Governo caiu sem resistência

A tomada da ponte da Azenha, tela de Augusto Luiz de Freitas, 1922 | Reprodução

Porto Alegre amanheceu deserta, as casas com as janelas fechadas. Homens de Bento Gonçalves haviam entrado na cidade à noite. Uma pequena patrulha, chefiada pelo visconde de Camamú, havia tentado enfrentá-los quando alcançavam a Ponte da Azenha, mas foi um fiasco. Dois de seus homens foram mortos e o visconde escapou ferido, todo embarrado, com a roupa rasgada, sem uma bota e sem chapéu. “Ao irromper, roto, ensanguentado, esbaforido e só, às primeiras horas de 20 de setembro no palácio presidencial, o visconde de Camamú tinha mesmo que deixar todos (…) completamente espavoridos, como arauto do pavoroso desastre, cuja extensão ainda ninguém poderia medir, nem mesmo as suas consequências”, anota Wiederspahn.

Visconde de Camamu

Para completar o pânico com a chegada do desarvorado visconde, ouviu-se um tiro no palácio. Foi descuido de uma sentinela, mas a confusão foi total: “… todos procuram um abrigo, abandonando a sede do Governo. Fecham-se as portas e janelas, tangem os sinos com o alerta, esboçam-se algumas medidas para a defesa da cidade. Arrastam-se algumas peças de artilharia com alarido para proteger a pessoa do presidente. Este faz distribuir granadas de mão entre os poucos que ainda o rodeiam, indecisos.”

Quando clareou o dia, os farroupilhas ocupavam pontos estratégicos para impedir a entrada de gêneros alimentícios na cidade, achando ainda que o presidente iria resistir. No entanto, as guarnições locais aderiram aos rebeldes. “Vendo minguarem-se cada vez mais os elementos de que ainda poderia dispor, o presidente Fernandes Braga convocou de novo os militares, seus partidários, decidindo concentrar a resistência em torno do arsenal, à espera de reforços. Só então teve ele a consciência do abandono em que se achava, pois 17 homens apenas se apresentaram para constituir a sua escolta”, relata Wiederspahn.

Maior revolta depois de Palmares

O poder rebelde chegou a fundar uma república, mas não conseguiu dominar a Província inteira

Não foram dez anos ininterruptos de guerra. Às vezes, os combates se suspendiam por meses. No inverno, por exemplo, a luta cessava ou se restringia a mínimos confrontos. A guerra teve também diversas fases. Começou como uma rebelião em 20 de setembro de 1835. Tornou-se um confronto armado em fevereiro do ano seguinte. Até então, negociava-se a indicação de um governador que fosse do agrado dos revoltosos.

Definiu-se como uma revolução com a proclamação da República Rio-grandense em 11 de setembro de 1836. O poder rebelde chegou a proclamar uma nação independente, mas nunca dominou a Província inteira, e sua “mais duradoura dominação” foi na parte sudoeste do Rio Grande do Sul, na região da campanha, contígua às repúblicas do Prata.

“Depois de Palmares, foi o maior movimento armado entre as revoltas internas que o Brasil viveu”, de acordo com Riopardense de Macedo.

Outro historiador, Dante de Laytano, contou “56 encontros bélicos” ao longo de 3.466 dias de revolução, com um saldo estimado entre três mil e cinco mil mortos (há muita divergência entre os pesquisadores quanto a datas e números).

No ponto culminante da guerra, havia quase 20 mil combatentes de ambos os lados.

Com a rendição dos rebeldes gaúchos, em 28 de fevereiro de 1845, pela primeira vez, desde a Independência, todo o central.

“Às armas, cidadãos! Às armas, que a Pátria se acha em perigo!”

Tela Fogo no pasto, de Guido Mondin
Tela Fogo no pasto, de Guido Mondin

Segundo Tristão de Alencar Araripe, o presidente não conseguiu reunir mais do que 270 homens, menos da metade das forças a favor dos revolucionários. Às onze horas da noite, restavam apenas o 1º comandante, capitão Francis Félix da Fonseca, o 2º comandante, tenente Alvarenga, um cabo, o corneteiro e um soldado. “Decidiu, pois, embarcar na escuna Riograndense, levando consigo todo o numerário existente no Tesouro e recomendando ao inspetor em exercício, Joaquim Manuel de Macedo, que não abandonasse a repartição e seus subalternos”. Comboiado pela canhoneira 19 de Outubro, seguiu para Rio Grande, deixando uma proclamação: “Às armas, cidadãos! Às armas, que a Pátria se acha em perigo!”.

Os farroupilhas ocuparam a cidade e Bento Gonçalves divulgou um manifesto, tentando acalmar a população: “Os cidadãos, que se acham armados, são vossos irmãos, amam e respeitam a lei, e para fazê-la respeitar se viram obrigados a empunhar as armas. Com a fuga do ex-presidente, dr. Antonio Rodrigues Fernandes Braga, a arbitrariedade desapareceu e, nas nossas mãos, a oliveira substituiu a espada”.

Cinco dias depois, Rio Pardo, São Gabriel e Rio Grande, onde se refugiara o presidente, são os únicos redutos de resistência à revolução. Bento Gonçalves, já dono da situação, faz um novo pronunciamento, jogando a culpa de tudo na intolerância do presidente deposto e manifestando fidelidade ao império:

“A inquietação que, desde os primeiros meses da presidência do Sr. Braga se tinha derramado na maior parte desta Província, e que por todas vezes a prudência e o amor à ordem haviam acalmado, como acendida por virtude elétrica, apareceu novamente e se fez geral. A nossa Pátria pareceu ao esperto observador como um enfermo a quem a febre ardente mortifica, e que alternativamente espera e teme que a crise que o atormenta lhe dê saúde ou morte.

Em vão, compatriotas, buscáveis a tábua de salvação, ela estava na Carta, mas naqueles momentos a Carta era letra morta, as vias legais vos eram obstruídas, a apatia do governo central não vos deixará traduzir a mais pequena esperança de melhoramento, os males vos ameaçavam já de perto, qualquer dilação vos ia dominar, e destruístes, cidadãos, a força com a força. Cumprimos, rio-grandenses, um dever sagrado repelindo as primeiras tentativas de arbitrariedades em nossa cara Pátria; ela vos agradecerá e o Brasil inteiro aplaudirá o vosso patriotismo e a justiça que armou vosso braço para depor uma autoridade inepta e facciosa, e restabelecer o império da lei.

Compatriotas, eu acrescentarei à glória de haver sido em outros tempos vosso companheiro nos campos de batalha, e haver-vos conduzido contra nossos inimigos externos, a glória ainda mais nobre e perdurável de haver concorrido para libertá-la dos seus inimigos internos, e salvá-la dos males da anarquia. O governo de facção desapareceu de nossa cena política, a ordem se acha restabelecida.

Transpondo a Ponte da Azenha, de Guido Mondin
Transpondo a Ponte da Azenha, de Guido Mondin

Com este triunfo dos princípios liberais, minha ambição está satisfeita, e no descanso da vida privada a que tão somente aspiro, gozarei o prazer de ver-vos desfrutar os benefícios de um governo ilustrado, liberal e conforme os votos da maioria da província.

Respeitando o juramento que prestamos ao nosso Código Sagrado, ao Trono Constitucional e à conservação da integridade do Império, comprovais aos inimigos de nosso sossego e felicidade que sabeis preferir o jugo da Lei ao dos seus infratores, e que ao mesmo tempo nunca esqueceis que sois os administradores do melhor patrimônio das gerações que vos devem suceder, que este patrimônio é a liberdade, e que estais na obrigação defendê-la a custa de vosso sangue e de vossa existência…”

Mal sabia ele que estava começando uma guerra que ia separar a Província do Rio Grande do Sul do Império brasileiro, uma guerra que iria durar quase dez anos.

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