Retratos de um Brasil demolido

João Alberto Wohlfart
Professor de filosofia
Os poucos meses nos quais o Brasil caiu no golpe aplicado na Presidente Dilma Rousseff bastaram para quebrar o país de alto a baixo e transformar tudo em escombros. Assistimos a uma quebradeira geral em todas as dimensões que caracterizam a vida de uma nação, nos aspectos econômico, social, cultural, político e moral. É como um prédio demolido por uma bomba do qual não resta mais nada que escombros; é como uma bomba atômica que transforma uma cidade inteira em cinzas. No presente artigo vamos expor um mapa mais ou menos abrangente do tamanho do estrago já provocado pela ditadura do golpista Michel Temer.
Tudo o que estamos vendo não passa de uma grande farsa arquitetada por um grupo de golpistas, pelos meios de comunicação social, pelo judiciário, pelo supremo tribunal federal e pelos partidos de direita. A alegação para a destituição da Presidente Dilma Rousseff era a corrupção e cometimento de crime de responsabilidade, diante dos quais o governo golpista apareceu em nome da “moralidade”. A operação lava-jato desvendou uma série de crimes de corrupção na Petrobrás mostrados todos os dias pelos meios de comunicação, mas ela trouxe muito mais estragos que a alegada limpeza para livrar o país da corrupção. Ela não apenas puniu os responsáveis pela corrupção, mas destruiu a Petrobrás e todo o sistema produtivo do Petróleo. Os resultados desta operação estão na destruição de um imenso parque de Tecnologia, de Engenharia, de Indústria Nacional e de conhecimentos científicos, cujo resultado desta operação jurídico-midiática é a perda de uma significativa parte de nossas riquezas e milhões de empregos. É a destruição do sistema produtivo do Petróleo, da Tecnologia nacional, do sistema metalúrgico, da Soberania nacional, da indústria naval, dos sistema de saúde e educação etc.
Um dos resultados mais evidentes do golpe é a diminuição da atividade econômica. Com o foco exclusivo no pagamento da dívida pública e no fortalecimento do sistema financeiro, são retirados recursos da saúde, da educação e da infraestrutura. Como a base social não interessa para um governo neoliberal, aumenta a pobreza e a miséria, razão pela qual encolhe a atividade econômica com a falência de empresas. O governo golpista introduziu uma lógica autodestrutiva do sistema econômico exatamente porque retira os recursos básicos da base social, com a significativa diminuição do círculo de produção e consumo. Isto fica evidente com a retirada dos direitos  dos trabalhadores, com a diminuição dos investimentos em políticas sociais e a paradoxal concentração dos investimentos na especulação financeira. Esta lógica abstrata apenas enriquece uma pequena elite e empobrece massa social que fica excluída da máquina econômica na condição de produtores e consumidores. Neste círculo vicioso, o círculo econômico sustentado pelas bases sociais que produzem e consomem é dilacerado e a injustiça social grassa num país destruído pelo moralismo da burguesia.
O golpe produziu uma nova ditadura. O mais escandaloso deste espetáculo é a ruptura da Constituição Federal, do Estado de Direito e da Democracia. Conquistas históricas que custaram o sangue de tantos heróis do passado simplesmente foram jogadas na lata de lixo. O Povo Brasileiro, manipulado pelos meios de comunicação social e pelos interesses das elites dominantes, não tem mais nenhuma voz nos rumos do país. Os poderes constituídos para guardar a Constituição Federal e assegurar as condições para uma efetiva Democracia, são os primeiros arquitetos do golpe. O judiciário e o supremo tribunal federal perderam a credibilidade e a moralidade ao se transformarem num grupo fascista de extrema direta com a obra prima da criminalização dos movimentos sociais. Hoje, o povo mais pobre, os negros e as lideranças das esquerdas são objeto de criminalização, de cassetete e de prisões. O foco principal do judiciário é condenar e prender qualquer liderança de oposição ao governo golpista e às elites dominantes do país.
O sistema político não é muito diferente. O que vemos no Brasil com os desdobramentos do golpe e dos caprichos do governo neoliberal ilegítimo é também consequência da falência do sistema político. Em nosso país, a política deixou de ser o governo do povo para o povo para se constituir numa lógica dos interesses do grande empresariado e do poderio econômico. Grande parte dos ocupantes das cadeiras do legislativo, especialmente na esfera federal, são financiados por grupos econômicos para defender os seus interesses e legitimar a lógica do domínio econômico. São conhecidas as bancadas evangélica, do agronegócio, do sistema financeiro, dos meios de comunicação, do direito etc. Os políticos de Brasília e de outras esferas deixaram de ser os representantes dos interesses e aspirações do povo brasileiro para aparecer como representantes do poderio econômico dos principais setores do grande capital. Isto expressa uma ruptura profunda entre ética e política, entre política e o povo. A última expressão deste movimento foi a eleição de prefeitos que se declaram abertamente como não políticos, o que evidencia a extinção da política e o governo de um poderio econômico cego e alienante.
Num cenário demolidor de ditadura fica explícito o papel social exercido pelas religiões em geral. É fato que a religião oficial sempre esteve ao lado do colonialismo, do escravagismo, do imperialismo e do racismo, encobrindo com as bênçãos divinas uma ordem estabelecida e inferiorizando massas de minorias como incapazes de vivenciar as nobres virtudes cristãs, exatamente porque não possuem alma branca. No Brasil, as religiões perderam o foco da luta pela libertação do ser humano e a presença na base social em vistas à sua efetiva transformação histórica. Não há mais a presença efetiva das religiões nos movimentos sociais, na luta pela reforma agrária, na conscientização pela soberania popular, na luta pela reforma urbana etc. A religião produz homens e mulheres devotos, voltados diretamente para os céus, moralistas e condenadores das minorias e dos movimentos sociais. As religiões neopentecostais focam as suas ações na teologia da prosperidade, na bondade divina que concede prosperidade material aos crentes, sem passar pela transformação do modelo e do sistema econômico. Os católicos, por sua vez, focam a sua ação em dogmas de fé e ritos religiosos centralizados na figura do sacerdote, com extrema dificuldade de ligar fé e política, religião e transformação social. Em suma, as religiões contribuem muito mais na disseminação do conservadorismo e do autoritarismo, do que propriamente na transformação social e na formação da consciência crítica. Elas contribuem na formação de uma cegueira social que encobre os olhos diante da realidade e das injustiças sociais.
Todos estes fatores convergem para uma cegueira epistemológica profunda. As massas sociais simplesmente estão impossibilitadas de enxergar a realidade, porque a sociedade está encoberta por uma névoa ideológica que impede o conhecimento crítico das estruturas. A ação manipuladora dos meios de comunicação social imbeciliza e mediocriza as consciências condenadas a repetir acriticamente alguns jargões repetidos por estes meios, deixando o terreno livre para a consolidação dos interesses das elites. A opinião pública está uniformizada num conhecimento superficial e imediato, intensamente pressionada para expressar um ponto de vista manipulado, impossibilitando o surgimento da contradição e da formação de outra opinião. As grandes corporações da comunicação manipulam de tal maneira a informação e a opinião pública que esconde a realidade, a corrupção da direita política, a entrega do país às multinacionais, as grandes fortunas escondidas em paraísos fiscais, a exploração do povo até a morte etc. Nesta lógica de expropriação do povo, as vítimas não esboçam qualquer crítica, louvam o projeto golpista e interiorizam em sua “inteligência” dominada a ideologia do sistema opressor. Assim, a cegueira epistemológica aqui denunciada tem como consequência a exploração dos mais fracos até a corrosão dos ossos, sem que estes esbocem questionamentos ou reajam.
Uma das consequências mais graves do golpe é a deterioração do tecido social. As relações sociais estão rasgadas na estrutura macrossocial e microssocial, com divisões e fragmentações que se estendem por toda a sociedade. Os grupos sociais mostram-se fragmentados e sem força de ação capaz de integrar numa organização mais ampla as pessoas e os grupos sociais. O enfraquecimento e dispersão das esquerdas é o sinal mais evidente da fragmentação social. Neste contexto, o que corrói o tecido social a partir de sua estrutura interna é o profundo ódio social contra as minorias, especialmente os negros, os índios, os pobres, os nordestinos, as mulheres e os estudantes secundaristas. Há grupos empresariais especializados em fomentar no interior da sociedade o ódio contra estas classes minoritárias, rotulando-as de vagabundas e perturbadoras da ordem pública. Neste cenário de golpe e ditadura, a burguesia mostrou todos os seus dentes e exteriorizou toda a sua fúria com um discurso moralista de negação das classes historicamente excluídas. A divisão social também se mostra numa espécie de maniqueísmo social segundo o qual a burguesia se considera a si mesma como justa e perfeita, o que lhes dá o direito de condenar as massas sociais como injustas e destinatárias dos impostos que a burguesia paga.
No contexto internacional, o Brasil perdeu a condição de ator internacional que conquistou nos últimos 10 anos. Na nova configuração das relações internacionais em sistemas de horizontalidade e solidariedade intercontinental, nas relações com a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul, o MERCOSUL, o México, enfraquece-se este sistema de relações políticas internacionais por uma nova onda de submissão à velha lógica norte/sul, que rende ao Brasil a condição de colônia do norte e das grandes corporações internacionais. As imensas riquezas naturais, como o Pré-Sal, o Aquífero Guarani, os rios, a Amazônia, as terras agrícolas estão sendo entregues de presente para o capital internacional e para a fúria consumista dos leões do primeiro mundo. Os nossos ecossistemas que compõem o complexo sistema de vida e de natureza do Brasil são desintegrados pela forma capitalista de produção e consumo, transformados em matéria informe e objetos de exploração. Do ponto de vista filosófico, de forma brutal, os ecossistemas naturais voltam a ser vistos como matéria prima indeterminada cuja única função é exploração para o norte do Planeta.
E como todos estes fatores não bastassem, vem aí o projeto escola sem partido. A própria palavra já vem com uma contradição fundamental porque se trata do partido único das classes dominantes. Ao entrar em vigor em nossas escolas, ela deixa de ser um lugar de reflexão, de formação do pensamento crítico, de discussão dos problemas sociais, e nada mais fará que reproduzir a ideologia dominante e preparar a mão-de-obra barata para o sistema produtivo. Como já somos uma massa informe manipulada pelos meios de comunicação social, com a escola sem partido a tendência é o desaparecimento do pensamento e da consciência crítica. O meio mais eficaz de sustentação de um projeto golpista é anular por todos os meios a formação da consciência crítica, especialmente através da neutralização do conhecimento e da criminalização dos movimentos sociais. Qualquer manifestação contrária à concepção de mundo diferente da dominante tende a ser reprimida por meio da força policial do cassetete, da mídia monopolizada e uniformizada e da repressão judicial.
Em suma, o Brasil está estraçalhado e em ruínas. É como se tivesse sido destruído por uma guerra, por uma grande catástrofe natural ou explodido por uma bomba atômica. Em pouco tempo de governo golpista e usurpador, a estrutura da nação sucumbiu e tudo ficou reduzido a escombros e pedaços. A economia e o emprego estão encolhendo a cada dia, em consequência da depredação do patrimônio público e do conteúdo nacional. Os poderes constituídos se tornaram corrompidos sem nenhuma legitimidade e referência de representação. Na radical cisão entre a política e o povo, não há mais legitimação e representatividade política. O sistema político está diluído em mais de trinta partidos sem ideias e sem projeto de país. Do ponto de vista social, o tecido social foi quebrado e cindido entre a burguesia dominante e a massa social informe e objeto de manipulação, de criminalização, de preconceitos e de imbecilização pelos meios de comunicação social. Diante deste quadro, não há consciência coletiva capaz de enfrentar criticamente um projeto que destruiu o país, mas tudo fica encoberto por um discurso superficial antipetista. O povão de Deus e as classes historicamente oprimidas perderam a sua própria consciência social, a sua subjetividade coletiva e interiorizaram a ideologia da classe dominante reproduzida como verdade absoluta e incondicional.

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