A banalidade do mal na erosão ética da política

Luiz Cláudio Cunha*

O vento constante que soprava do mar sobre a cidade de Osório, no litoral gaúcho, distante apenas 15 km das ondas do Oceano Atlântico, amenizou a temperatura de 30° na manhã daquele sábado ensolarado, 10 de abril de 2021. Isso permitiu que o encontro informal dos três políticos da cúpula do MDB gaúcho fosse ainda mais descontraído, trocando o hábito sufocante do paletó e gravata do asfalto pelos adereços mais confortáveis da praia — sandálias, bermuda, tênis, camiseta e calça jeans.

Foi uma longa, relaxada conversa de quatro horas coroada por um almoço, na casa de veraneio do presidente do partido no Rio Grande do Sul, o deputado federal Alceu Moreira, que recepcionou o prefeito da capital gaúcha, Sebastião Melo, e o secretário-geral do MDB, o deputado estadual Gabriel Souza, que também preside a Assembleia Legislativa. Ao final, o secretário Souza resumiu o teor do encontro para o repórter Paulo Egídio com uma frase crua e cínica que resume a inevitável decadência moral daquele que foi o mais prestigiado partido da história política gaúcha: “OK ter filiados adeptos ao bolsonarismo, mas o MDB nunca foi bolsonarista. O apoio ao Bolsonaro foi um momento tático eleitoral de 2018”, confessou candidamente o presidente da Assembleia gaúcha.

A frase foi publicada na edição virtual de domingo, 11, da mais importante colunista política do Estado, Rosane de Oliveira, no jornal de maior prestígio do Sul, a Zero Hora, sob um título ameno como a temperatura da praia: “Em almoço no litoral, líderes do MDB gaúcho concordam em posicionar o partido ao centro”. Apesar da gravidade da confissão, não se registrou nenhum abalo sísmico no Estado, que engoliu em seco, sem qualquer reação, rejeição ou indignação a palavra que, mais do que tudo, soava como uma autoconfissão.   

Os chefes maiores do MDB sulista admitiam ousadamente, enfim, que era OK ter adeptos do bolsonarismo entre seus filiados, uma brutal contradição em termos que deveria envergonhar a sigla que carrega, na sua longa história, a honra de ter combatido e resistido à ditadura sempre louvada pelo capitão que arrebatou devotos e adesões irrestritas dentro da legenda. Ninguém do partido reclamou, nem se sentiu injuriado pela gentil admissão de que, OK, um filiado do MDB velho de guerra agora, de repente, poderia ser um assumido bolsonarista!…

Assustadoramente normal

O prefeito, o presidente do partido e o seu secretário-geral, nas suas levianas reflexões – tão despojadas quanto os trajes praianos que vestiam – exprimiam na essência a “banalidade do mal”, expressão definida seis décadas atrás pela filósofa e pensadora política Hannah Arendt (1906-1975), em seu trabalho de maior repercussão como jornalista: a série de cinco artigos que publicou, entre fevereiro e março de 1963, na renomada revista The New Yorker, sobre o juízo em Jerusalém em 1962 do tenente-coronel Adolf Eichmann, sequestrado dois anos antes na Argentina pelo serviço secreto de Israel. Coordenador e gerente do Holocausto nazista que exterminou seis milhões de judeus, ele foi julgado num processo de cinco meses, condenado e enforcado na madrugada de 1º de junho de 1962. O conjunto de cinco artigos foi transformado, no ano seguinte, no livro mais popular da ativa vida intelectual de Arendt: Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal.    

Hanna Arendt viu em Eichmann o que Pedro Simon não viu em Jair Bolsonaro: a banalidade do mal

Ao saber do iminente julgamento de Eichmann, Arendt se ofereceu à revista para cobrir o processo que testaria, na prática, a teoria por ela desenvolvida em seu primeiro e mais aclamado ensaio, As origens do totalitarismo, de 1951. Ali, examinava as raízes do Nazismo e do Stalinismo e os fundamentos de “uma nova forma de governo”, o Totalitarismo, que diferia essencialmente das outras três formas conhecidas de opressão – o despotismo, a tirania e a ditadura. Em Jerusalém, Arendt imaginava ter a chance de ver a justiça administrada ao homem de perfil totalitário sobre o qual ela havia escrito.

Mais do que uma pensadora original, Hanna Arendt era, também, uma sobrevivente do Holocausto gerenciado por Eichmann. Judia alemã de nascimento, escapou duas vezes das garras da Gestapo. Na Berlim radicalizada de 1933, no alvorecer do nazismo, denunciada por um livreiro por propaganda contra o Reich, ela e a mãe foram presas por oito dias. Dali escapuliu e procurou refúgio em Paris, mas acabou presa outra vez e internada no sul da França, em Gurs, um antigo centro de refugiados da Guerra Civil Espanhola que, sob a ocupação nazista, virou um campo de concentração para judeus não-franceses e inimigos do regime colaboracionista de Vichy. Quando conseguiu escapar dali, junto com a mãe e o marido, Arendt cruzou a Espanha rumo a Lisboa, de onde alcançou sua nova pátria em Nova York, em maio de 1941.

Duas décadas depois, ao publicar seu relato sobre o impacto de ver Eichmann ao vivo no tribunal, Arendt confessou ter ficado impressionada, certamente surpresa, com a inesperada imagem de vulgaridade e o comportamento daquele homem meio calvo, que parecia apenas um medíocre burocrata, até brando, em contraste com o horror dos crimes terríveis de que foi acusado. “Eichmann era terrivelmente, assustadoramente normal”, espantou-se ela.[1]

Essa insidiosa, maligna banalidade anotada nos anos 1960 acabou se infiltrando, contaminando, conspurcando em 2018 um dos lugares mais admirados do Brasil pela força de seu povo, pela beleza de sua terra, pelo valor de sua história política, econômica e cultural: o Rio Grande do Sul.

A naturalidade do Bem

Delimitada pelo Império no início do Século 19, a velha Capitania de São Pedro alçou-se duas décadas depois à Província e, com a República, transformou-se em Estado, hoje com números superlativos. Sexto mais populoso do país — com mais de 11 milhões de habitantes (equivalente a uma Bélgica) espalhados por 281 mil km² (do tamanho do Equador) onde se espraiam os pampas de largos horizontes, os campos verde-amarelo mansamente ondulados de milho e soja e as suaves colinas da serra perfumadas pelos vinhedos, hortênsias e flores de bergamota —, o Rio Grande do Sul ostenta índices invejáveis para um país tão desigual. Tem a 4ª melhor taxa de alfabetização (comparável a Singapura), é o 7º com mais estudantes de nível superior completo (quase 10% da população), alcança a 4ª posição em renda per capita (Porto Alegre é a 2ª capital, só atrás de Vitória) e atinge o 4º posto no ranking do PIB nacional.

Aos habitantes originais das tribos Charrua e Minuano juntaram-se os africanos e portugueses, mesclados com os castelhanos que porejavam pelas fronteiras com os vizinhos do Cone Sul, reforçados pela linhagem laboriosa dos imigrantes italianos e alemães que começaram a chegar da Europa no final do Século 19.  Esse caldeirão de sangue, talento, interesses e culturas tão diversas gerou um povo guerreiro e afirmativo que explica o protagonismo dos gaúchos em movimentos, levantes, rebeliões e sagas que moveram, para a frente, a história do Estado e do Brasil em dois séculos.

As revoluções Farroupilha (1835-1845), Federalista (1893-1895) e a de 1923 colocaram o Estado ou parcelas dele, em tempos distintos e por razões diferentes, em ousado confronto com as oligarquias locais, a hegemonia federal do Rio de Janeiro e as leis da época que favoreciam o continuísmo no poder e a dependência econômica. A Revolução de 1930, iniciada no Sul, tirou o país do atraso da Velha República do café-com-leite, e a brava Campanha da Legalidade de 1961 conteve o Exército golpista em Brasília e garantiu a posse constitucional de João Goulart na crise entornada pela ébria renúncia de Jânio Quadros.

A Revolução Farroupilha e a Campanha da Legalidade: dois séculos de gente que reclama, briga e não se agacha

Essa linda, guerreira história de mais de 200 anos dominados pela naturalidade do bem de repente foi confrontada, humilhada pela banalidade do mal que prevaleceu na eleição presidencial de 2018 no Rio Grande do Sul. Pela maioria dos votos válidos, 63,2% (3,9 milhões de eleitores), o capitão Jair Bolsonaro teve quase o dobro de seu opositor no segundo turno, o professor de ciência política da USP Fernando Haddad, com 36,7% (2,2 milhões). O tosco e abrutalhado capitão venceu o advogado – mestre em Economia e doutor em Filosofia – em 407 dos 497 municípios gaúchos. Porto Alegre, a 3ª capital do país com menor taxa de analfabetismo (2,18%, atrás de Florianópolis e Curitiba), deu a vitória a Bolsonaro em todas as dez zonas eleitorais da cidade.

O capitão candidato, que no início parecia apenas uma excrescência folclórica e nostálgica do passado autoritário de 21 anos, acabou dominando corações e mentes da maioria dos 8,3 milhões de eleitores gaúchos. O resultado final no Rio Grande foi a nona maior vitória estadual de Bolsonaro, que venceu as eleições do segundo turno em 21 capitais e 16 dos 27 Estados brasileiros, incluindo os três do extremo sul, os de maior nível de escolaridade. Em Santa Catarina, que tem a capital mais alfabetizada do país, o capitão arrebatou sua segunda maior vitória nacional, com 75% dos votos, três de cada quatro eleitores. No primeiro turno, quando recebeu quase 50 milhões de votos no Brasil, Bolsonaro desconcertou os dois principais candidatos a governador no Sul – Eduardo Leite (PSDB), que teve 35,9%, e José Ivo Sartori (MDB), que tentava a reeleição, com 31,1%.

O frankenstein eleitoral

Ambos reafirmaram a “posição antipetista”, e tentaram atrair o voto bolsonarista – um recatado, outro arreganhado.

Leite foi cuidadoso: “Os gaúchos votaram na maioria em Bolsonaro, e eu respeito isso. Sei que apoiá-lo seria um gesto natural de quem deseja vencer esta eleição. Mas não quero vencer a eleição e perder a alma. Eu tenho uma posição firme: não arredar pé dos meus princípios e valores. Lamento que ele não tenha feito uma autocrítica sobre frases e pensamentos que não respeitam a democracia e a existência pacífica e natural de outros seres humanos”. E mais não disse, nem fez o candidato tucano no resto da campanha.

Sartori foi mais escancarado, irrestrito: “O apoio a Bolsonaro dialoga com a necessidade de combate permanente à corrupção, apoio à Lava-Jato, mais segurança e um novo pacto federativo. Não é hora de omissão”. Sartori, arrebatado, jogou-se no colo do capitão já no dia seguinte ao primeiro turno de 7 de outubro, tentando sugar sem rebuço a simpatia e o apoio explícito dos 3,3 milhões de gaúchos (52% dos votos válidos) que optaram por Bolsonaro.

Ao contrário de Leite, que não falou mais no capitão no segundo turno, Sartori rasgou as vestes da compostura e colou-se como uma craca no áspero rochedo de Bolsonaro. Tentando um equilíbrio instável na onda conservadora com o seu jacaré de arrivismo, o governador chegou ao extremo de juntar sua imagem à de Bolsonaro nos cartazes de campanha, gerando um horrendo frankenstein eleitoral que não deixava nenhuma margem de hesitação: ‘Sartonaro’.

Sartori: no cartaz do terrível  frankenstein eleitoral e com o silêncio que abençoou o mal

O malabarismo não deu certo. O jacaré de Sartori perdeu o equilíbrio em seu balouçante, oportunista adesismo, e afundou na derrota por pouco mais de 420 mil votos (53,6% a 46,3%). O outro grande perdedor foi o líder maior do MDB gaúcho, o ex-senador Pedro Simon, mentor político de Sartori, um professor de filosofia que Simon arrebanhou para a política e para o MDB em 1976. Carinhosamente chamado de ‘Gringo’, como são conhecidos os imigrantes de origem italiana da serra gaúcha, Sartori ganhou dez das 13 eleições que disputou – incluindo duas para prefeito de Caxias do Sul, terra natal de Simon, e uma para governador. Sua devoção e subordinação ao mentor político, contudo, não lhe permitiam a iniciativa e a ousadia de assumir por conta própria o truque do “Sartonaro” sem o assentimento prévio do velho senador.

As digitais do envergonhado apoio de Simon ao capitão, assim, são perceptíveis a olho nu nos grandes cartazes de campanha que, sem qualquer objeção do líder máximo do MDB sulista, nivelaram para sempre a figura decente e cordial de Sartori e o retrato do ríspido e indecente Bolsonaro. A preferência de Simon ficou dissimulada até duas semanas antes do segundo turno, em 28 de outubro, quando ele concedeu uma desastrada entrevista ao principal jornal gaúcho, a Zero Hora. Numa afirmação surpreendente, de grande repercussão, o maior líder do MDB anunciou seu “apoio crítico” a Bolsonaro, um escorregão que colocou em xeque a biografia do ex-senador e tornou gelatinoso o seu pétreo compromisso com a ética.

Emparedado por Carlos Rollsing, um jovem e talentoso repórter de 35 anos, o veterano político então com 88 anos chegou ao extremo de implorar pelo que é impossível a um jornalista sério: não fazer a pergunta que deve ser feita. Um trecho desse patético confronto:

Rollsing Pelo o que entendi da sua manifestação, o senhor vai acatar a decisão do MDB gaúcho de apoiar  Bolsonaro, mas fico em dúvida se o senhor vai apoiar ele pessoalmente e se vai votar nele. Como será?

Simon – Eu vou ficar fora da campanha. Não participo.

Rollsing O que o senhor vai fazer então? O que significa apoiar criticamente?

Simon – Eu não sei, respeito a decisão do partido, está feito, mas eu fico fora da campanha.

Rollsing – Não é um apoio explícito então?

Simon – É um apoio crítico.

Rollsing – E o que significa um apoio crítico?

Simon – Não vou participar da campanha. Vou fazer essas análises de um e de outro lado, que eu acho que devem ser feitas.

Rollsing Mas o senhor vai votar no candidato Bolsonaro

Simon – Não me faz essa pergunta (risos). Eu peço, por favor, que não me faça essa pergunta.

O claudicante, errático desempenho do ex-senador diante do repórter incisivo mostra suas vísceras na resposta seguinte, que prova o desconcerto interior que já consumia Simon em dúvidas e remorsos:

RollsingO senhor acha que esse apoio ao Bolsonaro agora, que tem saudosismo da ditadura e já relativizou atos como a tortura, é coerente com a história do senhor e do MDB?

Simon – Não. Acho que hoje, realmente, eu fico me perguntando o que o doutor Ulysses estaria fazendo…

Rolssing, o repórter incisivo, faz a pergunta certeira: Pedro Simon, acuado, implode a ética e afronta a História

É realmente deplorável ouvir o ex-combativo senador Simon se fazer essa pergunta, inadmissível para quem conviveu intimamente com o principal líder do MDB por mais de um quarto de século, no coração da política nacional, inclusive como o estratégico coordenador da campanha das Diretas-Já (1983-84). Simon lembra como ninguém daquela tarde de 5 de outubro de 1988, fecho glorioso de um ano e meio de debates até chegar à promulgação da nova Constituição. Ali, Ulysses trovejou: “Traidor da Constituição é traidor da pátria… Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações”.

Simon deveria lembrar, portanto, que a figura aberrante a quem dava o seu surpreendente “apoio crítico” em 2018 era o capitão Jair Bolsonaro que, em vez de amaldiçoar, louva sempre que pode a ditadura que Ulysses e os homens do Bem mais odiavam. O candidato que ganhava o apoio de Simon lamentou várias vezes que sua louvada ditadura tenha torturado e matado de menos, que mais gente deveria ter sido morta, e confessou, triunfal, que torturadores notórios eram os seus heróis e os autores de seus (poucos) livros de cabeceira. Nos seus 32 anos de presença ativa no Senado ao longo de quatro mandatos, desde 1979, Simon coincidiu boa parte de sua vida no Congresso com os sete baldios mandatos de Jair Bolsonaro na Câmara, eleito deputado federal sete vezes consecutivas a partir de 1990. Já deveria então, sem qualquer apoio, ser um crítico severo de Bolsonaro!

No fígado do capitão

Bolsonaro nunca deixou de ser um ilustre desconhecido do baixíssimo clero da Câmara, um parlamentar irrelevante, quase inútil, que conseguiu aprovar apenas dois projetos e uma emenda em 28 anos ordinários de Parlamento. A emenda do capitão-deputado autorizava o uso da fosfoetanolamina, a polêmica “pílula do câncer”, sintetizada na década de 1980 por um químico do interior paulista denunciado por curandeirismo pela Universidade de São Paulo (USP), em 2016. Um ano antes, a Academia Brasileira de Ciência condenou o uso da droga em seres humanos.

Apesar disso, a visão populista de deputados e senadores acabou aprovando uma lei incauta que liberava o uso da pílula, sem qualquer avaliação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A carreira milagreira da “pílula do câncer” só acabou dissolvida por decisão do Supremo Tribunal Federal, que arquivou o pedido de liberação. Nessa jornada brancaleônica, o capitão Bolsonaro foi um demagogo defensor do clamor popular contra a ciência, antecipando o papel atual de charlatão, como garoto-propaganda da cloroquina e outras sandices terapêuticas que ele prescreve com o fervor de um cientista maluco.

Mesmo com essa enxovalhada folha corrida, o capitão bobalhão ganhou o valioso “apoio crítico” de Pedro Simon. Numa reunião com empresários em 2017 em Porto Alegre, local de residência do ex-senador, Bolsonaro já ensaiava sua candidatura presidencial apresentando sua maior virtude: “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar”. Admirador confesso do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório comandante do maior centro de tortura de São Paulo, o DOI-CODI da rua Tutoia, na ditadura, ainda assim Bolsonaro recebeu a estranha adesão do ex-senador, mesmo sendo o admirado autor de um texto de forte repercussão publicado pelo jornal O Globo em 28 de abril de 2010. Nesse dia o STF julgava uma ação da OAB que dizia o óbvio: a anistia do Governo Figueiredo não podia se aplicar aos crimes de tortura – imprescritíveis – praticados pelos agentes da repressão durante o regime militar.

O título do artigo de Simon atingia o capitão no fígado: “Não se anistia o nazismo. Nem a tortura”. Numa advertência clara, que cabia com perfeição na ficha de Brilhante Ustra, o herói torturador de Bolsonaro, Simon escreveu:

Ninguém, neste país, tinha ordens para torturar. Nem mesmo o AI-5, a lei mais dura do período mais sangrento do regime de 64, mencionava ou liberava o uso da tortura. Os torturadores têm algo em comum: eles têm vergonha do que fizeram. É um crime, portanto, sem pai nem mãe.

Anistia não é esquecimento, é perdão. Não se pode esquecer o que não se conhece. Também não se pode perdoar o que não foi punido – privilégio imaculado de todos os torturadores que ainda existem no país.

O nazismo não merecia a amnésia, muito menos a anistia. A tortura, também. […]

Punir os torturadores, de hoje e de ontem, não é revanchismo. É uma obrigação moral e ética de um país que deve olhar sem medo para trás, para encarar sem receios o caminho que tem pela frente.

Vamos lavar e cicatrizar nossas feridas, acatando o pedido da OAB e os clamores de um país consciente de seu passado e confiante em seu futuro.[2]

Pedro Simon e seu crítico apoio, o capitão e seu torturador predileto, o coronel Brilhante Ustra

Não se sabe se Simon, ao melhor estilo FHC, esqueceu o que escreveu, ou obliterou o que pensava. O fato é que o texto foi tão notável que, logo após ser recebido na redação no Rio de Janeiro, o gabinete do senador recebeu em retribuição um telefonema agradecido do então diretor de redação de O Globo, Ascânio Seleme, que elogiou: “Parabéns, senador, pelo senso de oportunidade e pela contundência do artigo”. Dezoito anos depois, ao declarar seu inesperado apoio crítico ao capitão que sempre defendeu a morte, a tortura e os seus executores, o ex-senador mostrou aos seus admiradores que tinha perdido o senso de oportunidade, a contundência e a coerência.

A admiração de velhos companheiros da luta contra a ditadura foi gravemente atingida pela súbita conversão de Simon ao Jair Messias da violência e da estupidez. Um dos mais chocados foi um histórico fundador do MDB, o advogado João Carlos Bona Garcia, que ingressou na guerrilha aos 17 anos, dois anos após o golpe de 1964, como militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), integrada entre outros por Carlos Lamarca e Dilma Rousseff. Participou de duas ações da VPR no Sul atacando carros pagadores do Banco do Brasil e do Bradesco. Bona Garcia acabou preso, torturado e, no final de 1970, banido do país quando 70 prisioneiros políticos foram libertados depois do sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher no Rio de Janeiro.

Em três décadas, os caprichos da história viraram o mundo de Bona Garcia de cabeça para baixo. Na democracia, o subversivo caçado pela repressão, odiado pelos militares e desterrado pela ditadura virou subchefe da Casa Civil do governador Pedro Simon, em 1986, e chefe da Casa Civil doze anos depois do governador Antônio Britto. Em 1998, o ex-assaltante de banco tornou-se executivo de banco: foi diretor do Banrisul, o banco estatal gaúcho, e presidente do Sindicato dos Bancos do RS. O ex-preso político Bona Garcia, naquele mesmo ano, foi indicado juiz da justiça militar gaúcha e, em 2002, o ex-torturado alcançou a presidência do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul.

A vida não é só eleição

As reviravoltas da vida não fizeram Bona Garcia, como Simon, perder o sentido de orientação política, nem desnortearam seus princípios éticos, nem turvaram sua memória. Em 15 de outubro de 2018, quatro dias após a perturbadora entrevista de Simon à Zero Hora, Bona Garcia contrariou o seu amigo e companheiro de partido para não contrariar sua própria consciência e sua história.

Condenando o que chamou de “cheque em branco do MDB” ao capitão, Bona Garcia, mesmo fazendo críticas ao PT, abriu o seu voto em Fernando Haddad. E deu uma explicação ao repórter Luís Eduardo Gomes, do site Sul21, que certamente encharcou Simon de vergonha. Disse Bona Garcia, em tons proféticos:

Acho que a vida não se restringe a uma eleição. Porque você vai estar dando um cheque totalmente em branco a um candidato que todo mundo conhece, suas posições sempre foram muito ruins para a democracia — uma pessoa racista, preconceituoso em relação às mulheres, apoiou e apoia ainda a ditadura militar que houve no País, apoiou e apoia a tortura, defende os torturadores. Todo mundo conhece isso.

O Bolsonaro tem anos e anos de vida parlamentar e todo mundo conhece a posição que ele tem, o que ele pensa sobre todos os problemas da vida nacional.

Do passado, do presente e do que pensa para o futuro.

Ele pode agora, como é época de eleição, vestir uma roupagem de conciliador, prometer unir o País, porque ele também quer votos.

Então, ele vai se apresentar como um moderado para ter os votos do pessoal mais de centro.

Agora, a vida dele não é essa. O posicionamento dele não é esse.

O que ele vai fazer, sabe-se lá o que é.

Mas você não pode comprar o Bolsonaro pelo que ele foi a vida toda.[3]

Simon ficou com Bolsonaro, Bona Garcia e Brum Torres ficaram com a ética

Uma nova e lamentada baixa nas fileiras históricas do MDB veio com o protesto veemente de outro fundador do partido, o filósofo João Carlos Brum Torres, que foi secretário estadual de Planejamento dos Governos Antônio Britto (1995-1999) e Germano Rigotto (2003-2007). Mestre em Filosofia pela Universidade de Paris, doutor em Ciência Política pela USP, com pós-doutorado em Ciência Política pela Universidade de Berkeley (EUA), Brum Torres mostrou, aos 72 anos, o que Simon não demonstrou aos 88: consciência política.

Cinco dias após a desastrada entrevista do ex-senador, e um dia após o público puxão de orelhas de Bona Garcia, Brum Torres avançou o sinal e, em protesto veemente, anunciou sua desfiliação do MDB, o único partido de sua vida.

Saiu com requintes de crueldade, explicando:

Vou sair porque achei grotesco o MDB sair correndo para se atirar nos braços de Bolsonaro. 

Pode ter sido pragmatismo eleitoral, mas para tudo existe limite.

Um homem que escolhe como livro de cabeceira a obra de um torturador como Brilhante Ustra contraria os princípios nos quais eu acredito.[4]

Pedro Simon levou 32 anos para construir, em quatro mandatos consecutivos de senador em Brasília, uma merecida mística de campeão da ética, de crítico do regime militar, de inimigo da corrupção, de arauto contra a impunidade, de pregoeiro da luta contra todas as injustiças, escorado em fundas convicções católicas e sincera devoção franciscana.

O show do ectoplasma

Ninguém definiu melhor o dramático, teatral contorcionismo gestual de Simon na tribuna, no palanque e nas palestras do que o seu velho parceiro de política, Ulysses Guimarães, na “Ode ao Campeão”, publicada em um livro biográfico:

Há bons oradores, populares ou parlamentares.

Simultaneamente, bom no palanque e bom na tribuna, no Brasil só conheço um: Pedro Simon.

No palanque, fica em transe.

Dá ‘show’, mágica sessão de ectoplasma.

Possesso, funde-se com a multidão, rege o silêncio e o aplauso.

Fala com a goela, com os olhos, com as mãos, com o tórax convulso, baila com as pernas. Campeão da tribuna e do microfone.[5]

Simon, por Ulysses: “show, ectoplasma, transe, possesso, fala com a goela, os olhos, as mãos, o tórax convulso”

Em dezembro de 1976, ainda como deputado estadual e presidente do MDB gaúcho, Simon fez o discurso mais emotivo e forte do enterro de João Goulart, na volta derradeira a São Borja, sua terra natal, doze anos depois do golpe militar de 1964 — o golpe sempre louvado pelo capitão que Simon abençoou como candidato em 2018. Único presidente da História brasileira a morrer no exílio, Jango incomodava até mesmo num caixão.

“Jango era um grande estorvo para os militares, eles não queriam que ele voltasse nem morto. Jango era querido pelo povo. Havia uma multidão espontânea acompanhando seu caixão quando chegou a São Borja. A multidão se amontoou, baixou o caixão do carro funerário e o levou para a igreja, desafiando aos militares que queriam enterrá-lo às pressas. O povo não parecia ter medo”, lembrou Simon 37 anos depois do enterro ao repórter Darío Pignotti, do jornal argentino Página 12.

Simon revelou ao jornal de Buenos Aires que, antes do sepultamento apressado, procurou o comandante do III Exército em Porto Alegre, general Fernando Belfort Bethlem, solicitando uma autópsia no corpo do presidente. O general, sem dar maiores explicações, recusou o pedido.[6] Hoje, o Brasil ainda espera pela autópsia do voto de Simon em Bolsonaro, capaz de dissecar as vísceras que revelem as razões mais entranhadas dessa carcomida opção eleitoral do velho senador.

Simon em São Borja, 1976, no enterro de Jango:  o auge da emoção. Gen. Bethlem: sem autópsia

Como naquele dia sombrio em São Borja, os brasileiros se acostumaram anos depois a acompanhar semanalmente em Brasília, pelas imagens da TV Senado, as teatrais, performáticas exibições de Simon na tribuna do Senado, falando sobre tudo e sobre todos. Geralmente discursava às segundas e sextas-feiras, quando os outros senadores ainda não tinham chegado ou já haviam deixado a capital, e o microfone era destravado para as longas, fluviais intervenções do senador gaúcho, liberado da ditadura do relógio e das restrições do regimento da casa.

O silêncio de cemitério

É natural, portanto, que os brasileiros estranhem o inusitado, estrondoso silêncio que o habitualmente loquaz político gaúcho, mesmo sem tribuna, mantenha nos últimos dois anos, os mais trepidantes e assustadores desde o fim da ditadura em 1985. A aberrante presidência do capitão Jair Bolsonaro, regalado antes da eleição com o explícito apoio crítico do sempre rigoroso Simon, é um prato cheio para a língua afiada do ex-senador. Seja pela economia destrambelhada de seu ministro Paulo Guedes, ou pela aloprada política de combate ao ‘globalismo marxista’ do ex-chanceler Ernesto Araújo, ou pela gestão piromaníaca do ministro que derruba florestas e polui o meio-ambiente, Ricardo Salles.

Junte-se a isso a língua solta e o raciocínio travado do pior presidente da República brasileira, hoje o chefe de Estado mais polêmico e detestado no mundo, por sua figura tosca, ignorante, rombuda, boçal, que ataca mulheres, ofende jornalistas, afronta magistrados, destrata governadores e prefeitos, prega o armamentismo, incentiva os bandoleiros milicianos, alimenta o fundamentalismo religioso, desacata o bom-senso, deprime os brasileiros e envergonha o Brasil no mundo.

Tudo isso, além da doentia, neurastênica aversão de Bolsonaro à ciência, à medicina e às recomendações básicas dos especialistas – como o uso de máscara e o respeito ao distanciamento social – no combate à maior crise sanitária da história. Mais do que folclórica, sua esquizofrênica obsessão pela cloroquina e outras nulidades terapêuticas se soma à absoluta letargia pelo círculo de morte e dor que se alastra, sem controle, pelo país angustiado, sitiado pelo Covid-19 e pela inércia de um governo abilolado.

A falta de empatia do capitão, fator marcante de sua personalidade psicopata, mas previsível em um declarado “especialista em matar”, ficou ainda mais flagrante na quinta-feira, 29 de abril de 2021, quando o Brasil ultrapassou a dolorosa marca dos 400 mil mortos – o segundo maior do mundo, só atrás dos Estados Unidos. Como sempre, um detalhe que trombou com o silêncio pétreo de Bolsonaro, fiel ao seu mantra favorito: “E daí? ”

Pedro Simon e a gargalhada demente de Jair Bolsonaro: o mesmo e cruel silêncio de cemitério de 400 mil vidas

O mórbido mutismo do capitão, diante de tanta morte, já não assombra mais ninguém, todos habituados ao riso catatônico, à gargalhada convulsiva que Bolsonaro se deleita em exibir na proporção em que cresce a escala de mortos. O que espanta, de fato, é que toda essa tragédia humanitária conflui para o silêncio solidário de quem nunca se calou, de quem sempre tudo falou: Pedro Simon. Não seria por falta de assunto, com certeza, que o velho senador se calaria agora, diante da pauta irrecusável de sandices e patifarias que se renova diariamente no desgoverno Bolsonaro. A única explicação para a cúmplice pasmaceira de Simon é que ele continua um passivo refém de seu apoio crítico.

Crítico, esse apoio nunca foi, diante de tanta coisa a ser criticada e sempre sufocada. O apoio, apesar de tudo isso, persiste pelo silêncio teimoso, inexplicável, que agora trava a língua do “ex-Simon”, conforme a ferina definição que o senador um dia recebeu do jornalista Josias de Souza, colunista do UOL e da Folha de S.Paulo. Para um político que se notabilizou durante tanto tempo como o grilo falante da consciência nacional, o gritante mutismo de Pedro Simon simboliza a erosão ética que hoje corrói a figura pública que, no passado, foi o retrato tonitruante da oposição mais altiva, corajosa, intimorata contra a ditadura. O atual comportamento flácido do ex-senador, diante de tanta iniquidade, contaminou a dobradiça reunião da cúpula do MDB em Osório, no início de abril, que apenas reflete a licenciosa aderência de Simon a Bolsonaro.

É triste ver, num personagem tão carismático da política brasileira, a indecisão ou a imprecisão de atitudes que degeneram sua imagem pública. É mais comum que grandes líderes, à medida que envelheçam, se tornem mais sábios, mais transcendentais, mais decisivos.

A aliança com o demônio

Pedro Simon era um guri, em junho de 1941, com apenas 11 anos completados cinco meses antes. Naquele verão do hemisfério norte, a noite abafada de sábado prometia um domingo quente na fronteira oriental da Polônia, invadida dois anos antes pelas tropas de Hitler, no início das hostilidades da II Guerra Mundial (1939-1945). O inferno vivido pelos poloneses escancarou-se, ainda pior, para os soviéticos que viviam nas repúblicas da Ucrânia, Belarus, Lituânia e Letônia, às 3h15 da madrugada de 22 de junho de 1941, quando uma barragem de artilharia clareou a escuridão de todas as fronteiras com fogo e pólvora, dando início à maior operação militar da História — a invasão nazista da União Soviética.

Para essa empreitada, Hitler mobilizou nove exércitos, 225 divisões, 10 mil tanques, 4 mil caças e bombardeiros, 750 mil cavalos e 4,5 milhões de homens —  uma força militar dez vezes maior do que o Grande Armée que Napoleão reuniu em 1812 para o frustrado plano de conquistar a Rússia do imperador Alexandre I.[7]

Ao raiar daquela manhã de domingo, 22 de junho, o secretário particular John Colville, diante da importância da notícia, ousou despertar o premier inglês Winston Churchill na residência oficial de Downing Street, 10, para confirmar a invasão da União Soviética. Desde a véspera seu chefe recebia nervosas informações da Inteligência britânica sobre a crescente concentração de tropas alemãs na fronteira.

Ao ouvir a boa nova, que trazia Stálin para a aliança contra Hitler, Churchill respondeu com um largo sorriso de satisfação. Era assim mesmo uma reação surpreendente do principal líder conservador do mundo, que construiu sua carreira política como histórico adversário das esquerdas e, principalmente, dos bolchevistas. À noite, em um discurso especial no rádio pelo poderoso microfone da BBC, o bulldog britânico reforçou para o mundo:

Ninguém foi um oponente mais consistente do comunismo nos últimos vinte e cinco anos. Não direi nenhuma palavra do que falei sobre isso. Mas tudo isso se desvanece diante do espetáculo que agora se desenrola. O passado, com seus crimes, suas loucuras, suas tragédias, desaparece … O perigo russo é, portanto, nosso perigo, e o perigo dos Estados Unidos, assim como a causa de qualquer luta russa por um lar é a causa da liberdade de homens e povos livres em todos os quadrantes do globo.

Churchill não repetiu no rádio o que dissera a Colville, logo após ser informado do início da grande invasão. Com o bom-humor que o caracterizava, reforçando a gravidade histórica do momento, o primeiro-ministro inglês confidenciou ao seu discreto secretário privado:

— Se Hitler invadisse o inferno, eu faria pelo menos uma referência favorável ao diabo na Câmara dos Comuns![8]

Winston Churchill, Pedro Simon e o demônio: um ‘favorável’, outro ‘apoiador crítico’

Ao fazer essa declaração privada, Churchill tinha 66 anos — idade em que Simon, meio século depois, ainda completava a metade de seu segundo mandato de senador. Naquele momento, mais do que suas idiossincrasias ideológicas, o líder do Reino Unido mostrava a aguda percepção e a grandeza histórica que o elevaram à condição de maior britânico de todos os tempos, em eleição promovida em 2002 pela rede BBC – à frente de figuras notórias como a Princesa Diana, Charles Darwin, William Shakespeare, Isaac Newton, John Lennon e o almirante Horatio Nelson.[9]

Em julho de 1999, ano em que Simon concluiu seu segundo mandato de senador, o grupo RBS e o jornal Zero Hora fizeram uma pesquisa de 1,7 milhão de votos coletados em sete semanas, com 360 urnas espalhadas pelo Rio Grande do Sul, para descobrir quem eram os 20 gaúchos mais marcantes do Século 20, o mesmo de Churchill.

Simon não aparece entre os 50 mais votados por seus conterrâneos.[10]

Entre o Churchill de 1941, com sua calibrada simpatia pelo diabo, e o Simon de 2018, apoiador crítico do satânico capitão, existe mais do que a sutileza semântica e a diferença temporal de largos 77 anos. O governante britânico soube reconhecer com determinação, na dura circunstância histórica da guerra, quem era o verdadeiro demônio a ser exorcizado. O ex-senador brasileiro não soube discernir com clareza, na polarizada refrega de uma disputa acesa no cenário eleitoral, quem era o mefistofélico vetor da truculência e do autoritarismo.

A mira certeira de Churchill apontou ao mundo quem era o verdadeiro inimigo da liberdade: o ex-cabo Adolf Hitler. A míope adesão de Simon ajudou a camuflar a fantasia verde-oliva de quem era a real ameaça à democracia: o ex-capitão Jair Bolsonaro.

Num país de poucas referências éticas e raros paradigmas morais, a desastrada declaração de Pedro Simon, às vésperas de uma incerta disputa eleitoral, funcionou como um crime de lesa-memória, ou lesa-pátria, por dissimular o genuíno abismo que se abria no plano da democracia com a eleição de um livre atirador de convicções fascistas, de ideário regressista e promessas extremistas, agravadas pela congênita ignorância e pelo rombudo negacionismo que amplificaram a dor e as mortes na mais grave crise sanitária da história.

Simon conhecia a folha corrida de Bolsonaro, o que o impedia de conceder seu louvado apoio. O veterano comandante do MDB tem a experiência política para analisar, com a frieza da idade e a sabedoria da vida, o crítico desempenho do capitão na trágica metade de seu mandato. Assim, a surpreendente, abjeta declaração eleitoral de Simon, antes do segundo turno de 2018, ficou reduzida ao apoio, sem qualquer valor crítico, o que rebaixa e deprime a biografia do senador no ocaso de sua carreira pública, no estertor de seus 91 anos de vida, comemorados em 31 de janeiro passado.

O bobalhão mascarado na praça

Pedro Simon, que era exemplo de conduta e atitude para jovens que o tinham como farol e linha reta na política, acabou descarrilando no tramo final de uma jornada que parecia segura e reta. De repente, como se fosse um Ricardo Salles qualquer, o sábio senador abriu a sólida porteira de ética de sua vida pública e deixou passar, num atropelo, a boiada da truculência desatinada de uma tropa sem freios e sem juízo que segue, bovinamente, o berrante de seu messias. O apoio crítico de Simon podava, a partir dali, o receio de quem ainda tinha um certo constrangimento, um pudico recato em declarar seu voto num capitão tão rugoso, tão áspero, tão achavascado. Com a porteira da ética escancarada, Simon, ostentando o flamante distintivo de sua pregressa autoridade moral, abriu passagem para a boiada da estupidez bolsonarista.

Nada retrata melhor o estágio de apodrecimento da política bolsonarizada do Rio Grande do Sul do que um fato público e deprimente ocorrido em Porto Alegre, no feriado de quarta-feira, 21 de abril, Dia de Tiradentes. Uma passeata a favor do presidente Bolsonaro acontecia, como de hábito, na avenida Goethe, no Parque Moinhos de Vento, bairro de alta classe média.

De repente, entre as pessoas fantasiadas de verde-e-amarelo, com as tradicionais faixas pedindo golpe de Estado e a exótica ‘intervenção cívico-militar com Bolsonaro’, apareceu algo diferente, em tom marrom: um imbecil coberto com uma capa e um capuz em forma de cone e duas aberturas para os olhos. Se a cor fosse branca, seria um perfeito exemplar da Ku Klux Klan, o grupo de supremacistas brancos surgido no sul dos Estados Unidos, logo após o final da Guerra Civil, em 1865, com seu discurso de ódio, cruzes em fogo, linchamentos de negros, enforcados e pendurados em árvores, e persistente pregação fascista.

Essa horda de celerados chegou ao pico da agitação, nos Estados Unidos, logo após a Primeira Guerra Mundial e antes da Grande Depressão, no período de 1920-1925, arrebanhando multidões ensandecidas de até 4 milhões de fanáticos. Pois um ridículo herdeiro deles, nesse feriado de Tiradentes, estava lá, no endereço mais tradicional do bolsonarismo de raiz da capital gaúcha. Armado de um microfone, o exótico exemplar do racismo importado, carinhosamente tratado pelos manifestantes como ‘Carrasco’, bradava na praça do Moinhos de Vento: “O que nós viemos fazer aqui, gente? Viemos acabar com o comunismo… Alguém quer o comunismo aqui ainda? ”. E os bolsonaristas, divertindo-se com a cena patética, respondiam num coro desafinado: “Nãããããooooo!”. Em volta do mascarado, nas árvores da praça, pendiam bonecos enforcados. Negros, claro.

Ninguém da civilizada e branca sociedade de Porto Alegre mostrou pública indignação ou revolta com essa exibição pública de estupidez – nem mesmo o ex-senador Pedro Simon. Os únicos a reclamar foram cinco negros – os vereadores Bruna Rodrigues e Daiana dos Santos (do PCdoB), Karen Santos e Matheus Gomes (do PSOL) e Reginete Bispo (do PT) –, integrantes da bancada afrodescendente da Câmara Municipal de Porto Alegre, que na sexta-feira, 23, registraram um boletim de ocorrência contra os organizadores da manifestação na Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância.

Porto Alegre: um imbecil, fantasiado de Ku Klux Klan, replica o racismo made in USA, com a marca da SS nazista

O grau de erosão ética da política no sul do país, como em outras capitais e Estados brasileiros, pode ser constatado pela naturalidade com que um bobalhão, fantasiado com a roupa exótica de um movimento estrangeiro, racista e radical, aparece numa praça tradicional de Porto Alegre e faz livremente, sem qualquer contestação, sua pregação de ódio, agora mais preocupado com os comunistas do que com os negros. A brandura com que se recebe tais manifestações de estupidez dá uma boa medida do grau de letargia ou apatia com que a sociedade, cada vez mais inerte ou cúmplice, acata o que antes era repelido com nojo e indignação.

Só isso explica a sonolência da política gaúcha para a manifestação da cúpula do MDB, em Osório, admitindo como ‘OK’ ter bolsonaristas entre os filiados do MDB, legenda que lutou contra a ditadura defendida por Bolsonaro. Uma derramada desfaçatez que começou lá em novembro de 2018, com a cínica declaração de Pedro Simon em apoio ao capitão da truculência, hoje impávido e galhofeiro, insano e frio diante da morte massiva de 400 mil brasileiros.

A afinidade perturbadora

Nesse sanatório geral em que internaram à força o Brasil e seu povo, é importante notar as semelhanças e diferenças que existem entre as cidades de Osório, em abril de 2021, e Wannsee, em janeiro de 1942.

Osório, no litoral gaúcho, é conhecida como a ‘Cidade das Lagoas’, coração de uma rede de 23 lagoas, muitas delas interligadas, e a ‘Cidade dos Bons Ventos’. São eles que amenizam o calor da primavera, compensando o termômetro elevado mesmo em abril.

Wannsee, 20 km a sudoeste da capital alemã, Berlim, se derrama placidamente sobre dois lagos, alimentados pelo rio Havel, com um centro de diversões aquáticas e uma das praias internas mais extensas da Europa. As diversões ali se congelam em janeiro, o mês mais frio do ano, quando a temperatura chega à média de 3 graus negativos.

A Osório de 2021 é, portanto, bastante diferente da Wannsee de 1942. Na cidade gaúcha, em 10 de abril, três próceres políticos, com as vestes despojadas do clima quente, gastaram quatro horas de uma conversa relaxada e franca, animada por um almoço, para carimbar como simples “tática eleitoral” a submissão de um grande partido, de história e tradição, a um aventureiro de visão militarista e credo de extrema-direita na luta pelo supremo cargo de presidente da República.

Na Wannsee de 1942, um número cinco vezes maior, todos homens, com roupas grossas e capas pesadas para enfrentar o frio, se reuniram de forma mais breve e acelerada numa grande mansão de três andares, uma villa, às margens do Grosser Wannsee, o lago maior do distrito. Em vez dos arrastados 240 minutos da quente Osório, o grupo da gélida Wannsee resolveu e discutiu suas questões em contados 90 minutos daquele sinistro 20 de janeiro de 1942 .

O mentor do encontro era o tenente-general Reinhard Heydrich, chefe do temido RSHA, o Escritório Central de Segurança do Reich, que controlava a Gestapo. Ele convocou os 14 homens que seriam os principais responsáveis pela organização, transporte, logística e execução da chamada ‘Solução Final’, o nome elegante e dissimulado que aqueles executivos da morte davam para a eliminação física dos judeus da Europa.

Havia ali sete militares, todos integrantes da SS, e oito civis com formação de doutorado. Apesar disso, eram todos – como se gaba o capitão Bolsonaro – especialistas em matar.                                             

A villa do Lago Wannsee: 15 homens dão o seu apoio crítico à ‘Solução Final’ do Holocausto do Reich de Hitler

Heydrich convocou para secretário da Conferência de Wannsee um metódico tenente-coronel da SS que tinha um especial talento para burocracia: Adolf Eichmann, o oficial assustadoramente normal que impressionaria Hannah Arendt duas décadas depois no julgamento de Jerusalém. A reunião, de fato, teve o objetivo de unificar todos os departamentos do Reich numa política integrada de extermínio, que já acontecia na prática. Eram executivos tratando friamente, como o inverno que açoitava a villa do lado de fora, um plano pan-europeu de genocídio. Ao final do encontro, definidos os princípios técnicos necessários para o extermínio, Heydrich deu a Eichmann as instruções sobre o que deveria constar da ata da conferência: nada verbal, nada explícito. “Certas conversas e jargões em excesso tiveram de ser traduzidas por mim em linguagem de escritório”, reconheceu Eichmann, burocraticamente, no tribunal de Jerusalém.

A intenção implícita da conferência convocada por Heydrich era garantir que, pela simples presença em Wannsee, todos os presentes do mecanismo de morte do Reich fossem cúmplices e acessórios dos assassinatos que estavam prestes a acontecer. Quando encerrou o encontro, satisfeito com o consenso macabro atingido sem maiores discussões, Heydrich relaxou – e se aqueceu com um conhaque.

Existem flagrantes diferenças na época, no clima, na temperatura, na duração, no número de participantes e nos objetivos das reuniões da brasileira Osório e da germânica Wannsee, distantes 11 mil km uma da outra e separadas por quase 80 anos no tempo.

Mas, existe uma única, uma gritante, uma perturbadora afinidade entre a longa conversa de quatro horas dos três chefes do MDB sulista e o rápido encontro de 90 minutos dos 15 comandantes da cúpula de execução do III Reich. Em Osório e em Wannsee, por razões diversas, por motivos diferentes, por circunstâncias muito singulares, sobrevoou o local e seus participantes o espectro assustador que Hannah Arendt detectou em Jerusalém: a banalidade do mal.

Na paz, como na guerra, alguns homens lidam com as causas e os efeitos de suas decisões anestesiados para as consequências éticas e morais que tornam a humanidade melhor ou pior. Por erro de julgamento, por equívoco acidental ou por deliberada intenção, atos e fatos marcam para sempre o destino de pessoas, de grupos, de corporações, de Estados e de povos inteiros, definindo a marcha da História.

Nesse processo, o homem sempre perde o passo quando sucumbe à banalidade do mal.

E compromete sua humanidade quando é corroído, por dentro, pelo mal da banalidade.

*Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é gaúcho de Caxias do Sul, como Pedro Simon, e nunca apoiou Jair Bolsonaro.
cunha.luizclaudio@gmail.com

 

REFERÊNCIAS

[1] ARENDT, Hanna. Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil. . Nova York: Viking Press, Penguin Group, 1963, p. 276.

[2] SIMON, Pedro. “Não se anistia o nazismo. Nem a tortura”. O Globo. Opinião, p. 2. Publicado em 28 de abril de 2010. https://www.oabrj.org.br/noticias/artigo-nao-se-anistia-nazismo-nem-tortura-pedro-simon. Acesso em 26/4/2021.

[3] BONA GARCIA, João Carlos. “Bona Garcia, fundador do MDB-RS, lamenta apoio a Bolsonaro e abre voto em Haddad”. Entrevista a Luís Eduardo Gomes. Publicado no site SUL21, em 15/outubro/2018. https://www.sul21.com.br/entrevistas-2/2018/10/bona-garcia-fundador-do-mdb-rs-lamenta-apoio-a-bolsonaro-e-abre-voto-em-haddad/ Acesso em 31/03/2021.

[4] BRUM TORRES, João Carlos. “Por apoiar Bolsonaro, MDB-RS perde um filiado histórico”. In Coluna de Rosane de Oliveira. Publicado em Zero Hora, 16/outubro/2018. https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/rosane-de-oliveira/noticia/2018/10/por-apoiar-bolsonaro-mdb-rs-perde-um-filiado-historico-cjnc3yi0d05is01pirxu4i98c.html Acesso em 31/03/2021.

[5] DUARTE, José Bacchieri. A fascinante história de Pedro Simon: Sua vida. Seu tempo. “Ode ao Campeão”, p. 13-15. Porto Alegre: Ed. AGE, 2001.

[6] PIGNOTTI, Darío. “Un testimonio en el caso Goulart”. Publicado no jornal Pagina 12, em 13 de dezembro de 2013. https://www.pagina12.com.ar/diario/elmundo/4-235550-2013-12-13.html. Acesso em 21/01/2021.

[7] CLAUSEWITZ, Carl Phillip von (1780-1831). A campanha de 1812 na Rússia e as Guerras de Libertação de 1813-1815 (Der feldzug 1812 in Russland und die befreiungskriege von 1813-15), p.52. Berlim: Ed. F. Dümmler, 1906.    

[8] ZIMMERMAN, Dwight Jon. “Churchill’s Deal with the Devil: the Anglo-Soviet Agreement of 1941. Publicado no Defense Media Network, em 12 de julho de 2011. https://www.defensemedianetwork.com/stories/churchills-deal-with-the-devil/. Acesso em 23/04/2021.

[9]BBC News, em 21 de agosto de 2002. 100 Great British heroes. Publicado em ordem alfabética em  http://news.bbc.co.uk/2/hi/entertainment/2208671.stm. A lista em ordem numérica está publicada em https://en.wikipedia.org/wiki/100_Greatest_Britons.  Acessos em 15/04/2021.

[10] Entre os 20 mais votados, nomes conhecidos como os dos ex-presidentes Getúlio Vargas e João Goulart, o poeta Mário Quintana, o escritor Érico Veríssimo, os cantores Teixeirinha e Elis Regina, a Miss Universo Ieda Maria Vargas e o compositor Lupicínio Rodrigues. Entre os 50 mais citados, aparecem Leonel Brizola, Luiz Carlos Prestes, os jogadores Tesourinha e Everaldo, o escritor Barão de Itararé e a apresentadora Xuxa.  In “Lista dos 20 gaúchos que marcaram o século XX, segundo o jornal Zero Hora”. Publicado https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_dos_vinte_ga%C3%BAchos_que_marcaram_o_s%C3%A9culo_XX_segundo_o_jornal_Zero_Hora. Acesso em 15/04/2021.

A imprensa e o “efeito contágio”

Por Tiago Lobo

O jornalismo brasileiro vem explorando exaustivamente casos de assassinatos em massa e, dependendo de como isso é feito, pode ser muito nocivo.  

Desde 1985 a American Psychological Association (APA) alerta para o fato de que crianças e adolescentes podem tornar-se menos sensíveis à dor alheia ou sentir-se amedrontados após a exposição a programas violentos na televisão. Em relatório a APA indicava que programas infantis freqüentemente apresentavam até vinte cenas contendo agressões, a cada hora.

Para Donna Killingbeck, pesquisadora da Universidade do Leste do Michigan, nos E.U.A., medidas de segurança como revistas em estudantes, policiamento dentro das escolas e contratação de empresas especializadas, como resposta adotadas após tiroteios e ameaças, geram mais problemas e provocam uma percepção distorcida por parte da população que compreende as tragédias através da mídia.

Isso pode levar a população a superestimar o risco de morte que as crianças e adolescentes correm nas escolas. A conclusão do estudo, publicado em 2001, “The role of television news in the construction of school violence as a “moral panic”” (“O papel do telejornalismo na construção da violência escolar como “pânico moral””) é que estas medidas não têm ajudado a evitar tragédias.

Um ano depois de Killingbeck levantar o debate sobre a mídia e as medidas de segurança adotadas que seriam prejudiciais, três pesquisadores de Harvard concluiram que tiroteios em massa são eventos raros e representam um percentual muito baixo no leque de causas de mortes de crianças e adolescentes em geral, e mesmo de crianças e adolescentes na escola.

David James Harding, Jal Mehta e Cybelle Fox em “Studying rare events through qualitative case studies: Lessons from a study of rampage school shootings” (“Estudando eventos raros através de estudos de caso qualitativos: Lições de um estudo de tiroteios na escola”) chamam atenção ainda para os perigos de percepções distorcidas que podem reforçar a justificativa de medidas extremas ineficientes.

A física Sherry Towers, da Universidade do Estado do Arizona (E.U.A) estudou o “efeito de contágio” de tiroteios em massa e concluiu que a cobertura da mídia nacional acaba aumentando a frequência dessas tragédias.

“Nossa pesquisa examinou se havia ou não evidências de que assassinatos em massa podem inspirar cópias. Encontramos evidências de que os assassinatos que recebem atenção da mídia nacional ou internacional realmente inspiram eventos similares em uma fração significativa do tempo”, disse em entrevista ao site da Universidade do Arizona, em 2015.

Ela compara crimes inspirados em tragédias anteriores a uma doença, onde você geralmente precisa de um contato próximo para espalhá-la e afirma que os meios de comunicação agem como um “vetor” que pode transmitir a infecção através de uma área muito grande. Mas ressalta que pessoas suscetíveis à ideação para cometer esses crimes são bastante raras na população. É por isso que ela conclui que é necessária muita cobertura midiática sobre uma ampla área geográfica para que esse tipo de “contágio” ocorra.
The Intercept Brasil propõe caminho
No dia 23 de março, o The Intercept BR enviou um editorial aos seus leitores via boletim semanal, por e-mail. Assinado pelos jornalistas Tatiana Dias e Alexandre de Santi, o texto “Como derrubamos duas páginas de ódio sem dar audiência para elas” compartilhou um autoexame pela equipe do veículo e, ao mesmo tempo, sugeriu caminhos efetivos para a imprensa lidar com conteúdos de ódio e criminosos que buscam notoriedade.

O Intercept decidiu abrir mão da “notícia” e, de certa forma, se transformou nela: pressionaram Google e Facebook para remover duas páginas que disseminavam conteúdo de ódio e conseguiram.
“disseminar um conteúdo de ódio – ainda que for como denúncia – não é mais importante do que agir para que ele seja removido o mais rápido possível, cobrando responsabilidade de quem deve ser cobrado. Se Google e Facebook não tivessem derrubado os vídeos, publicaríamos uma reportagem denunciando a omissão. Felizmente, não foi necessário. Esperamos que não seja necessária a pressão de um jornalista para que isso aconteça”.

A política editorial adotada pelo veículo pode ser ancorada em um sem número de estudos que concluem que atiradores em massa e propagadores de ódio buscam fama e que a ausência deste debate na cobertura da imprensa nacional é extremamente perigosa. Grandes grupos de comunicação com seus rádios, tvs e jornais repercutiram cada suposta novidade, ou meras especulações sobre Suzano sem observar critérios pré-estabelecidos no código de ética do jornalismo brasileiro e recomendações internacionais para lidar com este tipo de assunto. Ato falho, talvez, mas leviano.

O código de ética do jornalismo brasileiro, documento máximo do profissional da imprensa, deixa claro em seu artigo 2º, incisos I e II que  “a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação (…) e que as informações divulgadas “devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público”.

Interesse público é, antes de mais nada, uma norma jurídica e um princípio do sistema constitucional brasileiro que significa que os direitos e garantias individuais de cada cidadão conhecido como “interesse particular”, se somam e formam o que se entende por interesse público.
Celso Antônio Bandeira de Mello, jurista e professor da PUCSP, o define como “a soma de interesses individuais, a ser representado por uma instituição jurídica comum: o Estado, o Poder Público”.

Estes interesses individuais referem-se ao campo dos direitos constitucionais e adquiridos, como mais segurança nas ruas, 13º salário e etc. Não englobam desejos e anseios abstratos. E aí é que mora a confusão onde se confunde “interesse público” com interesse “do” público. Este último não representa coletividade, mas audiência.

Portanto, outro trecho do texto do The Intercept merece destaque:
“o papel da mídia e dos intermediários que também funcionam como mídia, como Google e Facebook, precisa ser discutido. Se a sociedade valoriza a violência, nós vamos dar a ela o que ela quer ver, exacerbando o ódio? Ou assumir uma postura mais responsável?”, defende o The Intercept BR. 

O código de ética da profissão, novamente, indica em seu artigo 7º, inciso V, que o jornalista não pode “usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime”.

O artigo 11º diz ainda que o jornalista não pode divulgar informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”.

Portanto, o efeito indireto da cobertura desregrada da imprensa é, de forma não intencional, uma afronta ao seu próprio documento deontológico.
Dont Name Them e No Notoriety
Você deve ter percebido que a série de reportagens “As redes do ódio” não cita o nome de nenhum dos atiradores e isso é proposital.
Decidimos aderir a algumas diretrizes de sites como Dont Name Them (“Não nomeie-os”), e No Notoriety (“Sem notoriedade”) para não darmos, justamente, o que eles queriam: fama, notoriedade, reconhecimento e validação.

Sob autorização do psicólogo Dr. Daniel Reidenberg, diretor-executivo do SAVE.ORG (Suicide Awereness Voices of Education), gerente do Conselho Nacional de Prevenção ao Suicídio dos E.U.A. e secretário geral da Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio (IASP), a ONG de Jornalismo e Direitos Humanos Pensamento.org, traduziu um documento, antes disponível apenas em inglês no site www.reportingonmassshootings.org, que oferece recomendações sobre como a mídia pode cobrir um incidente em que uma pessoa (ou um pequeno grupo) atira em vários outros em um ambiente público. Esse projeto foi liderado pelo SAVE e incluiu especialistas nacionais e internacionais do AFSP, do CDC, da Universidade de Columbia, da Força-Tarefa de Mídia do IASP, JED, NAMI-NH, SPRC e vários especialistas do setor de mídia.

Você pode realizar o download, gratuitamente, no link Portuguese (BR) translation.

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Acompanhe as reportagens da série:

RS ocupa o 4º lugar no “ranking do ódio”

Por Tiago Lobo

Durante três meses – de abril a junho de 2016 – o Comunica Que Muda (CQM), uma iniciativa da agência de publicidade nova/sb, monitorou dez tipos de intolerância nas redes sociais e lançou um dossiê. Foram analisadas 542.781 menções. Nos dez temas pesquisados, o percentual de abordagens negativas estava acima de 84%. A negatividade nos temas que tratam de racismo e política era de 97,6% e 97,4%, respectivamente.

A intolerância de maior audiência na época era a política (quase 274 mil menções), mais de três vezes superior à misoginia, que aparece em segundo lugar, com quase 80 mil menções. Vale lembrar que o país recém passara pelo processo de Impeachment da ex-presidente Dilma Roussef.

A quantidade em números absolutos colocava o Rio Grande do Sul em 4º lugar com 14.479 menções. Analisando a proporcionalidade em relação à sua população, que era de 11.247.972 segundo dados do IBGE de 2015, o estado gaúcho desce 2 posições, ficando em 6º mais intolerante na internet.

Imagine que o Facebook recebe, por dia, cerca de 1 milhão de denúncias de postagens de ódio ou conteúdo ilegal. Devido ao aumento dos casos, em fevereiro de 2016 ele inaugurou no Brasil a Central de Prevenção ao Bullying, que já existia em outros 50 países. Em maio do mesmo ano as gigantes Microsoft, Google, Twitter e Facebook assinaram um documento elaborado pela União Europeia para que o discurso de ódio fosse controlado com mais eficiência.

Desde 2006  A ONG SaferNet Brasil*, mantém um canal para receber denúncias relacionadas a crimes de ódio online. Já foram mais de 2 milhões de casos reportados. 28% são sobre racismo e 69% das vítimas que procuram ajuda são mulheres. E estes dados são apenas de uma iniciativa que monitora a surface web, a camada que todos nós navegamos.

De acordo com dados da ONG, entre 2010 e 2013 houve um aumento de mais de 200% no número de denúncias contra páginas que divulgaram conteúdos racistas, misóginos, homofóbicos, xenofóbicos, neonazistas, de intolerância religiosa, entre outras formas de discriminação contra minorias em geral.

“De maneira geral, o discurso de ódio costuma ser definido como manifestações que atacam e incitam ódio contra determinados grupos sociais baseadas em raça, etnia, gênero, orientação sexual, religiosa ou origem nacional”, diz o site da SaferNet Brasil.

Protegidas, pelo suposto anonimato, pessoas se sentem seguras para ofender, atacar, criar boatos e propagar preconceitos contra minorias. Isso é cyberbullying. Um crime. Mas como diria o escritor italiano Umberto Eco ao receber um título de doutor honoris causa em comunicação e cultura na Universidade de Turim, em junho de 2015, “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. Em alguma medida ele pode ter razão.

*Caso encontre imagens, vídeos, textos, músicas ou qualquer tipo de material que seja atentatório aos Direitos Humanos, faça a sua denúncia aqui.

Acompanhe as reportagens da série:

Nota de repúdio à intolerância e violência nas eleições de Porto Alegre

O Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito vem a público manifestar seu veemente repúdio ao clima de intolerância e violência verificado neste período de eleições para a Prefeitura de Porto Alegre.
No dia 17 de outubro, Plínio Zalewski, coordenador do programa da campanha do candidato Sebastião Melo, do PMDB, foi encontrado morto. Sem que tenha sido elucidada até o momento a causa de sua morte, manifestações públicas de pessoas que com ele conviveram registram o alto grau de tensão em que se encontrava o coordenador.
Segundo estas manifestações, Plínio Zalewski viveu um clima de perseguição, com a invasão de seu Facebook, difamações feitas por integrantes do Movimento Brasil Livre/MBL e ameaças que foram, inclusive, denunciadas em ocorrência policial, além dos três processos judiciais movidos contra ele pelo candidato Nelson Marchezan Jr, do PSDB.
Hoje, dia 25 de outubro, a deputada Juliana Brizola, do PDT, candidata a vice-prefeita na chapa de Sebastião Melo, registrou boletim de ocorrência, em função dos agressivos ataques verbais sofridos na Esquina Democrática, por parte de ativistas que a candidata afirma pertencerem ao mesmo grupo que difamou Plínio Zalewski.
Além das agressões a pessoas, foram denunciados, durante a campanha eleitoral, um ataque com tiros ao comitê do candidato Nelson Marchezan Jr e uma invasão de integrantes da equipe de Marchezan Jr. à sede do PMDB.
A escalada de agressões e violência vivida na campanha à Prefeitura de Porto Alegre expressa o clima de truculência de tipo fascista que vem crescendo no Brasil e do qual têm sido vítimas lideranças políticas, intelectuais, artistas, estudantes e outros cidadãos participantes de movimentos reivindicatórios no país.
A memória histórica não permite que nos calemos frente à possibilidade de crescimento de forças e regimes fascistas em nosso estado e no Brasil. Por isto conclamamos todos os democratas a expressarem seu repúdio às atitudes e movimentos com características de cunho fascista e a se unirem em torno da defesa da democracia e dos valores da convivência pacífica e civilizada.
Porto Alegre, 25 de outubro de 2016
Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito
 

As estruturas não descem às ruas

Paulo Timm – Economista
“Se erros foram cometidos devem ser corrigidos e não mais repetidos”
( Ex-senador E. Suplicy, ao comentar sua eleição recente para a Câmara de Vereadores de S.Paulo; foi o mais votado com mais de 300 mil votos)
1. Encerrado o primeiro turno das Eleições 2016 três observações se impõem preliminarmente: primeira, o grande vencedor deste pleito foi a rejeição de 40 milhões de eleitores, entre Abstenções + Nulos + Votos em Branco, ao que aí está, o que é um nítido alerta para a urgência de Reforma Política e Eleitoral; segunda, o PT levou uma surra, talvez mais por rejeição às suas práticas do que pela “revoada liberal”, tanto nas capitais como no Nordeste, devendo alertá-lo para uma renovação no discurso de suas lideranças no sentido de avaliar as razões internas para este refluxo e não apenas acusações a terceiros; terceira: o sistema pluripartidário, tão criticado por dificultar a governabilidade, está consagrado no país.
2. Quanto à derrocada do PT, fato mais marcante do pleito de 2016, não se deve falar nem em alvorada de um novo tempo, nem em crepúsculo da sigla. Nem invenção, nem reinvenção. Apenas percalços. Internamente, será muito difícil este Partido mudar sua dinâmica interna, com a acirrada disputa de correntes, algumas delas francamente principistas quanto ao caráter de “classe” do Partido, voltado ao cumprimento de missão messiânica, e quanto à sua vocação para a construção do “socialismo”. Externamente, no contexto político nacional, o PT, apesar de ter perdido milhões de eleitores e metade das prefeituras que ocupou em 2012, continuará a ser um grande partido. PMDB e PT, aliás, continuarão a ser os dois maiores Partidos no país – e por longo tempo. Quase “irreversíveis”. Se organizaram, ao longo do tempo, no vasto território nacional e detêm, ambos, importantes canais de controle do processo eleitoral. Voto não é apenas um apertar solitário de botão na calada da urna. É uma “rede”, sempre mais ou menos aprisionada à “interesses”. Não é fácil montar e manter isso. Fica aqui a lembrança para que se assista com atenção duas séries no NETFLIX: “Marselha” e “House of Cards”. Tratam do assunto.
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3. Quanto aos outros Partidos, o PSDB, segundo em votos e controle de Prefeituras, mas “terceiro” na hierarquia simbólica, até pelo peso de seus grandes nomes, dentre eles o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, a dupla José Serra/Aécio Neves, ambos ex candidatos à Presidência da República com 50 milhões de votos, e agora o Governador de São Paulo, já está com maior número de eleitores, mas ainda não conseguiu se organizar nacionalmente. O PSOL, em contrapartida, surpresa da vez, pela vitória relativa do deputado Freixo, que disputará, com desvantagem, com Marcelo Crivella o segundo turno na cidade do Rio, ainda é um fenômeno urbano, tipo PODEMOS na Espanha. Deverá até se consolidar como uma alternativa de esquerda mais consistente e sem os pecados do PT, mas, tendo saído de seu ventre, padece de vícios semelhantes, como a disputa interna marcada pela intolerância doutrinária, pela qual perdeu até ex candidata à Presidência em 2006, Heloísa Helena. Mas o PSOL não tem uma liderança popular de massas, não tem visão para a construção de um Projeto Nacional, não tem articulação com movimentos sociais e sindicatos, não tem envergadura no país para ocupar o vazio deixado pelo PT. Pior: terá, no máximo, duas Prefeituras…
4. Uma característica pouco notada destas Eleições Municipais 2016 foi a consagração de um conjunto de partidos com forte expressão eleitoral, além dos tradicionais PMDB – PT – PSDB , que dominam há mais de três décadas a vida pública do país. Ela é o resultado de duas medidas: a flexibilização para a fundação e funcionamento dos Partidos, sem qualquer cláusula de restrição, e do apoio financeiro do Governo, através, não só do generoso Fundo Partidário, cujo Orçamento já beira o R$ 1 bilhão, mas também ao subsídio que dá às emissoras de rádio e TV para custear a propaganda eleitoral obrigatória. O PSD, o PDT, o PSB, o PR , o DEM e o PTB controlarão entre 200 e 400 municipalidades cada um. Outro grupo menor, o PPS, PRB, PV, PSD e PCdoB , em torno de 100. Ora, isso revela uma diversificação partidária muito grande que está combinando opções de caráter ideológico com alternativas de interesses até pessoais. Debita-se à essa diversificação permissiva a ingovernabilidade do país e que agora estará se deslocando para “Prefeituras de Coalização”, agravando o loteamento de cargos e do Estado. Talvez. Mas há que se considerar, também, que este processo é uma porta à abertura de lideranças que, de outra forma, seriam sufocadas pelas oligarquias que dominam os partidos mais antigos e mais fortes. Nesse sentido, ainda que paradoxalmente, a diversificação partidária é uma válvula à democratização da vida pública e, por vias tortas, um dos mecanismo de reforma política no país.
5. É possível se falar em retrocesso da esquerda, à vista do fracasso do PT, nessas eleições, como consequência de uma onda conservadora que varre a América Latina? Depende do que se entende como “esquerda”, tal como o PT a empolgou. Certamente, os brasileiros disseram um rotundo “Não” ao discurso do “Nós contra Eles” do PT que acompanhou a estigmatização da classe média, tão cara ao empreendedorismo, à meritocracia e aos valores republicanos. Contudo, várias pesquisas continuam afirmando que os brasileiros almejam um modelo político-econômico com economia de mercado e forte intervenção do Estado como instrumento de regulação, promoção da cidadania e defesa dos mais vulneráveis, justamente o que os petistas diziam defender. Daí, aliás, os cuidados do Presidente Temer quanto às “Reformas” inseridas no seu “Ponte para o Futuro”, tão proclamadas, mas em rigoroso ponto morto. Não há clima na nação, nem no Congresso Nacional, para aventuras liberalizantes, ao gosto do novo PSDB de João Dória, Prefeito eleito de São Paulo. Sua vitória acachapante na quase totalidade das zonas eleitorais da cidade se, por um lado, consagra a tendência politicamente mais conservadora desta capital frente ao Rio, Porto Alegre e Recife, históricos redutos da esquerda, por outro, sugere a incapacidade do Prefeito Haddad para se firmar na periferia, com seus projetos urbanisticamente avançados. O espaço aberto foi ocupado pela astúcia tucana. E falando nos redutos históricos da esquerda, veja-se: o Rio, mantém sua tradição rebelde, ao levar Freixo para o segundo turno, Recife sustentou o próprio PT no segundo turno e vai disputar com outro candidato de esquerda e apenas em Porto Alegre e outras cidades de maior porte do cenário rio-grandense, percebe-se, mesmo um retrocesso da esquerda. Isso me lembra uma velha queixa dos maragatos, que combatiam em armas os chimangos, arautos da esquerda no Estado do RS, instalados no Palácio Piratini entre 1889 até 1930, inicialmente pela mão de ferro de Júlio de Castilhos, depois de Borges de Medeiros, depois Getúlio Vargas: “Não é por acaso que eles são autoritários…” Lembre-se, entretanto, voltando à cena nacional, que o PCdoB, aliado incondicional do PT, passou de 51 para 80 prefeituras, o PDT, outro aliado, embora mais vacilante, cresceu de 330 para 334, o PSB fez 414, as quais, somadas as 256 vitórias do PT perfazem 1/5 do total das municipalidades do país. O que não é pouco. Não carece de se falar em grande retrocesso da esquerda no país. Além dos resultados eleitorais, aí estão os movimentos sociais em inédito protagonismo, principalmente jovens estudantes. Estamos, sim, diante de uma nova realidade na esquerda brasileira frente à perda de hegemonia do PT e emergência de novos protagonismos aos quais deverá se articular, de uma ou outra maneira, o PPS, em nova rota, a REDE de Marina Silva, embora em declínio, e o próprio PV, sempre cioso de sua maior independência. Isso sem falar na esquerda peemedebista, à la Requião no Paraná.
Conclusão
Passada a “tempestade” destas eleições – surpreendentes em todo sentido – , do impacto do Impeachment de Dilma, d aLAVAJATO, que daqui a pouco serena seu ímpeto deixando uma sequência de sentenciados em suas poltronas sob o controle de meras tornezeleiras eletrônicas, da brutal recessão econômica que o PT ainda se recusa a admitir e de admitir sua parcela de responsabilidade, voltaremos às ” estruturas”, marcadas pela presença, à esquerda, pelo PT e movimentos sociais e, oxalá, novos agentes, ao centro pelo PMDB, suas Prefeituras e amplas classes médias ao longo do país e , à direita, pelo PSDB, apoiado pela grande mídia e grandes fortunas. Elas, as “estruturas”, aliás, como diziam os estruturalistas teóricos em maio de 68, na Paris convulsionada, “não descem às ruas”. Mas estão lá…E se não aprenderem a conviver com um mínimo de civilidade republicana, não construiremos a democracia.
Com a recuperação do bom senso, daqui a pouco estaremos, todos, discutindo a sucessão presidencial de 2018.

Governo caiu sem resistência

Porto Alegre amanheceu deserta, as casas com as janelas fechadas. Homens de Bento Gonçalves haviam entrado na cidade à noite. Uma pequena patrulha, chefiada pelo visconde de Camamú, havia tentado enfrentá-los quando alcançavam a Ponte da Azenha, mas foi um fiasco. Dois de seus homens foram mortos e o visconde escapou ferido, todo embarrado, com a roupa rasgada, sem uma bota e sem chapéu. “Ao irromper, roto, ensanguentado, esbaforido e só, às primeiras horas de 20 de setembro no palácio presidencial, o visconde de Camamú tinha mesmo que deixar todos (…) completamente espavoridos, como arauto do pavoroso desastre, cuja extensão ainda ninguém poderia medir, nem mesmo as suas consequências”, anota Wiederspahn.

Visconde de Camamu

Para completar o pânico com a chegada do desarvorado visconde, ouviu-se um tiro no palácio. Foi descuido de uma sentinela, mas a confusão foi total: “… todos procuram um abrigo, abandonando a sede do Governo. Fecham-se as portas e janelas, tangem os sinos com o alerta, esboçam-se algumas medidas para a defesa da cidade. Arrastam-se algumas peças de artilharia com alarido para proteger a pessoa do presidente. Este faz distribuir granadas de mão entre os poucos que ainda o rodeiam, indecisos.”

Quando clareou o dia, os farroupilhas ocupavam pontos estratégicos para impedir a entrada de gêneros alimentícios na cidade, achando ainda que o presidente iria resistir. No entanto, as guarnições locais aderiram aos rebeldes. “Vendo minguarem-se cada vez mais os elementos de que ainda poderia dispor, o presidente Fernandes Braga convocou de novo os militares, seus partidários, decidindo concentrar a resistência em torno do arsenal, à espera de reforços. Só então teve ele a consciência do abandono em que se achava, pois 17 homens apenas se apresentaram para constituir a sua escolta”, relata Wiederspahn.

Maior revolta depois de Palmares

O poder rebelde chegou a fundar uma república, mas não conseguiu dominar a Província inteira

Não foram dez anos ininterruptos de guerra. Às vezes, os combates se suspendiam por meses. No inverno, por exemplo, a luta cessava ou se restringia a mínimos confrontos. A guerra teve também diversas fases. Começou como uma rebelião em 20 de setembro de 1835. Tornou-se um confronto armado em fevereiro do ano seguinte. Até então, negociava-se a indicação de um governador que fosse do agrado dos revoltosos.

Definiu-se como uma revolução com a proclamação da República Rio-grandense em 11 de setembro de 1836. O poder rebelde chegou a proclamar uma nação independente, mas nunca dominou a Província inteira, e sua “mais duradoura dominação” foi na parte sudoeste do Rio Grande do Sul, na região da campanha, contígua às repúblicas do Prata.

“Depois de Palmares, foi o maior movimento armado entre as revoltas internas que o Brasil viveu”, de acordo com Riopardense de Macedo.

Outro historiador, Dante de Laytano, contou “56 encontros bélicos” ao longo de 3.466 dias de revolução, com um saldo estimado entre três mil e cinco mil mortos (há muita divergência entre os pesquisadores quanto a datas e números).

No ponto culminante da guerra, havia quase 20 mil combatentes de ambos os lados.

Com a rendição dos rebeldes gaúchos, em 28 de fevereiro de 1845, pela primeira vez, desde a Independência, todo o central.

“Às armas, cidadãos! Às armas, que a Pátria se acha em perigo!”

Tela Fogo no pasto, de Guido Mondin
Tela Fogo no pasto, de Guido Mondin

Segundo Tristão de Alencar Araripe, o presidente não conseguiu reunir mais do que 270 homens, menos da metade das forças a favor dos revolucionários. Às onze horas da noite, restavam apenas o 1º comandante, capitão Francis Félix da Fonseca, o 2º comandante, tenente Alvarenga, um cabo, o corneteiro e um soldado. “Decidiu, pois, embarcar na escuna Riograndense, levando consigo todo o numerário existente no Tesouro e recomendando ao inspetor em exercício, Joaquim Manuel de Macedo, que não abandonasse a repartição e seus subalternos”. Comboiado pela canhoneira 19 de Outubro, seguiu para Rio Grande, deixando uma proclamação: “Às armas, cidadãos! Às armas, que a Pátria se acha em perigo!”.

Os farroupilhas ocuparam a cidade e Bento Gonçalves divulgou um manifesto, tentando acalmar a população: “Os cidadãos, que se acham armados, são vossos irmãos, amam e respeitam a lei, e para fazê-la respeitar se viram obrigados a empunhar as armas. Com a fuga do ex-presidente, dr. Antonio Rodrigues Fernandes Braga, a arbitrariedade desapareceu e, nas nossas mãos, a oliveira substituiu a espada”.

Cinco dias depois, Rio Pardo, São Gabriel e Rio Grande, onde se refugiara o presidente, são os únicos redutos de resistência à revolução. Bento Gonçalves, já dono da situação, faz um novo pronunciamento, jogando a culpa de tudo na intolerância do presidente deposto e manifestando fidelidade ao império:

“A inquietação que, desde os primeiros meses da presidência do Sr. Braga se tinha derramado na maior parte desta Província, e que por todas vezes a prudência e o amor à ordem haviam acalmado, como acendida por virtude elétrica, apareceu novamente e se fez geral. A nossa Pátria pareceu ao esperto observador como um enfermo a quem a febre ardente mortifica, e que alternativamente espera e teme que a crise que o atormenta lhe dê saúde ou morte.

Em vão, compatriotas, buscáveis a tábua de salvação, ela estava na Carta, mas naqueles momentos a Carta era letra morta, as vias legais vos eram obstruídas, a apatia do governo central não vos deixará traduzir a mais pequena esperança de melhoramento, os males vos ameaçavam já de perto, qualquer dilação vos ia dominar, e destruístes, cidadãos, a força com a força. Cumprimos, rio-grandenses, um dever sagrado repelindo as primeiras tentativas de arbitrariedades em nossa cara Pátria; ela vos agradecerá e o Brasil inteiro aplaudirá o vosso patriotismo e a justiça que armou vosso braço para depor uma autoridade inepta e facciosa, e restabelecer o império da lei.

Compatriotas, eu acrescentarei à glória de haver sido em outros tempos vosso companheiro nos campos de batalha, e haver-vos conduzido contra nossos inimigos externos, a glória ainda mais nobre e perdurável de haver concorrido para libertá-la dos seus inimigos internos, e salvá-la dos males da anarquia. O governo de facção desapareceu de nossa cena política, a ordem se acha restabelecida.

Transpondo a Ponte da Azenha, de Guido Mondin
Transpondo a Ponte da Azenha, de Guido Mondin

Com este triunfo dos princípios liberais, minha ambição está satisfeita, e no descanso da vida privada a que tão somente aspiro, gozarei o prazer de ver-vos desfrutar os benefícios de um governo ilustrado, liberal e conforme os votos da maioria da província.

Respeitando o juramento que prestamos ao nosso Código Sagrado, ao Trono Constitucional e à conservação da integridade do Império, comprovais aos inimigos de nosso sossego e felicidade que sabeis preferir o jugo da Lei ao dos seus infratores, e que ao mesmo tempo nunca esqueceis que sois os administradores do melhor patrimônio das gerações que vos devem suceder, que este patrimônio é a liberdade, e que estais na obrigação defendê-la a custa de vosso sangue e de vossa existência…”

Mal sabia ele que estava começando uma guerra que ia separar a Província do Rio Grande do Sul do Império brasileiro, uma guerra que iria durar quase dez anos.

Confira a íntegra do discurso de Dilma em julgamento do impeachment no Senado

Da Agência Brasil
A presidenta afastada Dilma Rousseff discursou na manhã desta segunda-feira (29) por cerca de 45 minutos no plenário do Senado, durante a última fase do julgamento do processo de impeachment. Em sua  fala, Dilma , ressaltou que foi ao Senado “olhar diretamente nos olhos dos que a julgarão e negou ter cometido crimes dos quais é acusada, segundo ela, “injusta e arbitrariamente”. “Hoje, o Brasil, o mundo e a história nos observam. E aguardam o desfecho desse processo de impeachment”, disse.
Ouça a íntegra do discurso 
Confira a íntegra do discurso de Dilma do Senado:
Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski
Excelentíssimo Senhor Presidente do Senado Federal Renan Calheiros,
Excelentíssimas Senhoras Senadoras e Excelentíssimos Senhores Senadores,
Cidadãs e Cidadãos de meu amado Brasil,
No dia 1o de janeiro de 2015 assumi meu segundo mandato à Presidência da República Federativa do Brasil. Fui eleita por mais 54 milhões de votos.
Na minha posse, assumi o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, bem como o de observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.
Ao exercer a Presidência da República respeitei fielmente o compromisso que assumi perante a nação e aos que me elegeram. E me orgulho disso. Sempre acreditei na democracia e no Estado de direito, e sempre vi na Constituição de 1988 uma das grandes conquistas do nosso povo.
Jamais atentaria contra o que acredito ou praticaria atos contrários aos interesses daqueles que me elegeram.
Nesta jornada para me defender do impeachment me aproximei mais do povo, tive oportunidade de ouvir seu reconhecimento, de receber seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade.
Até porque, como todos, tenho defeitos e cometo erros.
Entre os meus defeitos não está a deslealdade e a covardia. Não traio os compromissos que assumo, os princípios que defendo ou os que lutam ao meu lado. Na luta contra a ditadura, recebi no meu corpo as marcas da tortura. Amarguei por anos o sofrimento da prisão. Vi companheiros e companheiras sendo violentados, e até assassinados.
Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma. Mas não cedi. Resisti. Resisti à tempestade de terror que começava a me engolir, na escuridão dos tempos amargos em que o país vivia. Não mudei de lado. Apesar de receber o peso da injustiça nos meus ombros, continuei lutando pela democracia.
Dediquei todos esses anos da minha vida à luta por uma sociedade sem ódios e intolerância. Lutei por uma sociedade livre de preconceitos e de discriminações. Lutei por uma sociedade onde não houvesse miséria ou excluídos. Lutei por um Brasil soberano, mais igual e onde houvesse justiça.
Disso tenho orgulho. Quem acredita, luta.
Aos quase setenta anos de idade, não seria agora, após ser mãe e avó, que abdicaria dos princípios que sempre me guiaram.
Exercendo a Presidência da República tenho honrado o compromisso com o meu país, com a Democracia, com o Estado de Direito. Tenho sido intransigente na defesa da honestidade na gestão da coisa pública.
Por isso, diante das acusações que contra mim são dirigidas neste processo, não posso deixar de sentir, na boca, novamente, o gosto áspero e amargo da injustiça e do arbítrio. E por isso, como no passado, resisto.
Não esperem de mim o obsequioso silêncio dos covardes. No passado, com as armas, e hoje, com a retórica jurídica, pretendem novamente atentar contra a democracia e contra o Estado do Direito.
Se alguns rasgam o seu passado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam. A mim cabe lamentar pelo que foram e pelo que se tornaram.
E resistir. Resistir sempre. Resistir para acordar as consciências ainda adormecidas para que, juntos, finquemos o pé no terreno que está do lado certo da história, mesmo que o chão trema e ameace de novo nos engolir.
Não luto pelo meu mandato por vaidade ou por apego ao poder, como é próprio dos que não tem caráter, princípios ou utopias a conquistar. Luto pela democracia, pela verdade e pela justiça. Luto pelo povo do meu País, pelo seu bem-estar.
Muitos hoje me perguntam de onde vem a minha energia para prosseguir. Vem do que acredito. Posso olhar para trás e ver tudo o que fizemos. Olhar para a frente e ver tudo o que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar para mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças para defender suas ideias e seus direitos.
Sei que, em breve, e mais uma vez na vida, serei julgada. E é por ter a minha consciência absolutamente tranquila em relação ao que fiz, no exercício da Presidência da República que venho pessoalmente à presença dos que me julgarão. Venho para olhar diretamente nos olhos de Vossas Excelências, e dizer, com a serenidade dos que nada tem a esconder que não cometi nenhum crime de responsabilidade.
Não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente.
Hoje o Brasil, o mundo e a história nos observam e aguardam o desfecho deste processo de impeachment.
No passado da América Latina e do Brasil, sempre que interesses de setores da elite econômica e política foram feridos pelas urnas, e não existiam razões jurídicas para uma destituição legítima, conspirações eram tramadas resultando em golpes de estado.
O Presidente Getúlio Vargas, que nos legou a CLT e a defesa do patrimônio nacional, sofreu uma implacável perseguição; a hedionda trama orquestrada pela chamada “República do Galeão, que o levou ao suicídio.
O Presidente Juscelino Kubitscheck, que contruiu essa cidade, foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe, como ocorreu no episódio de Aragarças.
O presidente João Goulart, defensor da democracia, dos direitos dos trabalhadores e das Reformas de Base, superou o golpe do parlamentarismo mas foi deposto e instaurou-se a ditadura militar, em 1964.
Durante 20 anos, vivemos o silêncio imposto pelo arbítrio e a democracia foi varrida de nosso País. Milhões de brasileiros lutaram e reconquistaram o direito a eleições diretas.
Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática. Os padrões políticos dominantes no mundo repelem a violência explícita. Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos.
As provas produzidas deixam claro e inconteste que as acusações contra mim dirigidas são meros pretextos, embasados por uma frágil retórica jurídica.
Nos últimos dias, novos fatos evidenciaram outro aspecto da trama que caracteriza este processo de impeachment. O autor da representação junto ao Tribunal de Contas da União que motivou as acusações discutidas nesse processo, foi reconhecido como suspeito pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal. Soube-se ainda, pelo depoimento do auditor responsável pelo parecer técnico, que ele havia ajudado a elaborar a própria representação que auditou. Fica claro o vício da parcialidade, a trama, na construção das teses por eles defendidas.
São pretextos, apenas pretextos, para derrubar, por meio de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, um governo legítimo, escolhido em eleição direta com a participação de 110 milhões de brasileiros e brasileiras. O governo de uma mulher que ousou ganhar duas eleições presidenciais consecutivas.
São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador.
A eleição indireta de um governo que, já na sua interinidade, não tem mulheres comandando seus ministérios, quando o povo, nas urnas, escolheu uma mulher para comandar o país. Um governo que dispensa os negros na sua composição ministerial e já revelou um profundo desprezo pelo programa escolhido pelo povo em 2014.
Fui eleita presidenta por 54 milhões e meio de votos para cumprir um programa cuja síntese está gravada nas palavras “nenhum direito a menos”.
O que está em jogo no processo de impeachment não é apenas o meu mandato. O que está em jogo é o respeito às urnas, à vontade soberana do povo brasileiro e à Constituição.
O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos: os ganhos da população, das pessoas mais pobres e da classe média; a proteção às crianças; os jovens chegando às universidades e às escolas técnicas; a valorização do salário mínimo; os médicos atendendo a população; a realização do sonho da casa própria.
O que está em jogo é o investimento em obras para garantir a convivência com a seca no semiárido, é a conclusão do sonhado e esperado projeto de integração do São Francisco. O que está em jogo é, também, a grande descoberta do Brasil, o pré-sal. O que está em jogo é a inserção soberana de nosso País no cenário internacional, pautada pela ética e pela busca de interesses comuns.
O que está em jogo é a auto-estima dos brasileiros e brasileiras, que resistiram aos ataques dos pessimistas de plantão à capacidade do País de realizar, com sucesso, a Copa do Mundo e as Olimpíadas e Paraolimpíadas.
O que está em jogo é a conquista da estabilidade, que busca o equilíbrio fiscal mas não abre mão de programas sociais para a nossa população.
O que está em jogo é o futuro do País, a oportunidade e a esperança de avançar sempre mais.
Senhoras e senhores senadores,
No presidencialismo previsto em nossa Constituição, não basta a eventual perda de maioria parlamentar para afastar um Presidente. Há que se configurar crime de responsabilidade. E está claro que não houve tal crime.
Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo pelo “conjunto da obra”. Quem afasta o Presidente pelo “conjunto da obra” é o povo e, só o povo, nas eleições. E nas eleições o programa de governo vencedor não foi este agora ensaiado e desenhado pelo Governo interino e defendido pelos meus acusadores.
O que pretende o governo interino, se transmudado em efetivo, é um verdadeiro ataque às conquistas dos últimos anos.
Desvincular o piso das aposentadorias e pensões do salário mínimo será a destruição do maior instrumento de distribuição de renda do país, que é a Previdência Social. O resultado será mais pobreza, mais mortalidade infantil e a decadência dos pequenos municípios.
A revisão dos direitos e garantias sociais previstos na CLT e a proibição do saque do FGTS na demissão do trabalhador são ameaças que pairam sobre a população brasileira caso prospere o impeachment sem crime de responsabilidade.
Conquistas importantes para as mulheres, os negros e as populações LGBT estarão comprometidas pela submissão a princípios ultraconservadores.
O nosso patrimônio estará em questão, com os recursos do pré-sal, as riquezas naturais e minerárias sendo privatizadas.
A ameaça mais assustadora desse processo de impeachment sem crime de responsabilidade é congelar por inacreditáveis 20 anos todas as despesas com saúde, educação, saneamento, habitação. É impedir que, por 20 anos, mais crianças e jovens tenham acesso às escolas; que, por 20 anos, as pessoas possam ter melhor atendimento à saúde; que, por 20 anos, as famílias possam sonhar com casa própria.
Senhor Presidente Ricardo Lewandowski, Sras. e Srs. Senadores,
A verdade é que o resultado eleitoral de 2014 foi um rude golpe em setores da elite conservadora brasileira.
Desde a proclamação dos resultados eleitorais, os partidos que apoiavam o candidato derrotado nas eleições fizeram de tudo para impedir a minha posse e a estabilidade do meu governo. Disseram que as eleições haviam sido fraudadas, pediram auditoria nas urnas, impugnaram minhas contas eleitorais, e após a minha posse, buscaram de forma desmedida quaisquer fatos que pudessem justificar retoricamente um processo de impeachment.
Como é próprio das elites conservadoras e autoritárias, não viam na vontade do povo o elemento legitimador de um governo. Queriam o poder a qualquer preço.
Tudo fizeram para desestabilizar a mim e ao meu governo.
Só é possível compreender a gravidade da crise que assola o Brasil desde 2015, levando-se em consideração a instabilidade política aguda que, desde a minha reeleição, tem caracterizado o ambiente em que ocorrem o investimento e a produção de bens e serviços.
Não se procurou discutir e aprovar uma melhor proposta para o País. O que se pretendeu permanentemente foi a afirmação do “quanto pior melhor”, na busca obsessiva de se desgastar o governo, pouco importando os resultados danosos desta questionável ação política para toda a população.
A possibilidade de impeachment tornou-se assunto central da pauta política e jornalística apenas dois meses após minha reeleição, apesar da evidente improcedência dos motivos para justificar esse movimento radical.
Nesse ambiente de turbulências e incertezas, o risco político permanente provocado pelo ativismo de parcela considerável da oposição acabou sendo um elemento central para a retração do investimento e para o aprofundamento da crise econômica.
Deve ser também ressaltado que a busca do reequilíbrio fiscal, desde 2015, encontrou uma forte resistência na Câmara dos Deputados, à época presidida pelo Deputado Eduardo Cunha. Os projetos enviados pelo governo foram rejeitados, parcial ou integralmente. Pautas bombas foram apresentadas e algumas aprovadas.
As comissões permanentes da Câmara, em 2016, só funcionaram a partir do dia 5 de maio, ou seja, uma semana antes da aceitação do processo de impeachment pela Comissão do Senado Federal. Os Srs. e as Sras. Senadores sabem que o funcionamento dessas Comissões era e é absolutamente indispensável para a aprovação de matérias que interferem no cenário fiscal e encaminhar a saída da crise.
Foi criado assim o desejado ambiente de instabilidade política, propício a abertura do processo de impeachment sem crime de responsabilidade.
Sem essas ações, o Brasil certamente estaria hoje em outra situação política, econômica e fiscal.
Saiba Mais
Dilma: impeachment resultará na eleição indireta de um governo usurpador
Muitos articularam e votaram contra propostas que durante toda a vida defenderam, sem pensar nas consequências que seus gestos trariam para o país e para o povo brasileiro. Queriam aproveitar a crise econômica, porque sabiam que assim que o meu governo viesse a superá-la, sua aspiração de acesso ao poder haveria de ficar sepultada por mais um longo período.
Mas, a bem da verdade, as forças oposicionistas somente conseguiram levar adiante o seu intento quando outra poderosa força política a elas se agregou: a força política dos que queriam evitar a continuidade da “sangria” de setores da classe política brasileira, motivada pelas investigações sobre a corrupção e o desvio de dinheiro público.
É notório que durante o meu governo e o do Pr Lula foram dadas todas as condições para que estas investigações fossem realizadas. Propusemos importantes leis que dotaram os órgãos competentes de condições para investigar e punir os culpados.
Assegurei a autonomia do Ministério Público, nomeando como Procurador Geral da República o primeiro nome da lista indicado pelos próprios membros da instituição. Não permiti qualquer interferência política na atuação da Polícia Federal.
Contrariei, com essa minha postura, muitos interesses. Por isso, paguei e pago um elevado preço pessoal pela postura que tive.
Arquitetaram a minha destituição, independentemente da existência de quaisquer fatos que pudesse justificá-la perante a nossa Constituição.
Encontraram, na pessoa do ex-Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha o vértice da sua aliança golpista.
Articularam e viabilizaram a perda da maioria parlamentar do governo. Situações foram criadas, com apoio escancarado de setores da mídia, para construir o clima político necessário para a desconstituição do resultado eleitoral de 2014.
Todos sabem que este processo de impeachment foi aberto por uma “chantagem explícita” do ex-Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, como chegou a reconhecer em declarações à imprensa um dos próprios denunciantes. Exigia aquele parlamentar que eu intercedesse para que deputados do meu partido não votassem pela abertura do seu processo de cassação.
Nunca aceitei na minha vida ameaças ou chantagens. Se não o fiz antes, não o faria na condição de Presidenta da República. É fato, porém, que não ter me curvado a esta chantagem motivou o recebimento da denúncia por crime de responsabilidade e a abertura deste d processo, sob o aplauso dos derrotados em 2014 e dos temerosos pelas investigações.
Se eu tivesse me acumpliciado com a improbidade e com o que há de pior na política brasileira, como muitos até hoje parecem não ter o menor pudor em fazê-lo, eu não correria o risco de ser condenada injustamente.
Quem se acumplicia ao imoral e ao ilícito, não tem respeitabilidade para governar o Brasil. Quem age para poupar ou adiar o julgamento de uma pessoa que é acusada de enriquecer às custas do Estado brasileiro e do povo que paga impostos, cedo ou tarde, acabará pagando perante a sociedade e a história o preço do seu descompromisso com a ética.
Todos sabem que não enriqueci no exercício de cargos públicos, que não desviei dinheiro público em meu proveito próprio, nem de meus familiares, e que não possuo contas ou imóveis no exterior. Sempre agi com absoluta probidade nos cargos públicos que ocupei ao longo da minha vida.
Curiosamente, serei julgada, por crimes que não cometi, antes do julgamento do ex-presidente da Câmara, acusado de ter praticado gravíssimos atos ilícitos e que liderou as tramas e os ardis que alavancaram as ações voltadas à minha destituição.
Ironia da história? Não, de forma nenhuma. Trata-se de uma ação deliberada que conta com o silêncio cúmplice de setores da grande mídia brasileira.
Viola-se a democracia e pune-se uma inocente. Este é o pano de fundo que marca o julgamento que será realizado pela vontade dos que lançam contra mim pretextos acusatórios infundados.
Estamos a um passo da consumação de uma grave ruptura institucional. Estamos a um passo da concretização de um verdadeiro golpe de Estado.
Senhoras e Senhores Senadores,
Vamos aos autos deste processo. Do que sou acusada? Quais foram os atentados à Constituição que cometi? Quais foram os crimes hediondos que pratiquei?
A primeira acusação refere-se à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização legislativa. Ao longo de todo o processo, mostramos que a edição desses decretos seguiu todas as regras legais. Respeitamos a previsão contida na Constituição, a meta definida na LDO e as autorizações estabelecidas no artigo 4° da Lei Orçamentária de 2015, aprovadas pelo Congresso Nacional.
Todas essas previsões legais foram respeitadas em relação aos 3 decretos. Eles apenas ofereceram alternativas para alocação dos mesmos limites, de empenho e financeiro, estabelecidos pelo decreto de contingenciamento, que não foram alterados. Por isso, não afetaram em nada a meta fiscal.
Ademais, desde 2014, por iniciativa do Executivo, o Congresso aprovou a inclusão, na LDO, da obrigatoriedade que qualquer crédito aberto deve ter sua execução subordinada ao decreto de contingenciamento, editado segundo as normas estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. E isso foi precisamente respeitado.
Não sei se por incompreensão ou por estratégia, as acusações feitas neste processo buscam atribuir a esses decretos nossos problemas fiscais. Ignoram ou escondem que os resultados fiscais negativos são consequência da desaceleração econômica e não a sua causa.
Escondem que, em 2015, com o agravamento da crise, tivemos uma expressiva queda da receita ao longo do ano — foram R$ 180 bilhões a menos que o previsto na Lei Orçamentária.
Fazem questão de ignorar que realizamos, em 2015, o maior contingenciamento de nossa história. Cobram que, quando enviei ao Congresso Nacional, em julho de 2015, o pedido de autorização para reduzir a meta fiscal, deveria ter imediatamente realizado um novo contingenciamento. Não o fiz porque segui o procedimento que não foi questionado pelo Tribunal de Contas da União ou pelo Congresso Nacional na análise das contas de 2009.
Além disso, a responsabilidade com a população justifica também nossa decisão. Se aplicássemos, em julho, o contingenciamento proposto pelos nossos acusadores cortaríamos 96% do total de recursos disponíveis para as despesas da União. Isto representaria um corte radical em todas as dotações orçamentárias dos órgãos federais. Ministérios seriam paralisados, universidades fechariam suas portas, o Mais Médicos seria interrompido, a compra de medicamentos seria prejudicada, as agências reguladoras deixariam de funcionar. Na verdade, o ano de 2015 teria, orçamentariamente, acabado em julho.
Volto a dizer: ao editar estes decretos de crédito suplementar, agi em conformidade plena com a legislação vigente. Em nenhum desses atos, o Congresso Nacional foi desrespeitado. Aliás, este foi o comportamento que adotei em meus dois mandatos.
Somente depois que assinei estes decretos é que o Tribunal de Contas da União mudou a posição que sempre teve a respeito da matéria. É importante que a população brasileira seja esclarecida sobre este ponto: os decretos foram editados em julho e agosto de 2015 e somente em outubro de 2015 o TCU aprovou a nova interpretação.
O TCU recomendou a aprovação das contas de todos os presidentes que editaram decretos idênticos aos que editei. Nunca levantaram qualquer problema técnico ou apresentaram a interpretação que passaram a ter depois que assinei estes atos.
Querem me condenar por ter assinado decretos que atendiam a demandas de diversos órgãos, inclusive do próprio Poder Judiciário, com base no mesmo procedimento adotado desde a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001?
Por ter assinado decretos que somados, não implicaram, como provado nos autos, em nenhum centavo de gastos a mais para prejudicar a meta fiscal?
A segunda denúncia dirigida contra mim neste processo também é injusta e frágil. Afirma-se que o alegado atraso nos pagamentos das subvenções econômicas devidas ao Banco do Brasil, no âmbito da execução do programa de crédito rural Plano Safra, equivale a uma “operação de crédito”, o que estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Como minha defesa e várias testemunhas já relataram, a execução do Plano Safra é regida por uma lei de 1992, que atribui ao Ministério da Fazenda a competência de sua normatização, inclusive em relação à atuação do Banco do Brasil. A Presidenta da República não pratica nenhum ato em relação à execução do Plano Safra. Parece óbvio, além de juridicamente justo, que eu não seja acusada por um ato inexistente.
A controvérsia quanto a existência de operação de crédito surgiu de uma mudança de interpretação do TCU, cuja decisão definitiva foi emitida em dezembro de 2015. Novamente, há uma tentativa de dizer que cometi um crime antes da definição da tese de que haveria um crime. Uma tese que nunca havia surgido antes e que, como todas as senhoras e senhores senadores souberam em dias recentes, foi urdida especialmente para esta ocasião.
Lembro ainda a decisão recente do Ministério Público Federal, que arquivou inquérito exatamente sobre esta questão. Afirmou não caber falar em ofensa à lei de responsabilidade fiscal porque eventuais atrasos de pagamento em contratos de prestação de serviços entre a União e instituições financeiras públicas não são operações de crédito.
Insisto, senhoras senadoras e senhores senadores: não sou eu nem tampouco minha defesa que fazemos estas alegações. É o Ministério Público Federal que se recusou a dar sequência ao processo, pela inexistência de crime.
Sobre a mudança de interpretação do TCU, lembro que, ainda antes da decisão final, agi de forma preventiva. Solicitei ao Congresso Nacional a autorização para pagamento dos passivos e defini em decreto prazos de pagamento para as subvenções devidas. Em dezembro de 2015, após a decisão definitiva do TCU e com a autorização do Congresso, saldamos todos os débitos existentes.
Não é possível que não se veja aqui também o arbítrio deste processo e a injustiça também desta acusação.
Este processo de impeachment não é legítimo. Eu não atentei, em nada, em absolutamente nada contra qualquer dos dispositivos da Constituição que, como Presidenta da República, jurei cumprir. Não pratiquei ato ilícito. Está provado que não agi dolosamente em nada. Os atos praticados estavam inteiramente voltados aos interesses da sociedade. Nenhuma lesão trouxeram ao erário ou ao patrimônio público.
Volto a afirmar, como o fez a minha defesa durante todo o tempo, que este processo está marcado, do início ao fim, por um clamoroso desvio de poder.
É isto que explica a absoluta fragilidade das acusações que contra mim são dirigidas.
Tem-se afirmado que este processo de impeachment seria legítimo porque os ritos e prazos teriam sido respeitados. No entanto, para que seja feita justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. É necessário que o conteúdo de uma sentença também seja justo. E no caso, jamais haverá justiça na minha condenação.
Ouso dizer que em vários momentos este processo se desviou, clamorosamente, daquilo que a Constituição e os juristas denominam de “devido processo legal”.
Não há respeito ao devido processo legal quando a opinião condenatória de grande parte dos julgadores é divulgada e registrada pela grande imprensa, antes do exercício final do direito de defesa.
Não há respeito ao devido processo legal quando julgadores afirmam que a condenação não passa de uma questão de tempo, porque votarão contra mim de qualquer jeito.
Nesse caso, o direito de defesa será exercido apenas formalmente, mas não será apreciado substantivamente nos seus argumentos e nas suas provas. A forma existirá apenas para dar aparência de legitimidade ao que é ilegítimo na essência.
Senhoras e senhores senadores,
Nesses meses, me perguntaram inúmeras vezes porque eu não renunciava, para encurtar este capítulo tão difícil de minha vida.
Jamais o faria porque tenho compromisso inarredável com o Estado Democrático de Direito.
Jamais o faria porque nunca renuncio à luta.
Confesso a Vossas Excelências, no entanto, que a traição, as agressões verbais e a violência do preconceito me assombraram e, em alguns momentos, até me magoaram. Mas foram sempre superados, em muito, pela solidariedade, pelo apoio e pela disposição de luta de milhões de brasileiras e brasileiros pelo País afora. Por meio de manifestações de rua, reuniões, seminários, livros, shows, mobilizações na internet, nosso povo esbanjou criatividade e disposição para a luta contra o golpe.
As mulheres brasileiras têm sido, neste período, um esteio fundamental para minha resistência. Me cobriram de flores e me protegeram com sua solidariedade. Parceiras incansáveis de uma batalha em que a misoginia e o preconceito mostraram suas garras, as brasileiras expressaram, neste combate pela democracia e pelos direitos, sua força e resiliência. Bravas mulheres brasileiras, que tenho a honra e o dever de representar como primeira mulher Presidenta do Brasil.
Chego à última etapa desse processo comprometida com a realização de uma demanda da maioria dos brasileiros: convocá-los a decidir, nas urnas, sobre o futuro de nosso País. Diálogo, participação e voto direto e livre são as melhores armas que temos para a preservação da democracia.
Confio que as senhoras senadoras e os senhores senadores farão justiça. Tenho a consciência tranquila. Não pratiquei nenhum crime de responsabilidade. As acusações dirigidas contra mim são injustas e descabidas. Cassar em definitivo meu mandato é como me submeter a uma pena de morte política.
Este é o segundo julgamento a que sou submetida em que a democracia tem assento, junto comigo, no banco dos réus. Na primeira vez, fui condenada por um tribunal de exceção. Daquela época, além das marcas dolorosas da tortura, ficou o registro, em uma foto, da minha presença diante de meus algozes, num momento em que eu os olhava de cabeça erguida enquanto eles escondiam os rostos, com medo de serem reconhecidos e julgados pela história.
Hoje, quatro décadas depois, não há prisão ilegal, não há tortura, meus julgadores chegaram aqui pelo mesmo voto popular que me conduziu à Presidência. Tenho por todos o maior respeito, mas continuo de cabeça erguida, olhando nos olhos dos meus julgadores.
Apesar das diferenças, sofro de novo com o sentimento de injustiça e o receio de que, mais uma vez, a democracia seja condenada junto comigo. E não tenho dúvida que, também desta vez, todos nós seremos julgados pela história.
Por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência.
Hoje eu só temo a morte da democracia, pela qual muitos de nós, aqui neste plenário, lutamos com o melhor dos nossos esforços.
Reitero: respeito os meus julgadores.
Não nutro rancor por aqueles que votarão pela minha destituição.
Respeito e tenho especial apreço por aqueles que têm lutado bravamente pela minha absolvição, aos quais serei eternamente grata.
Neste momento, quero me dirigir aos senadores que, mesmo sendo de oposição a mim e ao meu governo, estão indecisos.
Lembrem-se que, no regime presidencialista e sob a égide da nossa Constituição, uma condenação política exige obrigatoriamente a ocorrência de um crime de responsabilidade, cometido dolosamente e comprovado de forma cabal.
Lembrem-se do terrível precedente que a decisão pode abrir para outros presidentes, governadores e prefeitos. Condenar sem provas substantivas. Condenar um inocente.
Faço um apelo final a todos os senadores: não aceitem um golpe que, em vez de solucionar, agravará a crise brasileira.
Peço que façam justiça a uma presidenta honesta, que jamais cometeu qualquer ato ilegal, na vida pessoal ou nas funções públicas que exerceu. Votem sem ressentimento. O que cada senador sente por mim e o que nós sentimos uns pelos outros importa menos, neste momento, do que aquilo que todos sentimos pelo país e pelo povo brasileiro.
Peço: votem contra o impeachment. Votem pela democracia.
Muito obrigada.
Edição: Amanda Cieglinski

Uma incógnita no horizonte

Cândido Grzybowski – Sociólogo, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)
Estes últimos tempos foram de muita angústia e estresse político no Brasil. Difícil foi ficar de fora, como se não fosse com a gente. Não só foi algo rápido e impactante em termos de decomposição de verdades e certezas, de revelações de um sistema político profundamente corrompido, como tendeu a nós por em diferentes polos, profundamente separados. E ainda não dá para ver bem onde isto vai dar, quem dos representantes que temos poderá reivindicar alguma legitimidade para ser o governo do Brasil. Por enquanto continuamos nos atolando cada vez mais numa grande crise que, a essas alturas, já depende muito pouco do desfecho do impedimento da presidenta Dilma. Quaisquer das possibilidades legais possíveis só aprofundam a crise de hegemonia, de falta de rumos legítimos, de direções como expressão democrática de sonhos e desejos de amplos setores da sociedade, capazes de agregar e viabilizar propostas de uma nova onda de democratização. Aliás, o mais provável é entrarmos num processo mais ou menos longo de crise larval, de idas e vindas, de desmanche sem reconstrução, de perda de direitos de cidadania conquistados, de desemprego e instabilidade, de uma rápida expansão da miséria e pobreza, com enorme esgarçamento do tecido social. Terreno fértil para que prosperem demagogos e oportunistas, como já temos alguns, que transformam a diferença e a insatisfação com tudo que está aí em intolerância e ódio de uns sobre outros. O fenômeno de Trump, nos EUA, deve nos fazer pensar, assim como outros exemplos de ascensão de direitas fascistas pelo mundo, coisa que está à nossa porta. Quem pensa que o Brasil está livre disso se engana profundamente. O autoritarismo está cravado fundo no nosso DNA como país. A democracia ainda é uma tenra planta, no momento sofrendo por falta de seiva vital dos que defendem seus valores e princípios éticos, a água que vivifica as democracias sempre. Existem, sim, democratas convictos e radicais entre nós, mas estamos encurraladas pela situação brasileira e mundial, pelo capitalismo neoliberal sem pejo, do poder do dinheiro tout court.
Escrevo tudo isto porque a vida segue e não podemos parar, mas o bicho pode nos comer… Estamos de olho em Brasília, naquelas pequenas personagens que tomam a cena no Congresso Nacional e no governo provisório, mais à feição e ao serviço dos que financiaram as suas campanhas, do que da diversa cidadania brasileira. E esquecemo-nos de priorizar o nosso entorno.  Em menos de três meses teremos eleições municipais, uma primeira etapa no calendário político de resistência e reconstrução de outro Brasil. Em sã consciência, quem pode afirmar que está levando a sério as eleições municipais de outubro? Os territórios em que moramos, trabalhamos, vivemos, enfim, como os verdadeiros pilares do refazer a democracia brasileira de baixo para cima, representam a possibilidade de começar desde já a tarefa de construir um novo amanhã. Temos claro, vagas ideias de articulações de bastidores, de tomadas de posição, de figuras que se dizem e se lançam como candidatos a prefeitos e vereadores. Por quem? Por quê? Para que projeto? O que significa a constelação de partidos, no geral de ocasião, atrás deles e delas?
Estou aqui nesse Rio de Janeiro, cidade maquiada para o espetáculo olímpico, mais para turistas e o negócio dos jogos do que para nós, moradoras e moradores daqui. Algumas das obras até encantam e irão marcar o amanhã deste maravilhoso e mal tratado bem comum que é a nossa cidade. Cidade de encantos mil, tanto pelo azul do mar, baía e praias, pelos morros e florestas, como pelo seu jeito de ser, humor e cultura vibrante, do samba, da rap, do funk. Este é seu lado resistente, mesmo nas maiores adversidades.  Hoje discutimos, no cotidiano, mais a violência em ascensão do que as Olimpíadas que acontecerão em menos de um mês, mais o descalabro dos serviços públicos como educação e saúde e o caos que se instalou nos transportes públicos, mesmo com o saudado VLT (novo nome, maquiado, do conhecido bonde!) na área central, as linhas de BRTs e a extensão do grande linhão do metrô. A cidade ficou muito, muito mais difícil! Não dá para esperar solução lá do Planalto. Afinal, vivemos na planície, como lembrava o Betinho. E aqui estamos com um estado na UTI.
Minha outra vivência de cidade, nesta etapa da vida, é Rio Bonito, a 90 km do Rio e parte da Região Metropolitana. A 6 km da cidade, construí com minha companheira um pequeno paraíso de preservação da biodiversidade, a Chácara Iru, onde ainda pratico técnicas de agricultura orgânica, aprendidas desde o berço familiar em Erechim (RS).  Lá está a minha biblioteca dos meus mestres e inspiradores. A cidade de Rio Bonito, pequena, é a décima em número de carros per capita do Brasil! De bonito sobra pouco, pois o riozinho que está no centro é uma verdadeira vala de esgoto, onde qualquer chuva gera a tragédia de inundação. A Serra do Sambê, que contorna a cidade pelo Norte, tem seu encanto e uma vegetação de Mata Atlântica que ainda resiste.  Imagino que quando Darwin lá esteve na sua famosa vista ao Brasil, 200 anos atrás, viu outra coisa e muito se inspirou para a sua teoria de evolução das espécies. Lá nasceu, viveu e morreu o jornalista Astrojildo Pereira Duarte Silva (1890-1965), o fundador do PCB, em 1922, e seu primeiro presidente, expulso depois. Pois bem, hoje Rio Bonito é um quase desastre em termos políticos. A prefeita atual da cidade é a Solange do Amaral, aquela aliada nas falcatruas do Cunha, envolvendo propina. A cidade é parte da base eleitoral do deputado estadual Marcos Abraão, que nem merece comentários. Um desastre em termos de democracia e cidadania! Quem vai disputar a eleição municipal em outubro?  Sei lá!  Nos últimos anos o Ibase desenvolveu um trabalho em Rio Bonito, e outros 14 municípios da área de influência do Comperj, que resultou na criação de uma rede local de cidadania. Espero que algo diferente aconteça por lá, mas meu voto é ainda como cidadão do Rio de Janeiro.
No Rio – penso que o mesmo se passa nas grandes e médias cidades brasileiras – existem tramas em curso que vão acabar nos dando o dilema de escolher o de sempre, sem novidades reais. Serão provavelmente, muitos candidatos, mais do que reais propostas para a cidade. Tudo deverá ser decidido no segundo turno, entre os dois candidatos melhor colocados. Financiamento empresarial, que tudo distorce, deixou de ser legal. Mas alguém acredita que novas formas de financiamento ilícito não serão inventadas? E a questão mais importante: a agenda de cidade está posta na mesa para que a cidadania decida, pensando mais na cidade do que nas pequenas e corporativas agendas de candidatos, prometendo vantagens e favores para correligionários?
Não registro, no Rio ou em outros municípios, nenhum candidato ou força política levantando o debate da cidade como bem comum. Isto num momento em que os ventos políticos dominantes, no país e fora, voltam a priorizar uma agenda conservadora de mais liberalização, mais mercado, e menos público e regulação política, menos políticas para garantir direitos coletivos. O debate estratégico de resistência possível é resgatar a centralidade do comum na cidade para uma vida coletiva que faça sentido para todas e todos. Isto está presente nas lutas, em favelas, nas resistências a remoções, na luta por educação pública e saúde de qualidade, na luta por segurança pública como direito, na luta por mobilidade urbana para todo mundo, nos pontos de cultura e mídia alternativa. A lista é grande e inspiradora, basta olhar, querer e valorizar. São as sementes que vejo podendo anunciar outro amanhã para a cidade.
A incógnita que está no horizonte continuará incógnita enquanto não for decifrada com técnica, sem dúvida, mas, sobretudo, com imaginação, com esperança e determinação democrática, de direitos de cidadania, com nossa participação no antes, durante e após eleições. Ou seja, depende de nós mesmos mudar tal equação, ao seu modo bastante simples. Participemos desde já e exijamos o que não nos é revelado. Termino com a canção que se tornou o símbolo no combate à ditadura, de Geraldo Vandré. Penso que olhando para nossos lugares, nosso territórios locais, e para as possibilidades reais de ativismo cidadão que aí estão presentes, no aqui e agora, nosso engajamento pode começar a fazer a hora.
“Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer”

Ditadura golpista e apartheid social

João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE.
O regime político ditatorial que o Brasil vive atualmente tem gravíssimas consequências sociais. Não restam dúvidas de que a chegada dos golpistas ao poder representa a ruptura da Constituição, a dissolução da Democracia e o fim do Estado de Direito. Está instalada uma ditadura jurídico/parlamentar/midiática com a finalidade de impor ao Brasil um projeto econômico que segue rigorosamente a cartilha neoliberal. Como consequência desta nova ditadura, é visível que se estabeleceu no Brasil uma cisão social radical a que podemos denominar de apartheid social.
Como ainda somos um modelo econômico capitalista, há em nossa sociedade uma elite dominante profundamente egoísta e concentradora de renda. Enquanto perdura o sistema capitalista de produção, o mundo estará cindido entre ricos e pobres, uma assimetria social distribuída em nível global e no interior dos países, particularmente de terceiro mundo. A elite burguesa capitalista não admite que os mais pobres ascendam socialmente e integrem os mais variados espaços da sociedade. A elite burguesa se considera dona do mundo diante da qual os mais pobres e as classes sociais excluídas são odiadas.
Durante os anos do governo Lula e o primeiro de Dilma houve o fenômeno jamais visto e imaginado no Brasil da ascensão social, quando milhões de miseráveis saíram da miséria e outros milhões entraram na classe média. Esta gigantesca massa historicamente excluída começou a aparecer nas praças, nas lojas e supermercados, nas Universidades, nos aviões, nas ruas das cidades, nos espaços de trabalho etc. Começaram a ocupar os mesmos espaços da elite dominante e concorrer com os seus privilégios.
Isto se torna ainda mais acentuado quando se trata de classes historicamente excluídas como os negros, os índios, as mulheres e grupos de outras opções sexuais. Além da divisão social provocada pelo modelo econômico capitalista, isto vem acrescido do racismo, como expressão de ódio e preconceito contra os negros e índios, do machismo, como o tradicional domínio do homem sobre a mulher. Estas formas de exclusão e rebaixamento ficam evidenciadas na configuração do governo golpista, que não tem mulheres e negros nos mais elevados escalões do governo.
O apartheid social brasileiro é protagonizado pela elite burguesa dominante. Isto fica visível quando, por exemplo, pais ricos ficam enfurecidos quando seus filhos são obrigados a estudar nas escolas e Universidades nas mesmas salas onde se encontram negros. Os ricos ficam enfurecidos quando se deparam com a infelicidade de sentar ao lado de um pobre no avião, que jamais deveria pisar nestes espaços. A burguesia dominante fica furiosa quando são antecipados pelos mais pobres nas filas dos bancos e atrasam os seus compromissos em função dos vagabundos que só atrapalham. A classe rica branca fica enfurecida porque espaços como o trabalho, o protagonismo social, a posse da riqueza são ameaçados de divisão em relação àqueles que mais são odiados. A classe dominante vive o ódio porque as “riquezas produzidas pelo suor de seu trabalho e pela sua capacidade de gerenciamento são destinadas a uma massa vagabunda que não trabalha”.
O apartheid social brasileiro fica visível em várias esferas, em várias áreas do saber e em múltiplas instâncias. Ainda não conseguimos avançar historicamente para que as distintas classes sociais tenham condições de convivência e de solidariedade. Em tempos de profunda crise econômica e política estas questões ficam explicitadas e se tornam claras como o dia. Para a sistêmica cisão social constituem forças determinantes a economia, a política e o judiciário. A economia capitalista é concentradora de renda com a cisão do mundo em ricos e pobres; a política atende aos interesses de uma minoria e o judiciário legitima o sistema econômico estabelecido. A atuação do judiciário é escandalosa porque se mostra seletiva, protege a direita política e criminaliza sistematicamente os movimentos sociais.
Nos últimos tempos assistimos fatos e eventos que apontam para os interesses de uma pequena elite, em detrimento da grande população que tende a ser reduzida a uma massa informe e a uma força indiferenciada de trabalho. Quando em Universidades públicas é discutida a Democracia, as Instituições de Ensino Superior são objeto de repressões e de restrições jurídicas, quando uma sociedade democrática proporciona plena autonomia para realizar este tipo de discussão. Práticas radicalmente antidemocráticas de divisão social dizem respeito à criminalização dos movimentos sociais e à condenação de suas lideranças. Nas periferias de nossas cidades os negros e pobres ainda são objeto direto de perseguição policial, de cassetete, de prisão e de fuzilamento seletivo. Um modelo político ditatorial como o nosso não tolera manifestações democráticas, reprime movimentos sociais e enche as cadeias de gente oriunda do universo da exclusão social.
A recente ocupação das escolas pelos alunos reforça a constatação da cisão social. Percebem o descalabro e o descaso com a educação, ocupam as escolas e o que lhes espera é a punição policial. A justiça pune e prende as lideranças populares, as lideranças de forças políticas de esquerda e inviabilizam o aprofundamento da Democracia. A justiça sustenta e protege um pequeno mundo social altamente elitizado, em detrimento da população que lhe foi negada a Democracia e rasgada a Constituição.
O governo ilegítimo erigido pelo golpe branco é uma síntese de todas as expressões históricas de machismo, racismo, patriarcalismo, patrimonialismo, criacionismo, sexismo, autoritarismo, xenofobismo etc. Estes preconceitos sociais que atravessam a história brasileira retornaram com toda a força e estão presentes em todos os recantos da sociedade, quando teriam que ter sido superados com o advento do novo milênio. A sociedade está sistematicamente dominada por estas expressões protagonizadas por homens de bem, por brancos ricos, pela burguesia capitalista, por moralizadores do bem e por visões ultraconservadoras de mundo, de política e de religião. Vivemos um momento histórico no qual os ismos aqui citados ressuscitam com toda a força e são amplamente suscitados pela ditadura golpista, pelo judiciário, pela mídia e pela grande elite econômica.
O apartheid social que vivemos atualmente é expresso no ódio social. Vivemos numa cultura de ódio e de intolerância radical. São objeto de ódio os negros que totalizam mais da metade da população brasileira. São objeto de ódio os índios outrora considerados pelos mesmos brancos religiosos homens de bem como selvagens e sem alma. São objeto de ódio as classes mais pobres rotuladas de vagabundos. Expressão de ódio sistêmico é o preconceito seletivo contra os nordestinos simplesmente rotulados de “vagabundos”. A pretensão de separar a Região Sul do resto do país é consequência da pretendida supremacia cultural e machismo. São objeto de ódio os estudantes e as suas organizações são reprimidas em meios judiciais simplesmente porque lutam por uma educação mais qualificada. São objeto de ódio os partidos políticos de esquerda e as suas lideranças, simplesmente porque proporcionaram uma sociedade mais democrática e porque promoveram uma inclusão social mínima. Os ataques midiáticos e judiciários são muito conhecidos.
O governo golpista que usurpou o poder por meio do golpe legitimado pelo judiciário, pelo legislativo federal, pela grande mídia, pelo grande empresariado e por grandes corporações transnacionais tem como consequência uma cisão social jamais vista. O golpismo não tem nenhuma sintonia com os negros, índios, mulheres, trabalhadores, movimentos sociais, movimentos estudantis etc. A tendência atual é de que o ódio, a xenofobia e a mixofobia se intensificam e se disseminam pela sociedade inteira. O resultado disto seria uma estrutura social formada pela burguesia isolada nas instâncias políticas, nas propriedades particulares, nos negócios econômicos e a grande ralé objeto de ódio e exclusão social.
A classe especialmente treinada para disseminar ódio na sociedade não está apenas em Brasília ou nos grandes centros de atividade econômica. Não são apenas os brancos, ricos, machos e barrigudos que integram as três esferas da república, mas estão presentes na base social. Eles vêm revestidos da condição de homens de bem, moralmente corretos, fiéis à bíblia e aos preceitos religiosos, são ricos pela graça de Deus e por seus próprios méritos, mas profundamente odiosos ao condenar os de outra cor e condição como criminosos, vagabundos, baderneiros, etc.
 

Restauração Oligárquica e as Contradições da Retomada Neoliberal no Brasil Pós-Golpe

Marcelo Milan – Economista, professor de economia na UFRGS.

As classes dominantes no Brasil têm o golpismo inscrito em seu DNA. O mais recente golpe, em vias de se consolidar, mesmo ficando cabalmente comprovado que não houve nenhum crime de responsabilidade por parte da presidenta eleita que o legitime juridicamente, comporta muitos adjetivos que qualificam seus agentes imediatos e permitem diferenciá-lo de outros golpes do passado: clepto-parlamentar, manipulativo-midiático, iníquo-judiciário, farsesco-policialesco e pato-empresarial. A ruptura institucional ainda apresenta elementos mediatos de aumento do fanatismo religioso, fundado em novas denominações que combinam ascetismo e comércio, remetendo diretamente às trevas da Idade Média da intolerância e da venda de indulgências. O assincronismo se reflete também na semelhança entre a burguesia nativa com o papel dos barões ladrões do século XIX nos EUA. Cabe também lembrar a influência do nacionalismo de corte protofascista de segmentos das classes médias que, na ausência de massa encefálica suficiente, insistem em querer pensar utilizando o fígado. O golpe representa a manifestação deste autoritarismo atávico, suprimido apenas durante curtos intervalos quando foram permitidas, pela mobilização popular, farsas eleitoreiras com resquícios distantes de democracia. Todas as manifestações características do atraso político, social e cultural mais primitivo, gestadas por séculos aqui e alhures, ressurgem unificados na atual conjuntura política nacional (embora, de formas aparentemente diferentes, cada vez mais também nos países de maior tradição eleitoral).

Emprega-se neste artigo, como tentativa de síntese desse processo, o termo restauração oligárquica, como oposto à renovação democrática restrita que, por ser restrita, nunca avançou de forma a alcançar sua plenitude, e que precisa ser renovada de tempos em tempos, na forma justamente de interrupções da dominação oligárquica. A presente “pausa democrática” é, assim, um eufemismo para a restauração oligárquica, que tem sido a norma e não a exceção no Brasil e na América Latina. Os curtos períodos em que há respeito às eleições e ao veredito das urnas são, na verdade, “pausas autoritárias”. A oligarquia golpista apresenta marcadas diferenças setoriais e de interesses econômicos, envolvendo estamentos burocráticos do Estado e elites econômicas do setor privado. Contudo, o golpe demonstra uma unidade de propósito destes setores. E este objetivo tem sido uma característica constante no conflito estrutural entre capitalismo e democracia, no Brasil e no mundo (como mostram recentemente os casos da Grécia e de Portugal): destruir ou tornar irrelevantes os mecanismos de participação popular na vida política, por um lado, e ampliar a dominação dos canais de representação dos interesses pecuniários da minoria no Estado. É claro que este propósito não é um fim em si, mas um meio para amealhar o máximo possível da riqueza nacional e impedir que essa possa ser compartilhada por todos aqueles que contribuem para sua produção e por aqueles impedidos por diversas razões.

Um outro elemento importante, mas não discutido nesse texto para não complexificar em demasia a discussão, é o papel do capital e do poder político internacional no presente golpe, outra característica permanente das relações entre economias subdesenvolvidas e as economias de elevada renda per capita com objetivos geopolíticos agressivos. A estratégia de tomada de poder sem apelo, ainda, à violência estrutural aberta, exige um trabalho por dentro das instituições políticas, jurídicas e midiáticas que requer uma inteligência estratégica dificilmente disponível entre os segmentos golpistas imediatos. Uma rápida observação do ministério interino é evidência mais que suficiente. Por fim, o termo oligarquia capta melhor a composição destes segmentos do que a expressão “plutonomia”, cunhada pelo Citibank em dois memorandos internos vazados para denominar os donos do poder político e econômico. Ou seja, a plutonomia presume um grau de sofisticação ausente entre o golpismo local.

Para além da dinâmica política, o golpe não pode ser entendido sem sua dimensão econômica. Todas as forças políticas derrotadas nas últimas eleições, proporcionadas pelo mais recente interstício eleitoral, voltaram ao governo pela porta dos fundos do golpe, desta vez para aplicar um programa econômico que envolve a retomada neoliberal que, por força do fracasso político das hostes golpistas, não tem nem teria respaldo eleitoral. E as derrotas eleitorais são explicadas em parte pela própria memória popular dos efeitos da aplicação do programa econômico neoliberal nos anos 1990 e início dos anos 2000. O neoliberalismo aberto das forças conservadoras derrotadas, agora reunidas no golpe, foi brevemente interrompido pelo social liberalismo da coalizão política que se fragmentou e acelerou a restauração oligárquica. Mas no que consiste esse programa econômico de retomada neoliberal? Ele possui três grandes vetores estruturais, além de medidas mais conjunturais, voltadas a reestruturar o capitalismo brasileiro por meio do aumento da lucratividade do capital: modificação no papel do Estado na economia, mudança na relação capital-trabalho e mudança na forma de inserção da economia brasileira na economia mundial. Todos estes elementos representam uma volta ao período pré-1930, se estendendo ao período colonial, reforçando a existência de uma restauração oligárquica.

Com relação ao primeiro vetor, embora muitas vezes se associe o neoliberalismo com um Estado mínimo, na verdade ele representa uma mudança no papel do Estado para reforçar mecanismos competitivos em toda a sociedade. Isso pode exigir inclusive um Estado forte e mesmo autoritário. Por exemplo, o economista estadunidense Paul Samuelson se referia ao regime de Pinochet como ‘fascismo de mercado’. No caso brasileiro, fica clara a reorientação pretendida: retirar o Estado dos setores tradicionais de educação, saúde e previdência e transferência destes serviços para instituições privadas voltadas para o lucro, ampliando o espaço de valorização do capital. Outras atividades devem ser esvaziadas gradualmente, até se tornarem irrelevantes, como no caso da cultura, da ciência e da tecnologia (incompatível com o fundamentalismo religioso de cunho comercial que respalda o golpe), das políticas fundiárias para a agricultura familiar e das políticas de direitos mínimos às minorias. Além das privatizações de empresas e dos bancos estatais, serviços de segurança pública, inclusive o serviço prisional, devem ser transformadas crescentemente em atividades lucrativas. A principal mudança que compõe este primeiro vetor é o congelamento do orçamento federal por 20 anos (o chamado nominalismo) para as despesas com bens e serviços e liberdade para expansão do orçamento para os juros e as amortizações da dívida pública. Assim, a proposta de desvinculação dos gastos da arrecadação, liberando 30% das receitas para uso livre pelo governo golpista, representará redução no montante gasto com serviços públicos em saúde, educação e previdência e disponibilidade para transferências para o serviço da dívida, por exemplo. Com a consolidação do golpe, impostos mais regressivos deverão ser majorados.

Ainda com relação ao primeiro vetor estrutural, há também medidas de caráter conjuntural, como a aprovação de um elevado déficit orçamentário (excesso de gastos sobre receitas) para 2016. Esse déficit deve ser empregado como justificativa para cortes progressivos em programas sociais, como o Minha Casa Minha Vida, e para acelerar a reforma da previdência. Por outro lado, em uma economia em recessão o déficit é uma medida que minimiza a queda na atividade econômica e evita um aprofundamento da crise, dando algum fôlego econômico ao golpe. Dentro das forças políticas que apoiam a ruptura eleitoral, há também uma outra explicação para a ampliação do déficit. Discute-se muitas vezes a necessidade de coordenação entre a política monetária, que compreende a determinação da taxa básica de juros, o gerenciamento da liquidez e as condições de expansão do crédito e de evolução da taxa de câmbio, e a política fiscal, que compreende a definição dos gastos do governo, incluindo transferências, e as principais fontes de arrecadação. A diferença entre as duas se traduz, em parte, pela evolução da dívida pública, cuja taxa de expansão depende também da taxa de juros definida pelo Banco Central. Se há uma política de contenção de despesas e o Banco Central eleva a taxa de juros, exigindo maiores desembolsos financeiros pelo governo, então a contenção inicial de gastos (em geral com bens e serviços públicos), será parcialmente neutralizada, elevando o chamado déficit nominal. As duas políticas precisam, portanto, estar coordenadas para evitar ambiguidades. Por outro lado, quando o presidente do Banco Central, agora transformado em sucursal de um banco privado, anuncia que não há espaço para cortes nas taxas de juros, que no Brasil têm estado continuamente entre as maiores do mundo, ele sinaliza que a nova dívida pública gerada pelos déficits ampliados será remunerada a taxas “escorchantes”. Trata-se de um enorme programa de transferência de renda para a parcela mais rica da população, além dos detentores externos dos títulos da dívida, em detrimento da população mais pobre. Exatamente como esperado de uma oligarquia que tem no rentismo um grande aliado.

A autorização de expansão do déficit é uma decisão política, como praticamente tudo mais em economia. O economista britânico Abba Lerner afirmou que a economia ganhou o status de rainha das ciências sociais por assumir um programa de pesquisa que tinha como questões centrais racionalizar problemas políticos resolvidos. Tentativas de reversão do déficit em uma economia em recessão levam a riscos de colapso econômico completo, como demonstrado no caso dos Estados Unidos no chamado penhasco fiscal. O congresso conservador não autorizou a ampliação dos limites da dívida pública (embora esse limite tenha sido ampliado continuamente durante os períodos em que o executivo era comandado pelos conservadores), e serviços públicos essenciais (para a maioria da população) foram interrompidos, levando o congresso a reverter sua decisão. No Brasil, do ponto de vista do ciclo recessivo atual, o governo golpista é portanto pragmático ao expandir o déficit primário. A austeridade é um programa fracassado, como reconhece o próprio FMI e cada vez mais outras instituições do establishment. Essa decisão apresenta diversos aspectos que convergem para a consolidação político-jurídica do golpe, por um lado, e da consecução de seus objetivos econômicos de curto e longo prazo, de outro. Os reajustes salariais para segmentos privilegiados do estamento burocrático, que tem papel fundamental em garantir a legalidade do golpe, são financiados com emissão de dívida remunerada a taxas elevadas, garantindo o consenso entre o rentismo.

O segundo vetor envolve uma mudança nos parâmetros institucionais do conflito capital-trabalho, isto é, mudanças na legislação trabalhista que aumentam a barganha dos trabalhadores por salários e benefícios. Aqui há um amplo pacote de medidas contra os trabalhadores, incluindo a terceirização, e mudanças nas regras de correção do salário mínimo. A mais importante medida é a proposta de tornar redundante as regras legais de proteção ao trabalhador na barganha com os patrões. A proposta de mudança que privilegia o negociado pelo legislado representa um enorme retrocesso e que aponta para mecanismos formais próximos à escravidão (que deve ter uma forte expansão nos próximos anos). A existência de uma legislação trabalhista garantindo contratos de trabalho com um mínimo de equidade jurídica é uma das características de uma economia capitalista moderna em comparação com uma economia arcaica. Essa ofensiva não acontece apenas no Brasil, e na França tem levado a confrontos campais entre os trabalhadores e a repressão estatal, com a proibição de manifestações na cidade de Paris. No Brasil os sindicatos parecem não estar muito engajados no confronto a esse enorme retrocesso no sentido de uma economia de corte semi-escravista em que direitos trabalhistas são facilmente ignorados pela necessidade de manter o emprego. Com a provável compressão salarial, e a interpretação econômica dos economistas do golpe é que os salários cresceram desnecessariamente nos últimos anos, e isso é inaceitável para uma República de Bananas, as condições de ampliação da lucratividade ficam asseguradas, mesmo que isso implique restrição de demanda para adquirir os bens produzidos com uma lucratividade potencial maior em função da maior compulsão ao trabalho em condições degradantes de trabalho proporcionadas pela inobservância “consensuada” da lei.

Do ponto de vista das propostas estruturais que incluem o primeiro e o segundo vetor, a reforma da previdência é central. Em primeiro lugar, os reajustes dos vencimentos foram desvinculados do salário mínimo, implicando perdas reais potenciais nos próximos anos para que se crie espaço para o pagamento de mais juros aos rentistas. Além disso, as mudanças demográficas permitem ampliar o período de venda da força de trabalho, mesmo que em condições desfavoráveis pelas mudanças proporcionadas pelo segundo vetor. Com a redução do Estado como absorvedor de parte da mão de obra nacional, resta a exploração no setor privado, já que se trata de força de trabalho qualificada, ou a marginalização, com a justificativa ideológica da punição por “falta de mérito ou esforço” (o que não é totalmente falso para alguns segmentos da burocracia estatal). A ampliação da oferta de trabalho amplia a competição entre os trabalhadores, em linha com o ideário neoliberal, em um contexto de reforma dos parâmetros da barganha salarial (e dos benefícios trabalhistas da Era Vargas – que devem desaparecer progressivamente), com o “negociado” (outro termo para chantagem patronal na maioria dos setores produtivos) prevalecendo (na verdade eliminando) sobre o legislado (os parâmetros legais referidos acima), haverá forte compressão salarial e uma forte expansão da lucratividade.

O terceiro e último vetor estruturante é a mudança da orientação do Brasil na economia global. A diversificação das parcerias comerciais do país nos últimos anos serão revistas e o Mercosul deve ser solapado aos poucos. As mudanças na legislação ambiental permitirão acelerar a reprimarização da economia e completar a restauração oligárquica. O Brasil tenderá a ocupar novamente o seu papel tradicional na divisão internacional do trabalho, como produtor de mercadorias primários e insumos produtivos de baixo valor agregado. Nem mesmo com o segundo vetor plenamente desenvolvido o Brasil poderá competir com a China e os novos espaços de acumulação de capital na Ásia (Vietnã, Camboja etc.) em termos de custos trabalhistas. A estratégia de exploração extensiva da oferta de trabalho semi-escravo, que se encontra em transformação pela própria dinâmica da rápida acumulação chinesa, com expansão das greves e dos salários, não poderia ser facilmente emulada no Brasil sem uma forte repressão dos sindicatos e partidos de esquerda. Além disso, as empresas chinesas, sendo que as maiores e mais importantes são estatais, investem em inovação, introduzindo forte progresso técnico na economia. A burguesia industrial brasileira não investe em quantidade e em qualidade. Sobram os serviços, que sofrem competição internacional restrita, e o agronegócio, que ainda é competitivo em função da própria aceleração chinesa, mas que encontrará dificuldades com o rebalanceamento da China, o menor crescimento mundial e a expansão da fronteira agrícola na África e a manutenção do protecionismo agrícola dos países de renda elevada. O BRICS, enfraquecido estrategicamente pelos EUA, perderá espaço na agenda externa do governo golpista em sua estratégia de submissão incondicional aos ditames de Washington. Por fim, a estratégia de transferência dos ativos nacionais para o capital internacional representa a canalização da renda potencial interna para o exterior, contribuindo ainda mais para reduzir o dinamismo endógeno da acumulação de capital.

A restauração oligárquica e a retomada neoliberal é, pela própria dinâmica que instaura, eivada de contradições que apontam para seus limites de sustentação econômica. O congelamento dos gastos públicos e os ataques aos trabalhadores, refletidos em rebaixamento salarial, reduzirão o mercado interno. Elementos de entreguismo ampliam a canalização da renda e da riqueza doméstica para o exterior, a troco de comissões e posições nas direções das empresas transferidas para o controle externo. A elevação de impostos que virá com a consolidação do golpe deve ampliar o caráter regressivo da tributação no Brasil, restringindo ainda mais o mercado interno. Esse movimento aprofunda ainda mais a desigualdade de renda e riqueza, típico de sociedades com dominação oligárquica, restringindo as possibilidades de dinamismo endógeno. Nesta situação, apenas a ampliação do mercado externo se torna factível para realizar os maiores lucros proporcionados pela nova configuração do conflito entre capital e trabalho e em menor medida pela ocupação do espaço público pelo setor privado que busca o lucro (principalmente via estatais com elevado grau de internacionalização).

Todavia, a situação externa não parece apontar para a rápida expansão da economia mundial que seria necessária para esta estratégia de reestruturação capitalista no Brasil se consolidar de forma sustentada. A China, principal parceira comercial do Brasil, se encontra em processo de desaceleração. A economia chinesa também se encontra em meio a um processo de transição (o chamado rebalanceamento), reduzindo o papel das exportações e dos investimentos e ampliando o papel dos gastos públicos e do consumo interno. O sistema bancário paralelo chinês é outra incógnita que aponta para uma maior fragilidade financeira e a possibilidade de uma crise internacional de grandes proporções. Os EUA apresentam uma trajetória ambígua, com sinais de retomada intercalados por indicadores pessimistas. De qualquer forma, os problemas estruturais que levaram à crise e ao seu aprofundamento, a crescente desigualdade de renda e riqueza ou brazilianização da sociedade, permanecem intocados. O sistema financeiro segue livre para proporcionar instabilidade e fragilidade ao resto da economia. A Europa, após a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, deve aprofundar sua espiral deflacionária e estagnacionista. O Mercosul, um dos poucos mercados que absorvem a produção industrial do Brasil, será esvaziado na estratégia geopolítica dos golpistas, assim como os parceiros comerciais construídos na África no último período. Ao mesmo tempo, a política monetária, terceirizada à banca privada, com a manutenção de taxas de juros recordes, também reforçam a trajetória recente de apreciação da moeda brasileira e impõem uma dificuldade maior de retomada da atividade econômica via setor externo. Aparentemente apenas o agronegócio conseguiria minimizar estas barreiras, o que poderia atrair capitais para a agroindústria e proporcionar alguma expansão da acumulação de capital no Brasil, estabilizando a sociedade pós-golpe. Mas essa transformação não seria suficiente para consolidar um período de crescimento elevado e sustentado generalizado, como sugere a desapontadora história econômica do Brasil e da América Latina nos longos períodos de dominação oligárquica.

Ou seja, com a oclusão das demais fontes de realização dos lucros potenciais gerados na produção, em função do favorecimento político do capital frente tanto ao trabalho como ao Estado, a própria acumulação sustentada de capital fica comprometida, e com ela o dinamismo da própria economia capitalista por meio dos efeitos indiretos que o investimento gera e que são necessários para manter a expansão da atividade econômica sem sobressaltos. Ao mesmo tempo, a capacidade ociosa ampliada pela recente crise e os estoques não vendidos em níveis elevados em alguns ramos industriais sugerem que o investimento não deve decolar de forma sustentada nos próximos trimestres. Ainda que haja uma leve recuperação do investimento, ele pode simplesmente reproduzir o padrão anterior, em que a burguesia compradora nacional simplesmente investe de forma quantitativa mas não qualitativa, com diferente tipos de apoio estatal. O investimento que amplia a competitividade no capitalismo do século XXI é feito de forma diferente, intensivo em conhecimento e tecnologicamente sofisticado, o que é incompatível com o fundamentalismo religioso abrigado no governo golpista. Se mesmo com o apoio do Estado o padrão de investimento não parece ter conduzido a um progresso técnico significativo, sem o apoio Estatal, de acordo com o cânone neoliberal, as possibilidades são ainda menores (e nesse sentido a restauração oligárquica e a retomada neoliberal podem bem representar o prego no caixão da burguesia industrial, com o pato sendo devidamente pago pelos trabalhadores). E mesmo as multinacionais aqui instaladas nunca conduziram o país à fronteira tecnológica por razões óbvias de competição interestatal. A retomada do padrão de privatizações dos anos 1990 também não será capaz de proporcionar avanços técnicos mais densos. Há nesse caso apenas transferência de propriedade, e alguns casos apropriação dos reduzidos espaços de inovação técnica criados no Brasil, como no caso das construtoras e da extração de petróleo em águas profundas pela Petrobrás. Os supostos ganhos de eficiência da transferência de propriedade não são claros, e mesmo que ocorram seriam incapazes de proporcionar um salto em termos de crescimento econômico. As privatizações na área da infraestrutura podem expandir os investimentos, mas novamente se coloca a questão: como esta infraestrutura poderá ser utilizada se os demais setores que a utilizam se encontram estagnados? A resposta parece apontar para as consequências da manutenção da taxa de juros em patamares elevados. Isto sinaliza um aprofundamento da financeirização das empresas no Brasil, com as condições favoráveis para o capital produtivo em seu conflito com o trabalho existindo apenas como condição necessária para a retomada da acumulação, mas não suficiente. O governo golpista está enredado em uma retomada neoliberal fadada ao fracasso, agora como nos anos 1990. As contradições são geradas portanto pelas próprias opções políticas e econômicas gestadas pela restauração oligárquica. Sem a legitimidade que o crescimento econômico proporciona (mas que nem sempre este é o caso, como mostra o momento golpista anterior ao atual). A sustentação de um governo ilegítimo e de uma estratégia econômica que tem tudo para fracassar exige uma forte repressão por parte do governo central e dos governos estaduais aliados ao golpe. Mas a restauração oligárquica já deu mostras de que esse é justamente o propósito.