Meritocracia: eis uma palavra que temos ouvido bastante nos últimos tempos. Como conceito, a meritocracia tem sido usada, por um lado, para avalizar, no campo sociológico e ético, o neoliberalismo enquanto solução econômica e estrutural para o país; por outro lado, de forma complementar, a meritocracia surge ainda, reiteradamente, como argumento contra políticas públicas que almejem reduzir qualquer forma de desigualdade social.
Convidado para participar deste ciclo sobre Língua, Literatura e Autoridade, considerei que seria interessante usar o termo como objeto orientador de nossas considerações, pois me parece que poucas palavras têm mais força hoje, no ideário conservador e neoliberal, do que a noção de meritocracia.
Mas que noção é essa exatamente?
Procurando por uma definição de meritocracia pelo senso comum, encontrei, no site do Instituto Mises Brasil, uma matéria escrita, em 2015, por Joel Pinheiro da Fonseca, mestre em Filosofia pela USP (2014). O artigo de Fonseca, “Não é a meritocracia; é o valor que se cria”, serve muito bem à nossa discussão, visto que não só expõe sua visão (neo)liberal sobre o assunto, mas, em adição, parte exatamente do senso comum para tentar explicar (no caso dele, elogiosamente) o que é a meritocracia.
Fonseca inicia seu texto a partir de uma imagem, compartilhada nas redes sociais, em que se vê um homem velho sentado no chão, ao lado de uma bengala improvisada, pedindo dinheiro com a mão estendida. Nessa imagem, leem-se ainda os seguintes dizeres: “SEGUNDO A MERITOCRACIA QUE OS REAÇAS TANTO DEFENDEM ESSE HOMEM É POBRE PORQUE NÃO SE ESFORÇOU O SUFICIENTE”.
Essa crítica, posta na imagem, Fonseca nos afirma que ocorre porque alguns liberais defendem a ideia de que o mercado é gerido por uma lógica meritocrática. A desconstrução desse argumento, como o próprio Fonseca mostra, é muito fácil de ser feita. Ele diz: “[…] será verdade que o mercado premia justamente o mérito? Se for, caro liberal, então você está obrigado a defender que Gugu Liberato e Faustão têm mais mérito do que um professor realmente excelente e que realmente ensine coisas úteis.”
Para livrar-se desse problema, Fonseca defende duas ideias principais: (i) meritocracia não é algo inerente à lógica de mercado, mas, sim, um modelo de gestão (e não sem seus problemas e vícios internos, como o próprio autor admite); (ii) o mercado não premia o mérito, mas sim a geração de valor. Assim, um excelente professor é menos premiado do que Gugu ou Faustão pelo fato de que ele tem um alcance muito pequeno (algumas centenas de alunos por ano), ao passo que essas celebridades teriam um alcance muito maior e gerariam muitíssimo valor para seus empregadores.
Apesar dessas distinções que Fonseca opera em seu texto, permanece uma confusão conceitual. Por um lado, ele diz que a lógica do mercado não é a de premiar o mérito, mas sim a de premiar a geração de valor. Por outro lado, usando uma comparação com a qual estamos dispostos a concordar (Gugu/Faustão vs algum ótimo professor), Fonseca faz um malabarismo com a noção do que é “mérito”, sem jamais definir o que seja. Ele inicia seu próprio texto exatamente nessa incerteza, dizendo: “Meritocracia é uma palavra bonita. Não. É uma palavra que remete a uma coisa bonita: que cada um receba de acordo com seu mérito, que em geral é igual a esforço, dedicação; às vezes se inclui a inteligência.”
Como Fonseca jamais define o que entende por mérito ou meritocracia, devemos tentar abstrair uma definição a partir do exemplo por ele usado. Na comparação entre Gugo/Faustão e algum excelente professor imaginário “que realmente ensine coisas úteis”, ficamos dispostos a concordar, pela ideia de excelência e utilidade, que o professor é mais meritório, ainda que tenha um menor salário. Fonseca cria, desse modo, uma equação que pode ser resumida da seguinte forma: a geração de valor é igual à qualidade do serviço/produto multiplicado por seu alcance. Assim, ainda que concordemos que o professor seja mais meritório do que os apresentadores de TV, visto que o serviço que ele presta tem melhor qualidade do que o daqueles, precisamos concordar também que a geração de valor dos apresentadores, no sentido financeiro, seja superior à do professor, pois dão muitíssimo mais lucro em virtude de seu alcance.
Com isso, Fonseca nos leva a crer que mérito, então, tenha a ver apenas com uma parte da equação, a qualidade do serviço ou do produto que oferecemos, sua excelência e utilidade. Se esse serviço ou produto não alcança ninguém (seja por indisponibilidade de oferta ou por falta de interesse em consumi-lo), nossa geração de valor será nula, mesmo que sejamos meritórios.
Assim, somos levados fazer a seguinte substituição:
de
geração de valor = qualidade do serviço/produto x alcance,
para
geração de valor = mérito x alcance.
Entretanto, com esse salto, ocultamos um problema conceitual, que também Fonseca oculta em seu texto. Explico.
Pensemos no exemplo de um artista cujas obras ontem eram ignoradas, mas hoje são descobertas como verdadeiros tesouros. Ontem, ninguém tinha interesse em comprar um de seus quadros; hoje, todos querem. Cada um desses quadros, enquanto objeto passível de ser possuído individualmente, permanece com o mesmo alcance, 1. Entretanto, para quem vende esses quadros, sua geração de valor é imensamente maior. Se o alcance não mudou, teria mudado então a qualidade?
Certamente não. O quadro permanece o mesmo. Suas qualidades são as mesmas. O que mudou foi o valor que atribuímos a essas qualidades. Logo, somos forçados a admitir que mérito não é idêntico à qualidade de um serviço ou de um produto, mas, sim, ao valor que se atribui à qualidade daquele serviço ou produto.
Numa sociedade moldada pelo fetichismo, como a nossa, da noite para o dia, um produto ou serviço pode ter um enorme salto de valor, pois, mediante propaganda e manipulação da opinião pública, a percepção do que seja sua qualidade pode ser facilmente alterada. Ao mudar-se a percepção do que seja a qualidade desse produto ou desse serviço, muda-se também seu valor. A melhor acepção, portanto, que podemos dar à palavra mérito, dentro desse contexto, é a de valor.
É interessante, aliás, notar que mérito vem do Latim meritum, um derivado do verbo mereo, que indica a ideia de ser digno de algo. A partir dessa ideia inicial, mereo passa a ter outras derivações de sentido, para expressar também o ato de receber algo ou mesmo de comprar algo. De mereo, herdamos a palavra meritum, que indica aquilo de que alguém é digno, por uma equivalência de valor. Você é digno de uma recompensa, de ter seu terreno, sua casa, ou o que for, por haver uma equivalência de valor entre sua pessoa e a coisa em questão.
Na equação que encontramos dentro do discurso de Fonseca, dissemos que a geração de valor (ou seja, o quanto de dinheiro as pessoas lhe pagam pelo que você faz) equivale ao mérito de seu serviço ou de seu trabalho (ou seja, o valor que se atribui a esse serviço ou trabalho) multiplicado pelo alcance que ele tem (ou seja, quantas pessoas pagarão por ele).
Ao dizer que a meritocracia é, na verdade, um modelo de gestão em que se premia o mérito de cada um, Fonseca parece dar a entender que ela é algo alheio à lógica do mercado. Devemos supor, então, que o mérito idealmente premiado na meritocracia seja diferente daquele encontrado na fórmula de geração de valor? Se é a geração de valor que orienta o mercado, como não seria também a geração de valor aquilo que a meritocracia premiaria? Mesmo quando se premia o mérito potencial de alguém, independentemente de seu alcance, não se faz esse prêmio justamente pensando no alcance que o trabalho desse indivíduo pode ter? Ou se um empregador premia um funcionário pelo alcance de seu trabalho, esperando qualificá-lo para melhorar a qualidade de seu serviço/produto, seu mérito, isso também não está inserido na mesma lógica descrita por Fonseca, que visa otimizar a geração de valor?
Para além do senso comum, o que Fonseca não nos diz é que o termo meritocracia foi cunhado em 1958 por Michael Young, em seu livro The Rise of the Meritocracy, a partir do termo latino meritum, que em Português nos legou “mérito”, e o termo grego κράτος (krátos), “força”. Apesar da adoção positiva que a palavra teve tanto em Inglês como em Português, é importante notar que ela surge, no livro de Young, dentro de um ambiente satírico, ambientado em uma sociedade distópica obcecada em identificar e premiar, desde cedo, por meio de uma educação especial, as pessoas mais inteligentes e esforçadas.
Pouco antes de morrer, em 2002, Young escreveu um artigo para o jornal The Guardian falando de sua frustração em ver como a ideia de meritocracia foi usurpada por pessoas como o então primeiro-ministro Tony Blair, que a usavam como um ideal a ser perseguido. A argumentação de Young nesse momento, já no fim da vida, era a de que, tomada da forma como foi, a ideia de meritocracia apenas serviu para fazer com que as pessoas que já detinham riqueza e poder se sentissem ainda mais legitimadas em recompensar-se tanto quanto possível.
A ideia do sociólogo inglês, que já era distópica em sua forma original, foi aproveitada de forma parcial e ainda mais distopicizante: adotou-se a recompensa do mérito e passou-se a alienar cada vez mais as massas de um acesso à educação e aos processos que selecionariam os mais inteligentes e esforçados. Reitero: mesmo se tivesse sido adotada do modo que Young a descrevia, a meritocracia era algo reservado para um futuro distópico. Adotadas a palavra e a ideia como foram, a realidade se tornou pior do que o pesadelo ficcional.
Sendo valor uma unidade subjetiva, dependente da opinião das pessoas, devemos entender a meritocracia simplesmente como o processo de reforço e manutenção de uma determinada ordem de valores. Os liberais, como Fonseca, acreditam que essa ordem de valores é imposta ao mercado por demandas racionais das pessoas, ignorando o poder que o mercado tem, por meio da publicidade, da propaganda, das formas de arte que ele próprio fomenta, de definir esses valores, bem como de levar as pessoas a tomar escolhas irracionais.
A meritocracia como a temos nada mais é do que o foco extremo em premiar cada um pelo seu mérito, entendido como valor dentro de uma equação de geração de valor, ignorando os processos pelos quais definimos esses valores. Mais do que isso, ousaria dizer que a meritocracia é exatamente o domínio da determinação de valores. No mundo meritocrático, aqueles que conseguem dobrar a opinião dos outros, que conseguem alterar a ordem de valores a seu favor, são exatamente os mais poderosos.
A meritocracia é o poder do valor.
Epílogo
A Grécia antiga foi um dos primeiros lugares no mundo em que alguém fincou uma pedra ou uma estaca no chão e disse: “este terreno é meu”. Esse acontecimento, aparentemente banal, dá origem a algo revolucionário: a partir disso, sugiram as primeiras cercas e a própria ideia de propriedade privada, ainda no neolítico, por volta de 9.000 anos atrás.
Esse passo está intimamente ligado com o desenvolvimento da agricultura e com a necessidade de assentar-se em um lugar e protegê-lo, para cultivar a terra, em oposição à vida nômade de caça e coleta. Essa mudança de modo de vida, como aponta Joseph Campbell, ilustre estudioso de mitologia comparada, conduz também a uma mudança de modo de pensar, de concepção de mundo, de mitos e crenças que expliquem o funcionamento da realidade e o sentido da existência. Tais mudanças, como podemos esperar, efetuam-se no plano da linguagem, onde deixam marcas sensíveis.
Curiosamente, a mesma raiz de mereo, o verbo latino que nos legou mérito, também existe em Grego, onde dá origem, por exemplo, à palavra μέρος (méros), que designa a porção devida a cada um. Esse termo vem do verbo μείρομαι (meíromai), dividir. A mesma raiz dessas palavras origina também a palavra μοῖρα (moîra), que por vezes traduzimos por “destino”, “sorte”, “fado”, “quinhão” ou “lote”. A palavra μοῖρα refere-se à distribuição do destino individual dado a cada indivíduo. A tradução de μοῖρα por lote é especialmente interessante, por ligar a ideia de um destino dado também à ideia de posse territorial, pois chamamos um terreno cercado também de lote. Assim, lote pode se referir tanto à terra como ao destino que se tem. Essa tradução ajuda a evidenciar como o destino de uma pessoa está intimamente ligado à porção de propriedade que lhe é cabida, à sua μεριτεία (meriteía) – termo que designa a “distribuição de terra”. Quem não tem terra, por essa lógica, não tem destino.
Se compreendêssemos meritocracia pela acepção grega, teríamos a ideia de poder da propriedade privada. Seria apenas uma terrível casualidade se essas duas ideias, mérito e propriedade, não tivessem sempre andado de mãos dados na história da civilização ocidental. Afinal de contas, quem detém a terra detém também o poder e a capacidade de atribuir valor a cada coisa.
Referências
FONSECA, Joel Pinheiro da. “Não é a meritocracia; é o valor que se cria”. Artigo de 20 de outubro de 2015 para o Instituto Ludwig von Mises Brasil. Disponível em http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2054. Acesso em 20/05/2016.
YOUNG, Michael. “Down with meritocracy: The man who coined the word four decades ago wishes Tony Blair would stop using it”. Artigo de 29 de junho de 2001 para The Guardian. Disponível em http://www.theguardian.com/politics/2001/jun/29/comment. Acesso em 20/05/2016.
__________. The rise of the meritocracy, 1870-2033: An essay on education and inequality. London: Thames & Hudson, 1958.