Neste setembro, quando se completam 180 anos da “República Riograndense”, um livro vai trazer à cena um dos personagens mais controvertidos deste período histórico: Bento Manoel Ribeiro.

Nas 320 páginas de O Caudilho Maldito (Martins Livreiro/Editora Edigal), o jornalista Euclides Torres mergulha nas conturbadas águas da história platina para entender o enigma do general, de feitos inegáveis, que o imaginário popular rotulou como trânsfuga, traidor e ladrão.
Decisivo no início da Revolução, Bento Manoel logo abandonou os farrapos e se tornou no seu mais temível inimigo, autor da prisão de Bento Gonçalves.
Depois voltou às fileiras farroupilhas para, em seguida, voltar a traí-los.
Em entrevista a Cleber Dioni Tentardini, Euclides Torres falou sobre o trabalho.
Por que o Bento Manoel?
Comecei por curiosidade pessoal e, depois, para saber de suas intervenções na história de Caçapava do Sul, minha cidade. Depois, por desconfiança de que nem tudo do que falavam mal dele seria verdadeiro.
Ficou com fama de traidor…
E velhaco, ladrão. E isso me chamou a atenção porque todos os milicianos da época ‘tomavam’ e ganhavam terras e gado. Muitos não perdiam a oportunidade de negociar com o Império, tornavam-se fornecedores das forças armadas, era um comércio garantido pra eles. Defendiam as fronteiras do Sul contra os platinos porque recebiam benesses em terras, onde fixavam gente. Então, em determinados momentos cada um desses estancieiros significava uma coluna com 800 milicianos na fronteira dispostos a lutar. (NE: Ele talvez tenha sido apenas o mais voraz?)
Mas era bom estrategista…
Veja a batalha da Ilha do Fanfa, em que ele prende o Bento Gonçalves. Meses depois ele prende o próprio presidente da Província a serviço do Império, o marechal Antero José Ferreira de Brito. Ninguém queria ter Bento Manoel como inimigo.
Um personagem desconhecido
Um personagem fascinante. Fala-se muito na conduta dele no Decênio Farroupilha, mas desde 1801 ele participa das guerras. Antes dos 40 anos, já era coronel, comandante de forças do império. Ele ficou conhecido na Corte como o general que vencia sem combater. Em 1822, com 90 soldados, ganhou dos uruguaios, que tinham 300 homens. Blefou. Simulou uma situação fazendo os inimigos crerem que ele estava em número bem maior. Cinco oficiais uruguaios foram enviados presos ao Rio de Janeiro. Ele poupou a vida e libertou os soldados da Banda Oriental com a promessa de que não pegariam mais em armas.
Ele era paulista, não é?
Nasceu em Sorocaba, em 1783. É descendente dos povoadores portugueses no Brasil, os Ribeiro de Almeida. Veio para o Rio Grande do Sul com cinco anos, acompanhando seu pai e um irmão mais velho, que eram tropeiros. O destino era Viamão. Viajou em um cesto, em cima de uma mula. Um ano de viagem, uma odisseia. Depois seu pai foi morar em Cachoeira do Sul, onde teve outros filhos. Ele foi morar em uma fazenda em São Sepé, de propriedade do alemão Adolfo Charão.
Aos 17 anos, alistou-se como soldado no regimento de milícias de Rio Pardo, em Caçapava do Sul. Já como alferes, casou com a filha do estancieiro mais rico do município. Em 1823, chegou a coronel. Como recompensa de suas vitórias sobre os uruguaios, recebeu grandes extensões de terra na região de Alegrete.
Elegeu-se deputado para a Assembleia Provincial, em 1835, junto com Bento Gonçalves, cinco anos mais moço que ele.
Era corpulento…
Era gordo, grande. Tinha fama de dormir em cima do cavalo. Provavelmente deixou uma descendência no Rio Grande do Sul bem maior do que seus sete filhos.
Era quase analfabeto, mas foi melhorando seu texto ao longo do tempo. Foi dono até de jornal em Porto Alegre, “O Justiceiro”, redigido pelo filho Sebastião Ribeiro, que estudou em São Paulo e praticamente ensinou o pai a escrever.
Onde ele estava quando os farroupilhas tomaram Porto Alegre, o 20 de setembro?
Ele não estava aqui, ou melhor, ninguém sabia onde andava, sempre arrumava um pretexto para não participar, mas avisava que estava sempre por chegar. Ou mandava avisar que estava doente.
Politicamente como ele seria definido?
Ele declarava apoio aos farroupilhas, mas era um entusiasta do Império. Dirigia-se “a meu amado imperador”. Em 1831, uma carta escrita em Montevidéu ao Império, denunciava que no Uruguai não se falava em outra coisa a não ser na ideia de separar a Província do Rio Grande e que ele, o coronel comandante do regimento de milícias Bento Manoel Ribeiro, era contra essa posição separatista.
No entanto, aderiu ao movimento… em que momento ele virou a casaca?
Em 1836 Porto Alegre está sitiada. É bombardeada. Bento Manoel muda de lado e passa a apoiar os imperiais. O presidente da Província, José de Araújo Ribeiro, o nomeia comandante da armas. Vai ficar até março de 1837.
Ele justificava suas mudanças de lado?
Foi apelidado de “cangalheiro de Curitiba”. Cangalha é onde vinham atrelado os cestos no lombo da mula, onde ele viajou ainda criança com pai. Na realidade, havia uma enciclopédia de insultos: “Duas caras”, “Traidor, “Vira-casacas”, “Cangalheiro”, “Curitibano”. Curitiba era um engano das pessoas porque havia nascido em Sorocaba e nunca negou isso.
Era um homem do campo…
Cresceu em uma estância, aprendeu toda lida do campo, conhecia a campanha gaúcha como ninguém.
(NE: ele se dizia “gaúcho de Sorocaba”, mas o Apolynário diz que o termo gaúcho ainda não era usado naquela época…)
Havia um corpo de lanceiros negros sob suas ordens?
Ao contrário de outros comandantes, ele preferia índios guarani em sua coluna aos soldados negros. Ele gostava dos índios, inclusive criava alguns ‘bugrinhos’, como ele se referia às crianças indígenas. Tinha uma bronca do Rosas, que mandava matar os índios só por crueldade, mas ele não era assim. Matava, mas não era cruel. E seus soldados eram muito fiéis a ele.
Mas tem a famosa batalha do Sarandi, onde ele foi culpado pela maior derrota do exército brasileiro…
Na guerra pela independência do Uruguai, na Batalha de Sarandi, em 12 de outubro de 1825, ele comandou a maior derrota do Exército brasileiro, perdeu 470 homens e 600 foram aprisionados. Bento Gonçalves e Osório foram os que garantiram a fuga do Bento Manoel,com a gentileza do Rivera. Essa batalha de Sarandi, foi muito comemorada pelos uruguaios, inclusive com grandes bailes em Durazno, Foi nessa grande vitória onde os orientais ganharam ânimo para lutar por sua independência, que iriam conquistar somente três anos depois, em 1828.
O general uruguaio Rivera ajudou Bento Manoel?
Sim, Lavalleja mandou Rivera perseguir Bento Manoel mas só fingiu. Eles se perseguiam e se protegiam. Eram amigos, mas também mui amigos. Não dá para entender direito. Os oficiais dos inimigos eram respeitados, inclusive os mais graduados oficias do Império brasileiro presos no Sarandi participaram do famoso baile em Durazno, em homenagem a Lavalleja.
E a vitória?
Teve a tomada de Caçapava, em 1837, durante a Guerra dos Farrapos, que foi histórica. Os imperiais com 1.200 homens, inclusive os soldados sob seu comando. E, de repente, ele passa para o lado dos Farrapos. Porque o novo presidente da província, marechal Antero manda Bento Manoel passar o comando das Armas para seu oficial imediato. Aí ele intercepta uma carta enviada pelo marechal Antero com a ordem de prendê-lo. O que ele fez? Preparou uma tocaia para prender o marechal antes. Essa passagem é fantástica, em 1837. Ao mesmo tempo em que manda cartas aos superiores em Porto Alegre afirmando que está tudo bem, diz para o general Netto invadir Caçapava. Depois de prender o marechal Antero, Bento Manoel manda carta às forças imperiais em Porto Alegre avisando que o presidente da província estava preso sob ordens do Bento Gonçalves, que também estava preso. Portanto, o que acontecer com o Bento Gonçalves, acontece com o marechal Antero. Mandou que soltassem o general uruguaio Rivera, que estava em prisão domiciliar em Porto Alegre. E, mais tarde, depois que o Bento Gonçalves fugiu da Bahia, trocou a liberdade do marechal Antero por um oficial farrapo.

Há poucas referências na literatura sobre Bento Manoel?
Não, há muita. Mas também informações muito obscuras. Não se sabe o dia nem o mês em que nasceu, só o ano. Mais obscuros que os negócios dele com Rivera então, que financiou Bento Manoel para comprar o Cerro do Jarau. Ele passou da criança pobre que chegou só com as roupas do corpo para o chefe de umas das famílias mais ricas do Rio Grande do Sul. Quando morreu aos 73 anos, tinha gado que não dava para contar em mais de 60 mil hectares de campo, em cinco estâncias no entorno do Cerro do Jarau.
Ele foi decisivo também na tomada de Rio Pardo, outro momento importante da revolução…
Naquele momento Rio Pardo era a principal praça de guerra. Essa cidade esteve nas mãos dos Farrapos até abril de 1838, quando os imperiais tomaram o controle. Em abril de 1838, os farroupilhas investem novamente. E nessa investida, que ficou conhecida como o combate do Barro Vermelho, o Bento Manoel participa decisivamente. Foi uma grande vitória farroupilha. Na entrada de Rio Pardo os imperiais mandaram tirar as pontes de madeira para ninguém chegar. O resto era mato e água. O Bento mandou fazer uma picada de 800 metros, durante três ou quatro noites, e carregando terra e couros fizeram uma ponte em outro ponto do rio, e um aterro feito pelos corpos de cavalos magros, que mataram por serem fracos. O Netto e os outros oficiais com 1.200 homens tomaram Rio Pardo. Ali foi feita refém a banda imperial, do maestro Medanha, que depois tocou em Caçapava, em alguns bailes comemorativos dos Farrapos, e compôs o hino da República Rio-grandense. Só mais tarde é que o Moringue vai retomar Rio Pardo para os imperiais e libertar a banda sequestrada do Medanha.
Quem era o maior opositor do Bento Manoel entre os farroupilhas?
Ninguém confiava nele. Mas todos preferiam estar a seu lado nas batalhas.
Tem algum duelo histórico envolvendo esse personagem, como ocorreu entre Bento Gonçalves e o seu primo Onofre Pires?
Não, ele ganhava no grito. E quem foi prendê-lo, ele prendeu antes. E quem foi contratado para matá-lo, ele comprou. O “Dente Seco”, famoso capanga matador de Quaraí, foi contratado por 15 onças de ouro pelos Batistas, de quem Bento Manoel roubou campo e gado. Ao encontrar “Dente Seco” na sua fazenda, ele ofereceu 30 onças para o matador e salvou a vida.
Em que momento ele virou a casaca de novo?
Em 1839, ele começa a negociar a sua anistia com o Império. Não cumpre mais ordens dos Farrapos, está sempre ausente ou finge estar doente. Escreve para o Império pedindo anistia para parar de lutar e cuidar unicamente de seus negócios. A anistia chega mas no momento em que estão juntos o Bento Gonçalves, o Netto e outros oficiais. Ele lê e rasga o documento. Mas depois pede uma segunda via e assina. Era um artista. A frase emblemática da vida de Bento Manoel foi proferida pelo seu filho, Sebastião Ribeiro, ao amigo Sá Brito, nas ruas de Alegrete: “Lamento muito a atitude de meu pai passado a segunda vez para os farroupilhas e nem a água do rio Ibirapuitã vai lavar a honra da nossa família.”
E quando o Caxias chega ao Rio Grande, em 1843, onde está Bento Manoel?
Tentando ficar com a Presidência da Província e cancelar com a nomeação de Caxias, inclusive espalhando fofocas no Rio de Janeiro. Chegou a dizer que Caxias, com a metade de sua idade, era mais velhaco que ele. Mas não conseguiu. Caxias, sabendo de tudo, ganha a confiança de Bento Manoel só com vaidades, dizendo que não conseguiriam terminar a guerra sem a participação dele e essas coisas. Oferece bondades aos Farrapos, insiste que o inimigo era o Rosas, o que veio a se confirmam anos depois. Teve a ajuda do Bento Manoel para conseguir o acordo de paz que, na realidade, não foi assinado por ambas as partes porque o Império não reconhecia a República Rio-grandense como nação.
Bento Manoel chegou a lutar contra Rosas
Foi a última guerra dele. Já velho e doente, em 1851. Caxias chamou para comandar uma divisão das forças imperiais contra os argentinos de Rosas. Quando Caxias precisou se afastar para negociar com Urquiza, nomeia Bento Manuel comandante do Exército brasileiro. Aí, logo depois disso, ele morre.