A embriaguez midiática das massas, a omissão do STF e a orquestração do golpe no Brasil

Francisco Jozivan Guedes de Lima*
Antes de tudo, quero advertir que não usarei a terminologia “golpe político” porque, de um ponto de vista normativo e de sociedades democráticas bem-ordenadas que respeitam as instituições, golpe é algo infame, vil e de natureza apolítica; ele anda justamente na contramão da política: percorre caminhos abjetos, criminosos, ilegítimos do ponto de vista moral e jurídico.
O status de legitimidade do impeachment no seu cerne normativo está respaldado pela Lei nº 1.079/1950 que foi recepcionada pela CF/1988. No Art. 4º da Lei nº 1.079/1950, há um rol de oito crimes de responsabilidade presidenciais tais como atentar contra (i) a existência da União, (ii) o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados, (iii) o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, (iv) a segurança interna do país, (v) a probidade na administração, (vi) a lei orçamentária, (vii) a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos, (viii) o cumprimento das decisões judiciárias.
O impeachment em si não é golpe; é uma ferramenta democrática que tem na sua base a pretensão de se opor a regimes despóticos. Dentro de sociedades liberais modernas, sua gênese histórica remete à desestabilização dos Estados nacionais absolutistas, desarticulação esta protagonizada pela burguesia – categoria que ainda não tinha no dado período uma conotação capitalista pós-Revolução Industrial. Tratava-se, dentro do referido cenário, de uma queda de braço entre as monarquias absolutistas versus os liberais, especialmente, como se observou a partir do século XVII na culminância da Revolução Inglesa e o consequente estabelecimento do parlamentarismo.
Se o impeachment em si não é um golpe, então qual o seu problema? No caso específico deste processo que vivenciamos no Brasil, ele é um golpe porque está sendo orquestrado mediante estratagemas de exceção; dizer que o impeachment atual é legítimo porque respeita um rito do Supremo Tribunal Federal é uma afirmação extremamente superficial e ritualística que não adentra às questões de fato relevantes para a sua legitimidade como o cumprimento do devido processo legal, o instrumento da ampla defesa, a imparcialidade dos relatórios eivados de tendenciosidades cujo relatores são declaradamente inimigos da figura em julgamento, contaminação partidarista da comissão ad hoc e do judiciário, desde juízes de instâncias mediadoras até o STF enquanto guardião da Constituição. Afinal, cabe aqui uma questão normativa: como entender o porquê do STF – sendo o responsável máximo pela Constituição – diante deste conflito se autoimpôs a incumbência de simplesmente traçar ritos ao invés de gerir o processo já que o impeachment constitui um instituto a fim de zelar pelos princípios constitucionais? Não há sentido em abandonar tal status decisório nas mãos de políticos inaptos do ponto de vista ético e/ou intelectual que instanciam suas decisões a partir de justificativas risíveis obliterando todo o potencial normativo de esfera público-democrática.
A obscuridade do processo com manipulações midiáticas com liberação de grampos telefônicos para dada emissora, o processo de votação dominical forjado como uma espécie de show que culminou no desmascaramento e na demonstração da realidade de parlamentares sem mínimas condições para o exercício do poder público, o fato de orquestradores do golpe serem réus em processos como Lava-Jato, os fortes interesses econômicos que injetaram e financiaram o afastamento da Presidenta Dilma, o atropelamento do processo e o voto-pronto independente da contra-argumentação da Advocacia-Geral da União, e todo um demais conjunto de fragilidades expostas, fortalecem a obviedade do Estado de exceção no qual foi forjado o processo de afastamento. Diante disso, o STF agiu como Pôncio Pilatos: “lavou as mãos”; atirou o rito no plenário e observou confortavelmente o seu desfecho. Num país com seriedade e harmonia institucionais, diante de processos parciais e suspeitos, os guardiões da Carta Magna não se isentam, mas assumem o ônus de zelar pela normatividade. Eis aí a sua máxima razão de ser.
E o que dizer da embriaguez das massas? Por “massa” entende-se aqui o “vulgus”, aquela “massa de manobra”, isto é, aquela parcela da população que é facilmente cooptável, manipulável, que bate panelas, vai às ruas, põe camisa patriótica impulsionada por um discurso de anticorrupção ironicamente patrocinado por corruptos, ou seja, uma contradição explícita. Ela constitui, numa expressão nietzscheana, “o homem rebanho”. Ela não tem ciência de como o processo está sendo forjado, quem o forja, quem o financia nacional e internacionalmente, e como as informações são milimetricamente lhe endereçadas pela mídia que sedimenta a indústria cultural do golpe. Aí está a embriaguez.
Tudo é orquestrado a fim de que a grande massa – seja ela de camada social subalterna, alta ou mediana – acredite que o processo está sendo imparcial, justo e que com a deposição de uma dada figura, a corrupção será banida e tudo voltará à normalidade. Foi justamente em cima deste discurso de “higienização” que o nazismo ganhou força e chegou ao poder e se tornou o monstro tal qual sabemos. Dentro dessa ideologia massificadora, tipifica-se e encontra-se um bode expiatório para culpabilizar pela instabilidade e pela desordem. E a lavagem cerebral funciona sorrateiramente em tal direção. Isso gera uma despolitização da esfera pública forte e, ipso facto, os potenciais atores políticos são intencionalmente rotulados mediante uma luta desgastante e sem sentido sob os cognomes de “coxinhas” e “petralhas”, resultando daí discursos e ações de ódio, uma infantilização do processo democrático bem-vinda para aqueles que os manipula como meros fantoches.
Aos que defendem que tal massificação não aconteceu, cabem aqui algumas questões: por que este mesmo povo que foi às ruas, que bateu panelas no horário nobre, não o faz agora, neste exato momento em que a Operação Lava-Jato se recolhe do seu ímpeto voraz depois de ter cumprido seu papel estratégico de fulminar um partido político em específico? Por que as investigações não têm continuidade com o mesmo peso e rigor para os demais partidos e suspeitos? Por que não se bate panelas perante vazamentos de vídeos desmascarando o golpe? De um modo amplo, por que não ele não vai às ruas contra as injustiças que continuam a acontecer?
As doses funcionaram exitosamente: para a grande massa – manipulada pelas instâncias de poder – o momento é oportuno, tudo é apenas uma questão de tempo para a “perfect life” se instaurar no Brasil: “não vem ao caso” julgar, a Lava-Jato cumpriu sua tarefa, a economia irá crescer, nossos direitos estão preservados, em especial os sociais conquistados a dura penas, a previdência social e os mais velhos não serão atingidos pelas reformas, os remédios serão amargos, porém provisórios e necessários para equilibrar as finanças, não há mais corrupção e todos os partidos são julgados como o mesmo rigor. Trata-se simplesmente de uma ilusão, mera embriaguez ideológica verticalmente imposta, aceita e reproduzida acriticamente por indivíduos de várias regiões do país, sem polarizações se é somente em região X ou Y.
* Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor do PPG e da Graduação em Filosofia na UFPI.

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