Volnei Picolotto
O governo interino do vice-presidente Michel Temer pretende estabelecer por 20 anos um teto para os gastos primários de todos os poderes e órgãos da União. Nesse período, seria permitido apenas o reajuste com base na inflação oficial do ano anterior. Essa mudança consta na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº. 421/2016, encaminhada ao Congresso Nacional (CN) no dia 16 de junho.
Se aprovada pelo CN até dezembro, a proposta vigorará a partir de janeiro e restringirá os gastos totais de 2017 aos de 2016 mais a inflação desse ano. O Ministério da Fazenda justifica que “[a] PEC limitará, pela primeira vez, o crescimento do gasto público e contribuirá para o necessário ajuste estrutural das contas públicas” e admite que “a despesa primária total não poderá ter crescimento real a partir de 2017”.
A medida não poupa nem os gastos em saúde e educação, que “passarão a ser corrigidos pela variação da inflação do ano anterior e não mais pela receita”. Não ficariam submetidos ao teto apenas as transferências constitucionais a Estados, municípios e Distrito Federal, os créditos extraordinários, as complementações ao Fundeb, os repasses à Justiça Eleitoral para a realização das eleições e as despesas de capitalização de estatais não-dependentes.
Os poderes e órgãos que descumprirem o limite de gasto ficariam proibidos de conceder vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração de servidores públicos, criar cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa, alterar estrutura de carreira que implique aumento de despesa, admitir ou contratar pessoal e realizar concurso público. Além disso, no caso de estouro do teto, estaria vedado ao Poder Executivo, no exercício seguinte, superar a despesa nominal com subsídios e subvenções econômicas realizada no exercício anterior e conceder ou ampliar incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita.
A proposta gerou críticas, não apenas pela sua temeridade. O professor de Economia da UFRJ, João Sicsù, fez uma simulação com as despesas em educação e saúde se a PEC 241/2016 já estivesse em vigência desde 2006 e concluiu que ela geraria um desastre.
Os gastos em saúde e educação aumentaram respectivamente de R$ 40,6 bilhões e R$ 19,7 bilhões em 2006, no governo Lula, para R$ 102,1 bilhões e R$ 103,8 bilhões em 2015, no governo Dilma. Pela PEC do governo interino, os orçamentos de educação e saúde teriam despencado para R$ 31,5 bilhões e R$ 65,2 bilhões em 2015, ou seja, quedas respectivas de 70% e 36% em relação ao que realmente foi executado no ano passado. Apenas nestas duas áreas, seriam R$ 72,3 bilhões a menos.
De 2006 a 2015, o crescimento médio nominal dos dispêndios em saúde foi de 10,8% ao ano e de educação, 20,5% ao ano. A simulação do professor Sicsú indica que esses gastos sociais subiriam em média apenas 5,4% ao ano de 2006 a 2015 pela proposta do governo interino, ou seja, a inflação média do período.
Se for aprovada essa PEC, além de congelar os gastos reais totais, haverá uma queda no gasto per capita, uma vez que a população brasileira deve aumentar nos próximos anos. Desta forma, o Brasil ficará ainda mais distante de atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas.
O governo provisório alega que precisa cortar gastos sociais para diminuir o déficit público. O próprio ministro interino da Fazenda, Henrique Meirelles, disse, em entrevista ao Broadcast Político e à Rádio Estadão, no dia 1º de julho, que “[as] despesas com educação e saúde são itens que, na prática, junto com Previdência, inviabilizaram um controle maior de despesas nas últimas décadas”.
Porém, entre as despesas que mais cresceram e contribuíram para o déficit público federal nos últimos anos, algumas parecem permanecer intocáveis, os juros da dívida pública federal e os subsídios. De 2008 a 2015, os subsídios federais saltaram de 0,26% para 1,13% do PIB, boa parte deles através dos juros menores para empréstimos empresariais através do BNDES. Esses foram concedidos a alguns setores empresariais durante a crise financeira internacional de 2008/2009. Porém, superada a crise da época, os subsídios não apenas continuaram como aumentaram.
No mesmo período, os investimentos públicos, já baixos para padrões internacionais, depois de subirem de 0,84% do PIB em 2008 para 1,15% em 2010, caíram para 0,66% em 2015. A partir de 2011, o governo Federal fez uma opção para incentivar os investimentos privados, que acabaram não se efetivando como era esperado. Esses dados foram apresentados pelo economista do IPEA, Sérgio Gobetti, no VI Seminário do Centro Internacional sobre Governo da UFRGS, realizado no dia 23 de maio.
Também relacionado à crise de 2008/2009, o governo federal aumentou as desonerações fiscais. Isso contribuiu para as receitas federais caírem de 23,01% do PIB em 2008 para 21,71% em 2010. E, a partir de 2015, com uma nova crise econômica agravada por uma crise política, as receitas federais tiveram nova queda, chegando a 20,62% do PIB.
O economista do IPEA fez um exercício comparativo. De acordo com ele, as despesas federais com juros nominais passaram de R$ 115 bilhões em 2002 para R$ 162 bilhões em 2008 e R$ 397 bilhões em 2015. No mesmo período, os benefícios sociais (previdência, seguro-desemprego, LOAS e Bolsa-família) aumentaram de R$ 278 bilhões em 2002 para R$ 336 bilhões em 2008 e para R$ 436 bilhões em 2015. Ele somou os subsídios aos juros para chegar à chamada “bolsa-empresário”. Assim, de 2002 a 2008, enquanto os benefícios sociais tiveram um aumento real de R$ 138 bilhões a “bolsa-empresário”, R$ 47 bilhões. Já de 2008 a 2015, houve uma inversão, com a “bolsa-empresário tendo um incremento real substantivo de R$ 295 bilhões e os benefícios sociais novamente de R$ 138 bilhões.
Ao vincular o crescimento dos gastos públicos totais à inflação, o que representa a queda real per capita, o interino Temer vai além dessa medida. Ele pretende mudar o modelo de Estado, implementando o ideário neoliberal, não radicalizado nem nas fases mais características dos governos Collor e FHC. Medidas como essa PEC temerária jamais seriam aprovadas pelas urnas e só são levadas adiante em períodos de exceção democrática. A sua aprovação aumentará o déficit acumulado nas áreas da saúde, educação e assistência social do País. Apenas a pressão da sociedade e dos setores populares poderá impedir esse retrocesso, que pode levar o Brasil à fase anterior à Constituição Federal de 1988.