Por Félix Gonzalez e Denise Jardim
No dia 3 de março passado, a professora Maria Rosaria Barbato, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais foi intimada pela Polícia Federal (PF) para dar explicações sobre a sua participação em “atividades partidárias e sindicais” pelo fato de ser estrangeira.
O que extraímos desse episódio sobre nosso ambiente atual e sobre os debates acerca da defesa da democracia e cidadania?
Para os brasileiros, o fato parece tornar óbvia uma certeza: estrangeiro não é nacional e, portanto, não é cidadão. Mas observando com mais calma o encadeamento de fatos que culminam nesse indiciamento, é importante reconhecer sinalizações de retrocessos em diferentes âmbitos.
Em primeiro lugar, a PF aplicou à docente o artigo 107 da Lei 6815/1980, mais conhecida como “Estatuto do Estrangeiro”, assinada por João Figueiredo nos estertores da ditadura, e que reza assim:
“O estrangeiro admitido no território nacional não pode exercer atividade de natureza política, nem se imiscuir, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do Brasil, sendo-lhe especialmente vedado: (…) organizar desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza, ou deles participar”
Tal estatuto foi ressuscitado das gavetas da PF nos momentos de efervescência política que o país está vivendo. Com motivo das passeatas contra o golpe parlamentar que sofreu a legítima presidente, a Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) advertiu através de nota aos meios de comunicação, publicada no dia 16 de abril, que “estrangeiros que participarem de atos políticos podem ser detidos e expulsos do país”, conforme o mencionado Estatuto. Deve-se considerar que a FENAPEF representa os servidores da PF, sem ser órgão oficial governamental.
Poderia ser uma postura óbvia se não soubéssemos que desde 2010, a PF sob coordenação do Ministério da Justiça, esteve diretamente envolvida em políticas orientadas para o combate ao tráfico de pessoas e, para tanto, envolvida com a efetivação de documentos internacionais de proteção aos direitos humanos, evocando em diferentes arenas públicas o Tratado de Palermo que, no âmbito das políticas internacionais que o Brasil é signatário, visa coibir o trafico de bens e mercadorias com a ressalva importante de incorporar um tratado que visa tratar as vítimas do tráfico de pessoas como verdadeiras vítimas e não como partícipes de crimes. Por, ao menos, cinco longos anos, a PF construiu em seus quadros os núcleos de enfrentamento ao tráfico de pessoas e mobilizou a observação de formas de encaminhamento condizentes com tais documentos em consonância com as críticas de ativistas dos Direitos Humanos.
Por isso, a criminalização da professora Maria Rosária Barbato aparece como um episódio de várias camadas. Uma delas exige romper a imediatez da evocação da lei contra o estrangeiro, como se a própria PF desconhecesse e não estivesse envolvida em debates outros sobre uma atuação que deve ter cuidados com seu afã por indiciamentos e tipificação de criminosos, em especial, quando relacionado a pessoas estrangeiras.
Uma segunda camada diz respeito ao que sinaliza para um estrangeiro qualquer na atualidade. A notícia trouxe preocupação e constrangimento aos muitos cidadãos estrangeiros, principalmente os residentes permanentes, que moram no Brasil pelo tolhimento a sua liberdade de expressão e, principalmente, porque essa Lei fere a carta magna, a Constituição Federal, que garante no seu artigo 5º a igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País (…)” uma série de direitos, entre eles “a manifestação do pensamento” e a “liberdade de associação”, além da liberdade sindical e o direito de reunião.
Embora juridicamente possa ser facilmente comprovada à incompatibilidade entre uma Lei, emanada da ditadura, com a Constituição vigente, um estrangeiro que participe de atividades associativas, políticas, sindicais ou simplesmente de uma passeata ou um comício, pode ser detido, constrangido, humilhado e até ameaçado de expulsão.
Quem é a professora Maria Rosaria Barbato? Professora contratada desde 2010, e concursada desde 2013 na UFMG. Portanto, não se trata de um estrangeiro que pode ser posto em suspeição por fragilidades de seus processos de inserção laboral no Brasil. Ela trabalha em uma universidade pública. Estaria ela mais resguardada do que outros estrangeiros? Por isso não deveria se preocupar? De fato, sinalizar com o indiciamento de uma pessoa que, a princípio parece tão resguardada não é “em si” um drama pessoal digno de ocupar a mídia no final de semana. Mas, é algo que sinaliza para outros, aqueles que se vejam mais frágil, e poderiam entender que se “até” uma pessoa regularizada sofre indiciamentos, o que sobra para os demais mortais? Se a mensagem pura e dura foi somente, e tão somente isso, já é um caso grave, pois o “entulho” autoritário está se fazendo valer da “suspeição”, e do jogo de cena em que uma federação, uma sociedade civil de direito privado que é uma organização sindical, faz uma leitura dos direitos políticos de qualquer estrangeiro (ou qualquer um), sinalizando que esses podem ser subtraídos.
Essa é uma chantagem que vem sendo disseminada. Nessa camada, aprendemos com o caso da professora um jogo de suspeição que vem se disseminando para os estrangeiros e que conhecemos em outros campos da vida nacional, criminalizando relações solidárias como “conluio” e buscando coibir o debate na arena pública.
A esperança para corrigir esses equívocos e se livrar desses entulhos ditatoriais está em projetos de lei: o PL 5293/2016, de autoria do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), propõe criar o Conselho Nacional de Imigração e atualizar o atual estatuto, argumentando que a participação de estrangeiros em sindicatos, organizações não governamentais, partidos políticos e outros movimentos sociais é desejável e republicano, como ocorre em países democráticos. Em tempos de paz, não cabe aplicar estatutos que à sua época nasceram da visão paranoica dos ditadores argumentando intervenção estrangeira e ameaça à segurança nacional. Os estrangeiros não podem ser alvo de punições ou proibições diante da sua participação em qualquer manifestação, reunião, passeata, conferência, ato ou atividade política ou social pacífica. Além desse PL, existe o PL 2516/2015, do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) que pretende ser uma nova lei de imigração no Brasil. O texto diz que “ao imigrante é garantida, em condição de igualdade com os nacionais (…) direito de reunião para fins pacíficos; direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos”.
O problema persiste porque esses projetos de lei devem demorar em serem analisados e aprovados pelo Congresso Nacional. Desde 2012, culminando em 2013 na I Conferência Nacional sobre Imigrações (COMIGRAR), que contou com a presença ativa da PF, o debate sobre uma nova lei imigratória receptiva a princípios relativos aos direitos humanos vem sendo realizado e, nesse momento, uma súbita amnésia toma conta das instituições. Até lá, os estrangeiros estão em uma corda bamba jurídica com seus direitos de manifestação ameaçados.
A professora Maria Rosaria Barbato, ademais, é uma especialista em direito e dedica-se ao tema do tráfico internacional de pessoas. Nada mais paradoxal! Era por aí que a PF estava renovando seus quadros e discursos de atuação nos recentes anos! Nessa última camada do problema que levantamos, por certo, ela teria muito a nos dizer sobre a dificuldade de lidar com o mundo das leis no Brasil, dos operadores das leis e daqueles que hoje, na prática, atuam com imensas “falhas” de memória. Instituições que revertem sua história recente de engajamento no debate com a sociedade organizada sobre a obsolescência do Estatuto do Estrangeiro, e que ampliaram sua inserção em debates sobre os direitos humanos dos imigrantes, estariam retornando ao uso da recursividade jurídica para colocar em suspeição nossos direitos políticos sob a retórica da soberania nacional.
De toda forma, é um a luta que demonstra os tempos que estamos vivendo, e que tempos!
Sobre os autores
Félix Gonzalez
Professor Titular UFRGS.
Denise F. Jardim
Professora Associada UFRGS.