadas dos relógios?
IX
Ah! canção para cumprir a vida
sempre adiada
artefato de sonho
para cobrir o que me falta
o que me resta
Todo o desigual
é uma distância sem perdão
e mofa em nossos olhos
 
In memoriam
A selva
salva
o peito
da bala.
A fala
da bala
estala
na selva.Fuzis carregados
carregam os homens
que morrem sem nome
no meio da mata.
Guerreiro
Guerrilha
Guerrilheiro
teu grito de selva repousa nas praias
teu gesto de luta dorme na história
Um homem sem pátria
dentro da noite arrasta
medalhas e glórias
da sala
sem bala
Coragem
couraça
da raça
A praça é livre
a selva é densa
não morre a crença
de um homem forte.
As garças já partiram
no sopro curvado do meio-dia
– quando um homem morria
O horror do mês presente
cospe dos montes frases de pedra
– quando um homem morria
A noite espreita o barraco
e a mulher grita o filho
– quando um homem morria
Cruzou a noite na ciranda estrelada
rumou para os campos do sem fim
na sua túnica de madrugada
levando no peito
um preito de luta
era Che Guevara que já não escuta
Fuzil
fusão
da mão
– em terra e sangue
Dormiu nos montes
e sob pontes
a terra seca comeu-lhe o rastro
a guerra louca comeu-lhe o corpo
Madrugada abriu seu manto
guerreiro abriu seu canto
madrugada já se foi
guerreiro também foi
num carro de boi
para a terra que Deus dará.
A morte é absoluta
em Che Guevara que já não escuta.
 
Ponto de Partida
A Alceu Valença
Não sonharei o impossível
nem aurora
a luz vem luzindo
sua desesperada agonia
o passado move
sua chuva de caspa e cinza
Não me queiram cordato
sou sempre o reverso
o horizonte inacabado
quando me julgam morto
renasço com os caídos e mato
para morrer de novo
à lucidez das palavras endurecidas
Alerta, neste quarto emprestado
à beira do coração
me sustento de miudezas
substantivos, verbos, adjetivos
complementos do cotidiano
e construo a esperança
como quem se salva
para salvar
Alerta na pampa
casa e coração
cinza no osso da dor
cinza no rosto do amor
arsenal da solidão
arreios da vida inteira
Não sonharei o impossível
revoa a angústia
como pássaro sem prumo
nossos mortos, nossa morte
escuro silêncio
espaço sem ar
desequilibrando no céu
o algodão das palavras
Desequilibrando no céu
as aves de pouso alto
o alarme geral
das armas e das canções
Desequilibrando, desequilibrando

José Luiz Braga Mauricio

É licenciado em Estudos Sociais pela UFPel, ex-operário e ex-estudante de Medicina e de Enfermagem. Pelotense nascido em 1944, teve sua vida marcada pela ditadura civil militar brasileira. Sua experiência política e as sequelas sofridas pelo terror da ditadura marcam fortemente seus textos. Foi militante do PCB, mais tarde do PCdoB e da FARP- Força Armada Revolucionária Popular, de Pelotas (RS). Depois de ter sido preso pelo Departamento de Ordem Política e Social – DOPS, em dezembro de 1966, seu sofrimento psíquico aumentou, atingindo a culminância depois da segunda prisão, em 1967. Tem um livro publicado – Viva a Liberdade! – de 1992, e recebeu o Prêmio de Literatura João Simões Lopes Neto, edição de 1987. As duas balizas que ajudam a manter vivo este ex-suicida são o amor de sua esposa – a artista plástica Seli Maurício – e a poesia.
 
Circunstâncias
Havia virilidade demais… e isto era uma ameaça!
Havia risos demasiadamente felizes
e isto destoava com a coerção reinante.
Havia palavras, muitas palavras… conversas longas…
e sem fim… cheias de pausas e de medos!
e de arrepios… e isto era suspeito
Havia Amor e isto foi demais: a malícia, a intriga e a inveja
levaram seu recado ao ciúme
que decretou a abertura da caixa de Pandora
e, então todos falaram e gritaram ao mesmo tempo
e a indignação acendeu o fogo das faces
e se esbofetearam e se condenaram mutuamente
ao degredo perpétuo.
Desde então a monotonia tomou o lugar dos jogos
e o tédio tornou-se um muro seguro
contra qualquer tentativa de novas amizades.
daquele tempo
 
Estou quieto
Estou quieto, muito quieto,
insatisfeito, embora, e aí vêem as doses
[bestificantes;
Isto não é uma poesia, isto é uma confissão de derrota:
não querem, não permitem que eu me defenda
não querem, não permitem que eu me defenda
não querem, não permitem que eu me defenda
não querem, não permitem que eu me defenda

Jorge Fischer

Nascido em Porto Alegre, em 1955 ingressou no Batalhão de Choque da Polícia do Exército. Sofreu duas prisões, em 1965 e 1970, sofrendo sevícias de todo tipo, ministradas por colegas. Condenado em 1967, a partir de 1970 cumpriu diversas penas, quando escreveu poemas, crônicas e desenhou cartuns satíricos colados nas paredes dos xilindrós por onde passou. Conhecido por seu humor, publicou uma dezena de livros, onde se destacam “O riso dos torturados” e “Mulheres de Atenas”. Como meio de vida, Jorge Fischer “Fishão” Nunes ambulou por diversas cidades, notabilizando-se como cartunista erótico.
 
O Dia da Independência
Ah, falam tanto no Dia da Independência
Marcham os soldados, batem continência:
“Um viva ao general! Um viva ao Coronel! “
Os ínclitos tribunos assomam ao palanque
e leêm “de improviso” discursos no papel.
Há tanques pelas ruas
e os velhos generais
costumam esquecer
o crônico artritismo:
brandem espadas nuas
em gestos de heroísmo
e juram lealdade a deus, à pátria e aos pais.
O louro e sorridente embaixador ianque
confraterniza com a “nação amiga”.
Mas, entre a multidão, resmunga um operário:
“Que gringo de uma figa,
que gringo salafrário!”.
Além, de pé, entre o povo, palpita uma comadre.
Não vai embora: aguarda a benção do “sêo” padre.
E quando, enfim, assoma, redondo como um zero
o quengo tonsurado – o símbolo do clero –
as santas mãos cruzadas sobre a proeminência
do ventre romboidal – um poema de indecência –
a boca a mastigar a frase decorada
deitando falação –mas sem que diga nada –
na fria objurgatória do seu latim de festa,
é o triunfo!, é a apoteose!, é a benção clerical
que, mais que tudo, atesta
que Cristo está de bem com nosso general.
Depois, a tal comadre, com ar bem satisfeito,
retira-se: já viu o padre e até o prefeito
e o louro e sorridente embaixador ianque.
À tarde, quando for lavar roupa no tanque,
há de esquecer a dor das crônicas varizes,
sentir-se-á a mais feliz de todas as felizes
e dirá consigo mesma, redonda de alegria:
– “Ah, tudo foi tão lindo! Isto é que é democracia!”
O Sete de Setembro, de fato, é bem festivo:
tem muito carnaval, tem muita alegoria.
Mas…Dia da Independência, meus camaradas?
Quando é que vamos marcar este dia?

Jaime Walwitz Cardoso

Nasceu em Bagé no ano de 1948, filho de José Ferreira Cardoso e Cecy Walwitz. Foi sequestrado e condenado em 1969 por haver participado do movimento de resistência à ditadura, escrevendo poemas durante a prisão. Banido do Brasil em 1971, foi expulso do Chile em 1973. Exilou-se na Suécia onde publicou seus primeiros poemas e participou de diversas iniciativas de divulgação da cultura brasileira. No livro Domínios, retoma a atividade literária após sua volta ao Brasil com a Anistia de 1979.
 
Cinzas
A chama desaparece,
Mas a luz e o calor resistem:
Brilha a estrela morta,
A brisa dormida ainda aquece.
Com correta medida,
Rigor e precisão,
Sempre algo se descobrirá,
Em meio ao frio e à escuridão,
Da luz e do calor, da vida.
 
Sintomático
A poesia
tem se preocupado muito comigo
Há um olhar úmido
Ensimesmado
Refletido nesta página
Tenho resistido ao sono
Parece que ganhei
Súbito medo
De mim mesmo.

Guillermo Rallo

Guillermo Rallo

Nascido em Montevidéu, começou a trabalhar com 15 anos e logo participa do movimento sindical, colabo­rando no jornal Época. Militando na resistência armada, é sequestrado em 1972, ficando 12 anos sob prisão. Em 1973 escreve uma coleção de poemas, publicados em 2014 como Cantos de amor y dolor, com ilustrações do colega de cárcere Elbio Ferrario. Reside em Porto Alegre há vários anos.
 
Hierro…
Hierro
cemento y hierro .
hierro
cemento y hierro
por todos lados .
Arena y hierro
y cemento y hierro
por todos lados .
Hierro
por arriba
hierro
por abajo
y cemento.
Cemento adelante
y atras,
y a derecha, y a izquierda,
y arriba
y abajo
y adentro,
adentro
estamos nosotros,
y adentro
estoy yo!
 
El tiempo sigue adelante…
El tiempo sigue adelante
con su marcha inexorable
(y yo aquí…)
y en los diarios
o las radios
el mundo vuelca
miles y miles
de noticias cada dia,
susesos que conmueven
al orbe
o simples chimentos
de la aldea
(y yo aqui…)
hay casamientos,
nacimientos ,
cumpleaños ,
muertes,
risas,
llantos ,
huelgas ,
conflictos ideológicos ,
guerras ,
armisticios ,
hambre ,
abundancia,
siempre mal repartida
(y yo aqui…)
tantas cosas por ver,
por conocer,
por vivir,
por llorar,
por palpitar
( y yo aqui…)
 
Cruzó la paloma …
Cruzó la paloma
en la noche
la reja de mi celda,
volo a traves
del horizonte sin nombre
de mis sueños
y llegó hasta ti
con un mensaje en el pico
mi amor.
 

Guilem Rodrigues da Silva

Guilem Rodrigues da Silva

Resistente à ditadura, foi refugiado político em Montevidéu durante dois anos, sendo o primeiro asilado da América Latina na Suécia em 1966. Condenado à revelia em 1968, participou ativamente dos trabalhos de solidariedade à América Latina em Lund – Suécia, sendo eleito vereador e Juiz do Tribunal de Contas do mesmo município. Escritor de 15 livros, escritor de letras de canções, tradutor de peças teatrais para o Teatro Real de Estocolmo, tradutor de vários filmes do português para o sueco e vice-versa, e tradutor de poemas do francês para o português. Detentor de inúmeros prêmios na Suécia e na França, entre os quais ”Pour l´ensamble de ses oevres poétiques” Université de La Sorbonne e ”Medaille de la Academie des Arts Sciences et Lettres” em Paris, recebeu da Prefeitura de Rio Grande (RS) o título de Comendador da Ordem de Silva Paes.
 
A jaula
Hoje é o aniversário da solidão
Sem alegria nas faces maceradas
As roupas da prisão rasgadas
Em seu mundo de doze metros
De distância por doze de largura
E um longo corredor ao sol
Sol que nasce às três horas
E morre às quatro horas
Hoje faz aniversário a solidão
Sem alegria nas faces da tristeza
Ninguém na Ilha das Flores
Atreve-se cantar à liberdade
Inúmeros olhos famintos
Esperam que o vento sopre
O vento é livre
Ninguém pode obrigá-lo a confessar
Nem pode ser torturado
Mesmo que sopre da esquerda
O tétrico alfaiate chega
O indescritível alfaiate
Que procura fazer uma veste
De prisioneiro para o vento…
(música de Georg Riedel, o compositor vivo
mais conhecido da Suécia)
 
Claros sonâmbulos da noite
Mulher amada, nós os que saímos
Te queremos mais do que tu pensas
Na ausência
Temos seguido de perto
Tuas tristezas
Tuas poucas alegrias
Na distância
Temos estado presentes
Dormindo duramente em cama alheia
Nunca nos acostumamos
Aos arames farpados das fronteiras
À falta dos sabiás e das palmeiras
Saudade é para nós mais que palavra bela
Contém inverno céu cinzento branca neve
Olhares esculturados nas janelas
Somos claros sonâmbulos numa noite longa
Voltando sempre à tua cama
Mas ao chegarmos perto
Quase tocando teu seio
Manhã estranha nos desperta
Em leito alheio
Ainda e sempre em viagem
Mulher amada
Nós os que saímos
Não te amamos menos
Do que os que ficaram
 
Com desesperada raiva
Mudas minhas mãos
Meus pés dormem inquietos
Gélido fogo sobe em minhas pernas
Consumindo meus joelhos
Procuro pensar nos pássaros
Acuso-os de terem deixado de cantar
É fim de agosto
O verão na Suécia foi miserável
O fogo continua sua escalada
É como se eu afundasse
Nun desses lagos gélidos da Lapônia
Recordo Veríssimo
Gato preto em campo de neve
Meus joelhos não existem mais
Joelhos surdos insensíveis
Golpeio meus reflexos
A culpa é minha
Ninguém espera quinze anos
Seria impossível parar
Esse passar de carros sobre mim?
Carros de combate
Carros de passeio
Barcos de guerra
Barcos à vela
Uma vela se acende
Para quem?
Para mim?
Quem morre em Rio Grande?
Quem morre em Lund?
E esse malito gelo que sobe
Eu subi por muitas escadas da vida
Senti muitas mortes
Chorei muitas prisões
AQUI ESTOU MALDITOS!
PRETENDO ESCULTURAR
EM GRANITO IMPERECÍVEL
MINHA RAIVA
MEU GRITO
PARA QUE TODO AQUELE QUE PASSAR
POR ESTAS RUAS DO EXILIO
POSSA LER SOBRE O CRIME
COMETIDO EM NOSSAS ALMAS
 
Sobre o Brasil minha pequena
(para minha filha Zoyra-Lya, nascida no exílio)
Sobre o Brasil quero contar-te
minha pequena
a terra bem amada
cheia de paz de sol e de beleza
onde uma generosa natureza
desenhou rios vales e montanhas
No Brasil minha pequena
São todos felizes
Ali há justiça trabalho pão e escolas
A miséria e o analfabetismo
já não existem pertencem ao passado
Nenhum estudante desaparece nas cidades
Não há mais presos políticos
e reina a liberdade
As companhias estrangeiras não são mais
proprietárias
dos nossos enormes recursos naturais
já não há mais golpes de estado nem
torturas
e em suas casernas e quartéis os nossos
generais
esqueceram há muito os atos institucionais
Para ti minha filhinha que nasceste no exílio
e brincaste na neve longe de nossa Pátria
eu escrevo estes versos cheios de esperança
oxalá quando os leias no entardecer dos meus anos
não mais sejam quimera nem vã utopia
mas se eu te minto perdoa
quero apenas que durmas
embalada em meus sonhos

(escrito no duro ano de exílio de 1968)

 
Variações sobre um tema brasileiro
I
Quem te encontrará entre essas pedras
Para quem será teu sonho areia úmida
Passos em tua busca
Donde ninguém lembra tuas pisadas
Para ti as balas
Que te buscaram na morte
Para ti o medo da noite
Soturno açoite
Donde a inenarrável dor se esconde
Ah! E quando voltares teu olhar
Morto estará o deus da tua esperança
Para ti o inverno
Esperavas algo diferente em tua ânsia?
II
Como um fantasma
As recordações te buscam
Sorrindo às vezes
Chorando às vezes
A luta na fronteira
As lágrimas na estação
Eu que nunca vi meu pai chorar
Eu o recordo
Entre o milharal frondoso
Para cada melancia
Ele tinha um nome
Para cada arbusto
As laranjas douravam nossa existência
Até o dia quando os defensores da Pátria
Escureceram o sol
Proibiram a chuva de acariciar o milharal
Obrigaram-nos à inércia
E nós
Pobres seres
Vimos nosso sorriso ser encarcerado
III
Tu que estavas presente
Quando os uniformes marcharam
Tu que gritaste teu desespero
Tu que levantaste tua mão
Como bandeira
Foste atingido por cem balas
Que perfuraram tua alma
Nesta noite agora e aqui
Ponho teu nome
Na praça mais bela
Da minha terra natal
De maneira que ninguém
Esqueça teu sacrifício
Nem o teu nome
Tu meu amigo de infância
Ainda hoje
Ouve-se o teu riso contagiante
Nas ruas de Rio Grande
Eu sou teu poeta assassinado
Lembras-te de mim em teu céu?
A morte veio no mês de março
Pela noite
Quando ninguém esperava
Quando as crianças dormiam
E com angústia mantinham
A fome em suas mãos
Nos campos dormia o trigo
Embalado pela suave brisa
As estações de rádio
Estavam povoadas de botas militares
Tu e eu estávamos despertos
Lembro-me bem
Mas quem foi assassinado nessa noite
Foste tu?
Fui eu?

Glênio Perez

Jornalista, político, poeta e ator, Glênio Perez destacou-se na oposição legal ao regime militar e na soli­dariedade aos presos políticos. Eleito três vezes vereador em Porto Alegre, teve seu mandato cassado no começo de 1977. Colaborando nos principais jornais do estado e em diversas revistas, foi também executivo de grupo de mídia e organizador de eventos culturais. Fundador do PDT, foi eleito vice-prefeito da cidade, cujo largo central leva hoje seu nome. Mesmo sob severa perseguição, publicou “Caderno de noticias”.

Glênio Perez

Interrogatório
Como fazes
para exercer teu ofício?
Beijas também tuas crianças
quando vais para o trabalho?
E quando acordas de noite,
lembras o que foi teu dia?
Que gosto é que tem a carne
nos braços de tua mulher?
Quando a cobres com teu corpo
e ela geme – te perturbas?
Tua mãe passando o ferro
para passar tua roupa
não te inquieta ante o perigo
do choque ou da queimadura?
Quando ficas muito tempo de pé
num só lugar não te cansas?
Dormes num quarto sem ar
ou frio como uma geladeira?
Apagas todas as lâmpadas
para descansar teus olhos?
Comes, sempre, muito bem
mesmo com tanto trabalho?
E qual a sensação
de receber mensalmente
a paga do teu serviço?
Tu amas, comes e dormes
apesar do teu ofício?
De que barro te fizeram
– torturador –
afinal?
 
Rua Pantaleão
Permitam que relembre aqui uma rua
Pantaleão Teles
– hoje Washington Luiz.
Havia um bonde amarelo
que imitava Porto Alegre
com sua Rua Pantaleão:
quando chegava na Bento
(Martins) dava volta
virava o bancos de costas
para não ver o putedo…
E a Pantaleão, ali, firme:
um bordel ao lado doutro
prostitutas marinheiros
soldados e estudantes
os barcos
Ponte de Pedra
carro-motor
futebol
sobre um campo de carvão
da Usina do Gasômetro.
Um dia a puta chamou:
– você menino moreno
compra uma ceva pra mim?
comprei voltei entrei nela
– a primeira da minha vida.
Quando um lençol de cimento
cobriu a Pantaleão Teles
pensei que a prostituição acabara em Porto Alegre.
Para logo descobrir
que a antiga Pantaleão
é agora muitas ruas
da cidade
e do Brasil.
 
Tomara que tu morras
Se grita o meu poema
a fome dos roubados
morram ele
e seu tema
na hora da comida.
Podre realidade
a que esculpe esta poesia
da qual sou intérprete
e inimigo.
– Tomara que tu morras
Com meus versos.
Não quero ser poeta
de torpezas.
 
Retrato de pintor
Permiti
senhoras e senhores
que vos apresente
a mais amável
a mais terna
compreensiva
E sofrida pessoa que conheço
já está morta
(pior para a cidade
que vai morrendo
sem memória de Edgar Koetz
seu amante e pintor)
tão delicado de gestos
tão desligado na terra
do que não fosse a beleza do perene
no coração do homem libertado.
Por exemplo: foi a última pessoa que deu festa
para saudar o nascimento de uma flor
no vaso de lata de azeite no seu pátio
e que certa vez no Jockey passou fome
recusando-se à disputa do buffet.
Ele achava
– era artista o meu amigo –
que a todo homem corresponde
naturalmente
o direito de comer.
Edgar amava com suas cores
mulheres de ateliê
casas nas ruas
o rio
as praças as crianças
mas o traço principal de sua grandeza
era a suprema delicadeza em cada gesto
tanto que um dia
chegando de repente
Vi Edgar a conversar com as tintas.
Ele dizia:
– Desculpai que vos misture
Senhoras
Ocorre que já está amanhecendo
E eu tenho de pintar
A Aurora.
 
Uma canção para a noite do exilado
É preciso mais:
é absolutamente necessária
alguma experiência de saudade
acrescentada à possível sensação
de uma planta arrancada pelo caule
E não seria demais
a lembrança dos seios que perdemos
da mãe e das amadas para o tempo
Para entender-se o exílio
há que um dia ter-se dormido
sob um lençol de céu
que não é nosso
e sobre uma terra-
colchão que não é ventre
Ave submarina
um ser fora do cosmos
árvore no ar
barco no chão
ou feto na proveta
assim morrem na vida
os exilados.
Muitos há suspirando pelo fim
– tarifa que lhes cobram para a volta –
outros contam o tempo em grãos de angústia
chorados na ampulheta da saudade
Mas sabemos:
estão todos acordados
enquanto nós
os exilados que ficamos
fazemos para eles
a cama do regresso.
 
Aquarela do Brasil
Honório Nardin
esse teu quadro
me faz um mal
ao coração
que nem te conto.
Ou conto, sim:
— Na moldura, entardece
(há quanto tempo o sol não amanhece?)
na praça o dia morre
uma menina corre
rodando um aro
na areia do jardim.
Que mal me faz agora
Honório
o teu poema em cores
que foi sempre
paraíso de amostra na parede.
Porque essa praça
de teu quadro, Honório
me lembra outras
longe, neste mundo
onde, na hora morna
em que a luz reflui,
brincam crianças que não têm país.
Pequeninos brasileiros exilados
pelas praças do mundo em debandada
que existem
correm
brincam
— como as nossas –
mas são filhos e netos de exilados
não conhecem o céu que lhes pertence
nem as praças e a terra que são suas.
 
Brava Gente
Mulheres
sois perigosas
guerrilheiras desarmadas
De noite agitais o sono
pesadelo dos tiranos
de dia agitais o lenço
da paz pelos torturados
— De onde tirais a força
para lutar com palavras
e fé contra as ditaduras?
Por certo do vosso ventre
onde se gera a criança
livre que o mundo terá
Quando não houver exílios
nem prisioneiros de ideias
algozes espancadores
espiões da violência
exploradores de homens
– que fareis, bravas mulheres?
Descansareis da guerrilha
pela Anistia no mundo
embalando em vossos braços
os filhos da Liberdade.
 
História para cordel
Senhor Doutor Sobral Pinto
que gosta de escrever cartas
aos poderosos do dia
defendendo os inocentes
fique sabendo
por estas mal traçadas linhas
que não creio em suas fotos
nem na certidão de idade.
— Por favor, não se apoquente
(Epa, isso é palavra de antanho
e antanho também já era…)
não se põe aqui em dúvida
a certeza do que diz
e a beleza do que faz.
Ocorre que há muito é noite
no Brasil: quatorze anos
(nem na Antártida é tão longo
o sono do amigo Sol)
e o senhor sempre na sua
gritando pela Justiça
mostrando os torturadores
criticando as ditaduras.
Por isso não acredito
nessa idade que lhe dão.
É uma pena que eu não seja
um poeta de cordel
para contar num livreto
essa história nunca vista
de quem – por ser justo e bom –
vai ficando cada dia
por condão de sua madrinha
a Senhora Liberdade
em vez de velho –
mais moço.
 
Memória
o escuro
da sala
teu nome
na tela.
Tua lembrança
nas palmas
das mãos
que se encontram.
Teu martírio lembrado:
teu nome no filme.
Teu nome
na tela
ilumina
a memória
do teu sofrimento.
A censura não pode
cortar a lembrança
de um tempo de horror
que se pode escrever
com muitas palavras
ou com teu nome
Vladimir Herzog
 
Nem favela
Um dia
Velha Restinga
visitei o teu colégio
— Tu sabes o que achei?
piolho e sarna
Restinga
nos cabelos das crianças.
Elas não passam na escola
como os meninos que comem.
Já nascem com a cabecinha
lesionada pela fome.
Velha Restinga
ainda doem
teu barro nos meus sapatos
e a memória dos casebres
residência da miséria.
Te falta tudo
Restinga
porque nem favela és
te falta um morro de pobres
para ter ricos aos pés.
Mas não te falta um dancing
com meninas de dez anos
nem cachaça nos balcões
das tendas e armazéns.
Tens demais algumas coisas
brigas facadas pobreza
tristeza e merda nas ruas.
Mas tu e eu bem sabemos
quanto te sobra Restinga:
indiferença e injustiça
bem mais velhas do que tu.
 
No exílio, em Berlim
O metrô
de Berlim Ocidental
há muito tempo
serve aos alemães
leva crianças aos colégios
empregados às fábricas
funcionários para os escritórios
e certamente
amantes e amadas
para a hora do amor.
Numa tarde
de maio de 1976
o metrô de Berlim
passou por cima
do corpo de Maria Auxiliadora
estudante
exilada
no Chile
e na Alemanha.
Dora Dorinha ou Doralice
mineirinha
agora no exílio
para sempre.
 
Para Sônia Prisioneira
Sônia: dez anos!
Quase quatro mil dias na prisão.
tu estavas livre
presa à enfermaria
dos hospitais
onde trocavas
teu amor aos outros
pela escassa ração
de pão aos teus.
Bendito pão
– pois ganho em liberdade –
dividindo o que tinhas
para dar.
Cada noite
te pagava a faina
com beijos
da tua filha
E da tua mãe.
Não do marido
que teu homem fora
também jogado
às lajes da prisão.
 
Quando o rio mudar de rumo
Um dia esse rio que passa
o braço das suas águas
na cintura da cidade
e depois vai ser lagoa
e dormir enfim no mar
por artes de seu destino
de ser caminho no tempo
vai navegar para trás.
As suas águas que levam
barcos e homens aos peixes
também são de retornar:
foram rio-lagoa-mar
serão mar-lagoa-rio
E esse rio vai ser mais
do que foi desde que é rio:
uma avenida de águas
para a volta dos banidos
regresso dos exilados.
E a Senhora dos Navegantes
vai bendizer o Guaíba
como o faz em fevereiro
enquanto o povo fará
– por então ser soberano –
a festa de Iemanjá
estender-se o ano inteiro.
 
Raul Sendic
Uma grossa parede
de vidro entre nós dois
no Presídio Central del Uruguay
Era um tempo de respeito
aos prisioneiros
e parecias cansado
não ferido
Estava contigo
a Topolanski
Uma feia campeã
de pontaria
e outros mais
tupamaros
na prisão.
Te vi, Sendic
com esse jeito
de tímido colono
dos que preferem
por dentro ser leão.
Quanto tempo, Sendic,
desde aquilo?
Houve a libertação
Do cônsul brasileiro
um túnel em Punta Carretas
para a liberdade
a morte de Mitrioni
e esse pesado véu
da ditadura
que desceu também sobre vocês
no Uruguai.
Caíste com um tiro
na boca em Ciudad Vieja
e nunca mais se ouviu
falar de ti.
Em que tumba
ou masmorra
te enterraram?

Flávio Koutzii

Flávio Koutzii

Natural de Porto Alegre, dedicou-se desde adolescente ao ativismo político nas frentes estudantis, passando desde cedo a militar no PCB e sucessivas cisões. Persegui­do, buscou refúgio em países europeus e da América Latina, militando finalmente na Argentina. Sequestrado e conde­nado, cumpriu vários anos de pena naquele país. Após cam­panha internacional por sua liberdade e a redemocratização argentina, retornou ao Brasil, onde militou no PT e exerceu diversos cargos parlamentares e executivos.
 
Te deixo hoje…
Te deixo hoje,
com um abraço,
com todo o carinho,
Com a presença da memória,
Com a saudade de ti,
Com a saudade do “Flaco”
Pensando nesses imensos territórios
da vida e do amor,
pensando nas possibilidades, potencialidades,
e nas continuações,
pensando no que não pôde ser,
pensando no que deveria ser,
pensando no que será…

Emanuel Medeiros Vieira

Emanuel Medeiros Vieira

Natural de Florianópolis (SC, 1945), formado na UFRGS em Direito, 1969, participou ativamente da militân­cia estudantil. Escritor de romances, poesias e memórias, com vinte e três livros publicados, participou de mais de cinquenta coletâneas no Brasil e no exterior. Membro da AP (Ação Popular), esteve preso durante meses na OBAN (Operação Bandeirantes) e no DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), em São Paulo, seguindo posteriormente ao exílio. Foi vendedor de livros, editor, professor e redator de discursos. Seu romance “Olhos Azuis – Ao Sul do Efême­ro” (2009) -, foi contemplado com o Prêmio Internacional de Literatura, concedido pela UBE (União Brasileira de Es­critores).
 
Desterro
Desterro cumpriu-me
e cumpriu-se.
O rio começava atrás de casa
(como eu),
e foi embora – afluentes.
Vento sul, Campo do Manejo, Rita
Maria, Rio da Avenida, Miramar,
bala queimada, Catecipes, Praia do Muller,
procissão do Senhor Morto, Cine Rox,
gibis, Grupo Escolar Dias Velho,
Chico Barriga D’Água, paixão camuflada pela menina
da Rua de Cima – ela nunca soube.)
Só enuncio: acumulo – sobrecarregado.
O rio foi embora.
Casa demolida, mãe na soleira da porta, pitanga no
quintal, regata na Baía Sul, matracas, turíbulos, trapiche da
Praia de Fora, gaita-de-boca, groselha, tainha frita,
fogão de lenha, beliches, pé de amora.
Perdeu-se o rio: não sei do seu delta.
Perdi-me: tiro certeiro na gaivota.
A rua pequena, era a maior do mundo – coração.
Desterro inunda-me:
outrora/agora.
 
Masmorras
Clandestinidades, fugas na boca da noite
Dormir cada dia num lugar
Pensões, pulgas, esconderijos, dinheiro contado, pratos
[feitos, uma pinga para o consolo provisório.
Palavras apenas – e foi na carne que doeu.
Tudo já foi ditado, mastigado, expelido.
Foi?
O Primeiro Interrogatório.
O Segundo Interrogatório.
O Quarto Interrogatório.
O Décimo-Quinto Interrogatório
(De manhã, de tarde, à meia-noite, às quatro da
[madrugada).
Choques elétricos, pau de arara, “cadeira do dragão”,
[“telefones”, palmatórias.
O verso de T.S.Eliot na cabeça:
“As palavras se movem, a música se move
Apenas no tempo: mas aquilo que apenas vive
Pode apenas morrer. As palavras após a fala, alcançam
[o repouso. (…)
O corpo: não.
Um bafo de morte na soleira da porta.
(O processo, a burocracia, togas pretas, auditorias, fardas.)
E um dia ir embora para plagas não conhecidas
Um dia, voltamos.
(Só restará o oblívio Alguém se lembrará?)
 
Exílio
Um Atlântico nesta separação:
batido coração segue as ondas de maio.
Desterros além da anistia,
para lá dos poderes.
Velas ao vento,
não bastam os selos,
a escrita crispada.
Queria os sinais da tua pele,
vacinas, umidades, penugens,
pêlos perdidos no mapa do corpo,
o olhar suplicante, soluços.
Jornadas:
missas de sétimo-dia,
retratos arcaicos.
Outro exílio:
sem batidas na boca da noite, armas, fardas, medos,
clandestinidades.
Sol neste retorno:
casa, guarda-chuva no porão, caneca de barro,
álbuns, abraço agregador,
cheiro de pão, gosto de café,
o amanhã junta os o dois nós da memória,
um menino e o seu outro: estou melhor feito vinho velho.
Pai
Meu pai cavalgava
abraçado à sua dor oculta.
No crepúsculo: só – na soleira da porta,
cadeira de balanço, boina, olhar azul.
Antes do assobio da Inelutável
foi para a montanha.
Como um elefante em despedida
quis morrer sozinho.
Quando chegar a hora
farei como meu pai:
subirei a montanha,
 
Madona
Senhora das horas inconclusas
Senhora do torto parto
do porto inalcançável
Madona da ânsia infinita
vã peregrinação
Senhora do desassossego
Conceda-me o bálsamo do olvido
passagem silenciosa
travessia sem medo
Senhora do inútil tempo – que continua queimando
Senhora da veloz juventude
Madona de todas as velhices
Outorga-me o estatuto da ausência
 
Planalto
O Planalto é sempre –
nós é que passamos.
Ulisses, oráculo, reaparece
(num tempo que não quer profetas),
Penelópe só tece dúvidas, eclipsado o sagrado:
mercantis propósitos – só.
O Planalto é sempre
– nós é que passamos.
A memória: nossa matéria
– como lidar com tanto esquecimento?
Carece preparar os rituais de retorno:
suado feixe de
carnes/emoções?
(Qual a sua forma?)
Aqui irrompeu o pranto,
não a redenção.
Expulsos do paraíso: vagamos.
Rebanhos eletrônicos, restos de pompa,
retóricas cartorárias, tecnocratas com dentes de ouro
[– e celulares de última geração.
O Planalto é sempre
– nós é que passamos.
Mas cansou-me o pranto:
O sol inunda esta manhã
pão quente, cheiro de café torrado,
o poema arranca algo do efêmero,
fundo-me no esquecimento
(Também somos feitos daquilo que perdemos.)
Deus faz que me esquece:
depois reaparece.
 
Hiroshima
Na manhã dominical,
a bomba de Hiroshima,
a bomba,
tão clara,
exata,
cirúrgica.
Bomba geométrica,
certeira.
A bomba vem do céu,
mas não é ave.
A bomba vem de cima,
mas não é Deus.
Desce fumegante,
a bomba não negocia,
a bomba não conversa,
célere, impositiva,
acerta o alvo, cai,
a bomba queima, a bomba dissolve,
a bomba dilacera.
Alguém nasce no ano em que ela cai,
e pensa naquele 1945:
a surpresa daqueles milhares de olhos,
à espera do lúdico no matinal domingo,
parques, igrejas, passeios, visitas familiares,
percebendo – sem tempo para a reflexão –
a chegada da não-ave,
emissária de Tanatos,
que cai, cai,
na paisagem limpa (cogumelos atômicos).
 
Homem diante do mar
Homem diante do mar
(instância interrogativa).
Precária caravela.
E finita: a vida
Trapiche:
o homem só contempla
(desembarcado).
No estatuto da memória:
ele se interroga, nunca mais a ação.
No porto: a rapariga rosada estendeu um lenço.
Limo: foram-se a juventude, o trapiche, a rapariga, o lenço.
(Mátria: sou apenas um homem diante do mar.)
Desterro: instante convertido em sempre.
O homem desembarcado só pode viver de memória:
[diante do mar.