Sobre hegemonia e a derrota ideológica da ex-esquerda no Brasil

Bruno Lima Rocha – Professor de ciência política e de relações internacionais
Introdução
Ainda estamos de ressaca com o golpe branco recebido pela centro-esquerda. Reforço a dimensão da ressaca, pois além da mudança de regime à fórceps, insisto que o partido de governo (PT) abandonou – ao menos parcialmente – o parâmetro de comportamento e pretensão de operadores políticos que não eram reprodutores das piores práticas oligárquicas no Brasil. Centro-esquerda é a caracterização apropriada também porque ao abandonar o conflito social como forma primeira de obter conquistas coletivas, a coalizão do lulismo – com o PT à frente – fez tudo o que afirmou que jamais faria quando se constituiu como ampla força reformista parcialmente radicalizada no final dos anos ’70. Seguindo esta lógica, a crítica dos antigos partidos stalinistas seria correta em 1980. Se fosse para reproduzir o comportamento politico como se portara trinta anos depois, não haveria nem razão à época para fundar o PT. Bastaria para os veteranos militantes se juntarem ao MDB (como o faziam de forma clandestina, mas tolerada, o antigo PCB e o PC do B) e aos então ainda autênticos sindicalistas, compor a frente entre stalinistas e pelegos, respaldando o sistema federativo com Joaquinzão, Magri, Medeiros e outros pelegos históricos.
O inverso se dera no período da Abertura política (justificando a escolha pela fundação do PT) e após o golpe parlamentar (afirmando as razões para as críticas aqui contidas), caminhando a liderança histórica para a tenebrosa pinguela da saga orwelliana: “quatro patas ruim duas patas bom”. Nada disso é novidade e este caminho que hoje parece inexorável, começou a ser traçado em 2003, aprofundou em 2005 e mergulhou de cabeça na aliança política traçada pela direção petista ao final de 2010. Acreditavam os dirigentes históricos que bastaria se comportar como os “aliados” oligárquicos e fortalecer os laços políticos e empresariais, acomodando forças e distribuindo cargos e prebendas, a exemplo da quase totalidade dos gestores do Estado brasileiro. Deu tudo errado e ao contrário. Levanto aqui uma hipótese para esta tragédia. Começo pela equivocada e superficial concepção de “hegemonia”. Talvez este seja o conceito mais polissêmico e tautológico de toda a tradição contemporânea da esquerda. Quase todas as forças e formuladores o evocam, quase ninguém o pratica com profundidade.
Engana-se quem imagina o debate sobre hegemonia restrito a ocupação de postos-chave por aliados ou correligionários. Como as instituições são muito mais fortes do que a conduta da maioria dos indivíduos, logo, um debate de hegemonia de longo prazo teria de, necessariamente, visar democratizar os órgãos de Estado (em três níveis de governo e distintos regimes jurídicos) que atendam função pública. E, simultaneamente, quebrar a espinha dorsal das instituições de Estado que operam o entulho autoritário ou são garantidoras de ordem e privilégio (como as forças policiais ou mesmo órgãos “independentes”).
Ao invés disso, a centro-esquerda entra com as duas patas no Poder Executivo e reproduz as piores práticas oligárquicas de sempre. Logo, a distribuição de certa melhoria material não veio acompanhada de elementos ideológicos de contestação, mas sim de reforço dos valores vigentes. Eis uma hipótese para a brecha que corroeu o apoio da ex-presidenta e, diante do desafio estratégico, seu partido opta em 2013 a seguir na aliança oligárquica ao invés de romper primeiro, apostando na reforma política com elementos de democracia direta.
O desmonte do Estado Social de Direito e a incapacidade de reação imediata
A brecha aumentou até entrar em metástase da nova direita (daí o viralatismo em sua versão coxinha e cibernético) e corroer a legitimidade do segundo governo Dilma Rousseff. Da corrosão ao cerco sobre o governo reeleito e a consumação do golpe institucional foram passos lentos e seguros, dados pelos conspiradores, e com o aval e supervisão do Departamento de Estado do Império.
A corrosão sobre e da centro-esquerda conseguiu colocar em prática no Brasil o discurso da necessidade do austericídio e a contenção de gastos públicos. Esta agenda macabra está em andamento com a aprovação da PEC 241 em primeiro turno na segunda dia 10 de outubro e por maioria absoluta de 366 votos de deputados “convencidos” pelo governo Temer e 111 contrários, totalizando votos de centro-esquerda e do reformismo (legitimo) do PSOL. Esta votação é uma parte do rolo compressor por vir e, o momento do país é realmente grave. A urgência é tamanha que não cabe em um debate trivial e ultrapassa a dimensão tática das agrupações e as forças políticas na agenda eleitoral da subdemocracia, além do dia a dia da disputa de entidades esvaziadas ou conflito por migalhas de poder entre correntes político-sindicais ou estudantis. O problema é estrutural e é preciso compreender a etapa.
Estamos em um momento de desmonte do Estado Social de Direito, o que efetivamente implica em retirar direitos através de um já conhecido pacote de leis regressivas. A dimensão substantiva do golpe é visível, e mesmo quando corretamente é lembrado o fato de que a agenda regressiva já estava em andamento no segundo governo de Dilma Rousseff, a celeridade do andamento das pautas e o descaramento dessa montagem de maioria dá a entender que o governo golpista vai aprovar tudo o que quiser ou puder. Logo, reforçar a etapa de resistência, para que os direitos não regridam e seja possível garantir os direitos sociais conquistados a partir de 1988, ou antes com a regulação do mundo do trabalho, é algo consensual.
Mas, a etapa de resistência também implica em construir outro projeto popular, ultrapassando o pacto de classes e a ilusão de ocupar parcelas do Poder Executivo do Estado Burguês e Pós-Colonial sem ter condições de organizar um contragolpe ou avançar além da coalizão espúria com as oligarquias nefastas. Se não adentrarmos neste debate, fazendo uma profunda crítica e exigindo a correspondente autocrítica de quem ainda tem perfil e compromisso militante mas mantém os vínculos com o modelo anterior, simplesmente a possibilidade de gerar uma falsa hegemonia de centro-esquerda conciliatória é muito grande.
Etapa de Resistência e Crítica por Esquerda ao Lulismo: dois passos fundamentais e concomitantes para reconstruir uma dinâmica social de luta popular e protagonismo de quem mais precisa e está lutando para sobreviver.
Resistência contra o golpe e crítica por esquerda ao lulismo
Para realizar a segunda parte do que foi aqui predicado, é necessário realmente aprofundar no debate e superar a superficialidade de uma política marcada pelo senso comum. Uma visão equivocada de hegemonia e guerra de posições é quando uma força política de centro-esquerda – ou seja, um partido que abdica de priorizar a luta e o antagonismo de classe – se contenta em ser coadministradora do Estado Capitalista ao invés de criar anteparos para que os estamentos tecnocráticos consigam impor suas vontades. Ao confundir a indicação para postos-chave com a redefinição do aparelho de Estado pós-colonial, a centro-esquerda se torna ainda mais estatista, e como tal confunde – ou esquece – o interesse da maioria com a simples defesa do Estado pós-colonial tal como ele é ou está.
O Estado Latino-Americano, como um todo, é tanto pós-Colonial (portanto, racista e anti-ecológico) como Burguês (operando como defesa última do status quo). Entre o nacionalismo popular e a defesa de interesses de classe dominante, as elites dirigentes do Estado majoritariamente optam pela segunda, em detrimento da projeção de poder deste país, mesmo que tenha de cortar na própria carne, como na Operação Lava Jato a partir da Operação Pontes, bem debaixo do nariz da ABIN e dos sistemas de inteligência das Forças Armadas.
As escolhas do lulismo sempre foram no sentido da acomodação de forças e coalizão de classes, confundindo a guerra de posição com a disputa pela ocupação de postos-chave e as grandes linhas de política econômica, como na Nova Matriz de Guido Mantega. Ao fazer uma inflexão maior do modelo, durante o primeiro mandato de Dilma, o lulismo esticou a corda ao máximo, sem contar com um plano B, e abrindo da rebeldia popular de 2013, ao criminalizar esta luta e se posicionar ao lado de indefensáveis e indecentes aliados circunstanciais oligárquicos, tendo como pior exemplo o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral Filho (PMDB, mas ele próprio tendo cinco mandatos legislativos pelo PSDB do Rio). No Rio Grande do Sul, o ex-governador Tarso Genro viveu seu pesadelo Spartaquista, quando optou pela repressão política contra a esquerda a contrapor interesses da oligarquia local, com a RBS à frente.
2013 foi o ano da virada; ao não acompanhar a inflexão à esquerda da rebelião popular por mais direitos, o primeiro governo Dilma corroeu sua própria legitimidade, enterrada definitivamente nos primeiros meses do segundo mandato. Com a corda esticada e a Lava Jato em pleno andamento, a hegemonia superficial do PT e do lulismo só se verifica sobre a esquerda restante (incluindo a Frente Brasil sem Medo, o PSOL, a Coordenação Anarquista, as forças de orientação maoístas), isolando a luta social da luta ideológica. A hegemonia superficial mostrou-se falsa e a guerra de posições com maioria de mercenários provou-se frágil quando o modelo econômico comodificado começa a ruir.
Conclusão: um movimento em dois tempos
A meta substantiva do golpe já dado, agora está em marcha acelerada, embora sua versão embrionária já existia no fatídico e trágico ano de 2015, com Eduardo Cunha manobrando à vontade na Câmara dos Deputados. Agora a etapa exige resistência, mas reforçando a necessidade de fazer a crítica da superação ao lulismo e a falsa ideia de hegemonia superficial.
(blimarocha@gmail.com para E-mail e Facebook)

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