Coleções da Zoobotânica somam mais de 600 mil exemplares da fauna e flora nativas

Biólogo Ricardo Ott junto à uma pequena amostra da coleção de aracnídeos do Museu de Ciências Naturais/Cleber Dioni

Cleber Dioni Tentardini
Mesmo diante das ameaças e boicotes que vem sofrendo do governo do Estado, desde 2015, a Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (FZB/RS) completa 45 anos no dia 20 de dezembro em pleno funcionamento, com diversas pesquisas em andamento, inclusive para o Executivo estadual, e com um bom motivo para comemorar: suas coleções alcançaram a marca dos 609.445 exemplares, grande parte representativa da fauna e flora riograndenses. Esse número foi computado no início de dezembro.
O Museu de Ciências Naturais e o Jardim Botânico possuem o maior acervo de material-testemunho da biodiversidade dos ecossistemas terrestres e aquáticos do Estado. Há exemplares também de outros estados e países, a maioria doada.
O Parque Zoológico, outra instituição vinculada à FZB, possui mais de mil animais nativos e exóticos, de mais de cem espécies, mas não são considerados como coleções científicas.
Pesquisadores e estudantes de graduação e pós, de instituições do Brasil e do exterior, visitam constantemente a instituição para examinar os acervos. Por vezes, as visitas de especialistas revertem na revisão das informações, imprimindo atualidade às coleções, com os novos estudos publicados.
Além da quantidade, a qualidade das coleções é outro fator que chama a atenção dos pesquisadores. Acervos conservados, atualizados e devidamente identificados frequentemente rendem elogios aos especialistas e técnicos, ambos indissociáveis das coleções.

Coleções identificadas e conservadas, facilitando o acesso dos pesquisadores de todo o país e do exterior

Afora as coleções históricas, todas as demais são vivas, ou seja, perdem e também recebem materiais novos para estudos e catalogação, necessitando de curadoria permanente. Os acervos não são estáticos, ao contrário, estão em movimento, portanto, necessitam da supervisão dos especialistas.
Só que nos últimos dois anos todo esse patrimônio vem sendo ameaçado, com o fantasma da extinção e a demissão dos pesquisadores, técnicos e demais servidores, o chamado patrimônio imaterial.
O governo do Estado alega que as coleções serão repassadas para a responsabilidade da Secretaria de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, a SEMA, que administrará uma página na Internet com todo o banco de dados da FZB. No entanto, os próprios funcionários da SEMA já admitiram inúmeras vezes que não têm capacidade de absorver esse trabalho nem a qualificação necessária para manusear as coleções. A Fepam também já emitiu nota no mesmo sentido.
“O fato é que o patrimônio material da Zoobotânica não sobrevive sem a gestão dos especialistas, mestres e doutores em diversas áreas, com conhecimento científico acumulado (…) Esse corpo técnico extremamente qualificado mantém a instituição viva e capaz de nutrir o Rio Grande do Sul com informações sobre a biodiversidade, patrimônio paleontológico, patrimônio genético, dentre outros bens culturais e ambientais de suma relevância para a preservação da vida humana, animal e vegetal”, apontaram na ação civil pública as promotoras de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre, do Ministério Público Estadual. “E sentenciaram: “a descontinuidade dessas atividades acarretará terríveis consequências do ponto de vista científico para o Rio Grande do Sul”.
O biólogo Ricardo Ott é o curador das coleções de aranhas, escorpiões, minhocas e similares, estrelas do mar e ouriços (equinodermos), lacraias, piolhos de cobra etc (miriápodos). Trabalha há 15 anos no Museu de Ciências Naturais e afirma sem titubear: “Deixar uma coleção sem curadoria e disponível somente pela internet é condená-la à inutilidade.”
Ott exemplifica que a cada ano são publicados mais de dois mil trabalhos só em taxonomia de aranhas. Esse material precisa não só de manutenção física, mas também da manutenção científica, que só um especialista, no caso o curador, tem capacidade de atualizar.
Biólogo é curador das coleções de aranhas, escorpiões, ácaros, minhocas, estrelas do mar e ouriços, lacraias, piolhos de cobra, dentre outros

“Nós temos 60 mil lotes com exemplares de aranhas que chegam em torno de 200 mil e cerca de 1.100 exemplares-tipo, que servem de referência para identificação de espécimes. A toda hora são feitas descrições, revisões e outras pesquisas que têm de ser estudadas pelos especialistas”, observa.
A maioria dos exemplares destas coleções foi coletada na década de 1960, mas existem alguns bem mais antigos, como uma aranha recolhida na Itália em 1906 e doada à FZB pelo Museu de Viena.
E seu trabalho não resume por aí. Ricardo tem pós-doutorado na Austrália e é uma das referências para consultas do CIT – Centro de Informação Toxicológica do Rio Grande do Sul – órgão do governo do Estado. E, por vezes, é co-orientador de alunos de iniciação científica e de cursos de mestrado e doutorado.
O setor recebe entre 150 e 200 consultas por ano do CIT, para identificar espécies principalmente de aranhas e escorpiões, a fim de que os profissionais possam passar as orientações adequadas à população sobre prevenção e tratamento contra picada de animais peçonhentos.
Biólogos Ingrid Heydrich e Ricardo Ott fazendo triagem de serrapilheira, em busca de moluscos, aranhas e insetos, na sede da Fepagro em Livramento /Mariano Pairet/Divulgação

“Nossas coleções têm de estar muito bem atualizadas. Agora mesmo estamos estudando um ácaro. No controle de pragas, por exemplo, alguns gêneros de ácaros foram revistos pelos taxonomistas e hoje se sabe que o mesmo bicho de pessegueiro não é o de macieira. Então, o técnico é instruído para que não coloque veneno na macieira nessa época do ano porque tal espécie de ácaro só se reproduz em outra estação”, completa Ott.
Coleção de mamíferos, uma das principais do país
As biólogas Márcia Jardim e Tatiane Trigo são as curadoras da coleção de mamíferos do Museu de Ciências Naturais. É o Setor de Mastozoologia, que possui uma das principais coleções do Brasil e tem um acervo bastante representativo da fauna gaúcha, além de ter exemplares de outros estados e de países vizinhos como Uruguai e Argentina.
A coleção tem cerca de quatro mil exemplares e é formada, em grande parte, por morcegos, roedores e carnívoros. Mas há, por exemplo, esqueletos de baleia, rinoceronte, hipopótamo e até de leão e tigre.
Pesquisadoras e estagiários no Setor de Mastozoologia do MCN / Divulgação

Concomitante ao trabalho de curadoria e de supervisão dos estudantes e pesquisadores, as biólogas frequentemente saem a campo para subsidiar planos de manejo de áreas protegidas e programas de conservação de espécies ameaçadas. Na semana passada, estavam realizando pesquisas na Área de Proteção Ambiental (APA) do Banhado Grande, que abrange parte dos Biomas Pampa e Mata Atlântica e ocupa 2/3 da bacia hidrográfica do rio Gravataí. Localiza-se entre os municípios de Glorinha, Gravataí, Santo Antônio da Patrulha e Viamão.
A APA foi criada em 1998 para proteger os banhados que formam o rio Gravataí: Chico Lomã, Grande e dos Pachecos. E ainda o Refúgio da Vida Silvestre Banhado dos Pachecos, unidade de conservação de proteção integral.
Tatiane (à frente) e Márcia examinando graxaim do mato, no Refúgio Banhado dos Pachecos, da APA do Banhado Grande/Mariano Pairet/Divulgação

Técnico agrícola da FZB, Mariano Pairet, com veado machucado, na região dos Cerros Verdes, em Santana do Livramento /Divulgação

Esse trabalho teve origem num convênio com o governo do Estado e envolve pesquisadoras da SEMA e diversos setores de pesquisa da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul.
Márcia é doutora em Ecologia, com ênfase em primatologia. Ingressou na FZB em 2001 e faz a curadoria da coleção desde 2003. “A identificação e manutenção requer conhecimento e muitos cuidados, como controle de temperatura, umidade, a preparação correta da pele e do esqueleto, desde a sua entrada, para que fique à disposição dos pesquisadores”, afirma.
Márcia mostra exemplares da coleção de morcegos/Cleber Dioni

A bióloga chama a atenção ainda para os cuidados com o material genético, os tecidos, que ficam acessíveis para pesquisas em biologia molecular. “Aqui, também é fundamental a presença do curador a fim de acompanhar e orientar os pesquisadores”, reforça.
Tatiane, bióloga da FZB desde 2014, doutora em Ecologia pela Universidade Federal, é especialista em genética de conservação e ecologia de felinos silvestres. Ela destaca a capacitação dos servidores e o caráter público das coleções do Museu de Ciências Naturais, garantindo acesso fácil dos pesquisadores.
Tatiane com peles de exemplares de felinos silvestres, caprichosamente conservadas/Cleber Dioni

“Desde que o animal entra aqui, é feita a identificação, depois a preparação, que é lenta, porque tem que saber lidar com a pele, o esqueleto, a fim de que ele fique nas condições ideais pra que possa ser estudado. A gente procura ter a maior quantidade de informações sobre o animal, que se torna parte do material testemunho da fauna de mamíferos do RS. Há exemplares, por exemplo, de onça pintada com ocorrências em outras regiões do Estado, ao contrário do que se verifica hoje, cuja espécie está delimitada ao Parque Estadual do Turvo, portanto um animal extremamente ameaçado”, adverte Tatiane.
Coleção científica fornece diversas informações
A Fundação Zoobotânica guarda também toda a diversidade de anfíbios do Estado. O curador da coleção, que possui 14 mil exemplares, é o biólogo Patrick Colombo, na instituição desde 2014.
“Eu costumo dizer que uma coleção científica é como uma biblioteca porque cada exemplar, cada indivíduo tombado equivale à informação que tem num livro. Esses indivíduos guardam informações passadas e presentes. A gente consegue saber através de dados de uma coleção se uma área já foi degradada, que espécies ocorreram nessa área, e, através dessas informações, se consegue traçar mapas de distribuição de espécies e planos de conservação, assim como de educação ambiental”, descreve o biólogo.
Colombo, que é mestre em Ecologia e doutor em Zoologia, alerta que é um equívoco achar que uma coleção guardada não precisa do especialista. “Dependendo da coleção, precisa de cuidados diários porque são materiais supersensíveis, especialmente os anfíbios que têm a pele sensível e tem toda uma peculiaridade fisiológica. Então, tem que manter a coleção em perfeito estado de conservação e bem identificada”, diz.
Em eventos de educação ambiental, os “anfíbios do Patrick” são uma das principais atrações/Divulgação

Colombo caracteriza uma coleção sem curador como abandono. “Não tenho a menor dúvida de que se isso acontecer na fundação, as coleções vão estragar em pouco tempo e vai se perder tudo”, critica o biólogo.
Sua colega, Rosana Senna, diz que as coleções são indissociáveis dos especialistas. “Infelizmente, as pessoas que tomam decisões não imaginam o valor inestimável dessas coleções, desconhecem que não existe a menor  possibilidade de deixar alguém cuidando de uma coleção, sem conhecimento taxonômico para fazer o manejo e a atualização”, alerta.
Botânica Rosana Senna no Herbário HAS, do MCN/FZB/Divulgação

A bióloga, que é uma das curadoras da coleção de plantas vasculares no Herbário Prof. Dr. Alarich R. H. Schultz (HAS), do MCN, adverte que manter um fichário na internet ajuda bastante para fazer uma triagem, mas os pesquisadores que vêm de fora têm que ter acesso à coleção bem conservada e apta para o manuseio e, para isso, o curador tem que mantê-la atualizada.
Os herbários são coleções científicas de plantas, essenciais para diversas áreas de estudo como taxonomia, sistemática, biogeografia, ecologia, biologia da conservação, genética, evolução, farmácia e medicina, entre outras.
Outro curador das coleções do HAS é o biólogo Martin Molz. Especialista na flora arbórea e ecologia de florestas, Molz tem pós-doutorado no Centro de Ecologia da UFRGS, é taxonomista e tem interesse especial na conservação de plantas lenhosas, com destaque para a família das plantas com flor (Myrtaceae). Tem experiência em ecologia de comunidades, invasões biológicas, biodiversidade, biogeografia e conservação, em diferentes biomas e formações vegetais no RS e no Brasil.
Molz (à frente) em São Francisco de Paula/Divulgação

Pesquisador do Museu de Ciências Naturais desde 2014, Molz observa que um herbário documenta historicamente os conceitos de especialistas que estudaram os espécimes no passado, permitindo planejar onde devem ser feitos novos esforços de pesquisa em regiões pouco investigadas.
“A partir dos registros existentes é possível estudar as épocas de floração e frutificação de espécies. Os herbários documentam onde as plantas cresciam ao longo do tempo, permitindo identificar espécies invasoras, mudanças climáticas, destruição de hábitats; saber quais plantas crescem com outras espécies de plantas; além de fornecerem material para observações microscópicas, análises de DNA, análises químicas (poluição etc), ensino de botânica e ecologia, estudos de expedições (história da ciência)”, enumera o biólogo.
Segundo Molz, só em 2017, o HAS teve mais de 3,5 milhões de acessos aos dados já disponibilizados online. O herbário abriga mais de 200 espécimes-tipo e importantes coleções de plantas.
Identificando exemplares da coleção do herbário/Divulgação

Uma das coleções mais representativas no HAS é a de Myrtaceae, família da jabuticabeira, da pitangueira, do araçá e da goiaba-serrana. É a maior coleção do Rio Grande do Sul e mesmo com a intensificação do trabalho de curadoria e de pesquisa seu potencial ainda não é totalmente conhecido.
Molz realizando coleta em Caraá/Divulgação

“Aí entra a importância da atividade de curadoria, que é altamente especializada, pois requer conhecimento geral de muitas áreas da biologia e de diferentes grupos de plantas, as quais possuem muitas formas de vida e desenvolvem-se nos mais distintos hábitats, como florestas, campos, afloramentos rochosos etc. Um curador precisa entender de sistemas de classificação de plantas, atrair especialistas para revisar e qualificar os materiais do herbário, fazer permutas com outras coleções, captar recursos, além de organizar e realizar expedições científicas para coletar novos registros, incluindo espécies raras, endêmicas e ameaçadas de extinção e algumas vezes espécies desconhecidas para a ciência. Coleções podem guardar raridades e/ou espécies desconhecidas e é o “olho” do curador ou dos especialistas que visitam a coleção que consegue encontrar tais espécimes”, ensina Molz.
Modelo no país, Jardim Botânico mantém banco de sementes de espécies ameaçadas
As 27 coleções do Jardim Botânico de Porto Alegre somam 4.344 exemplares, incluindo espécies ameaçadas, raras e endêmicas (que só se encontram no Estado); e coleções especiais, representativas da flora nativa. Há 2.250 espécimes arbóreas, mais de 750 espécimes de orquídeas e mais de 620, de bromélias.
Catálogo do banco sementes

Dentre essas variedades, estão preservadas ali 97 espécies ameaçadas de extinção entre bromélias, cactos, orquídeas, espinilhos, araucárias e outras. Constam nas coleções do JB, por exemplo, a espécie de orquídea Cattleya intermedia, o cacto Parodia neohorstii, espécie endêmica da Serra do Sudeste, no Estado, a Callisthene inundata, árvore endêmica da Serra, e a Dyckia marítima, espécie de bromélia que ocorre no Litoral Norte do RS.
Entre as espécies raras, estão protegidas árvores como o Butiá yatay e o Podocarpus sellowii.
O Jardim Botânico está registrado na Agenda Internacional de Jardins Botânicos do Botanic Gardens Conservation International (BGCI), o que facilita a captação de recursos para pesquisa. Se não for preservado nas suas atuais condições, segundo a bióloga Andréia Carneiro, curadora das coleções do JB, provavelmente vai perder o registro, com prejuízos irreparáveis para conservação da biodiversidade no Estado.
Pesquisadoras Rosana Singer e Josy Zarur no Refúgio Banhado dos Pachecos, este ano/Mariano Pairet/Divulgação

A sua colega, a bióloga Rosana Farias Singer, doutora em Biologia Vegetal, trabalha há cinco anos no Jardim Botânico. Ela lembra que, além das coleções arbóreas e envasadas, há também o Banco de Sementes do JB, ameaçado de ficar sem pesquisadores e na iminência de encerrar as atividades de análise fisiológica e morfológica de sementes de espécies arbóreas e arbustivas nativas do Rio Grande do Sul.
Espécie de cacto (Parodia neohorstii) que só encontrada na Serra do Sudeste do Estado/Rosana Singer/Divulgação

O Laboratório de Análise de Sementes, do Banco de Sementes do JB, é o único no Estado que realiza essas funções, inclusive com as espécies ameaçadas.
Rosana Singer na coleção do Jardim Botânico/Cleber Dioni

“Sem especialistas, técnicos e jardineiros, não consigo vislumbrar a manutenção do Jardim Botânico. Não há a mínima condição de um único profissional ficar responsável pelas coleções, ou um pesquisador e um jardineiro, por exemplo. Porque o trabalho não é só dar água às plantas, elas precisam dos nutrientes, cuidados contra as pragas, o manejo correto, feito por pessoas qualificadas, sem isso é muito difícil das espécies sobreviverem”, completa Rosana.

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