História na Argentina, vergonha no Brasil

Selo 400x400Luiz Cláudio Cunha

Em silêncio, semblante cerrado, mãos cruzadas, com cabelos grisalhos disfarçando seus 75 anos e um grosso sobretudo marrom para proteger do frio portenho de 13 graus, cercado de cadeiras vazias, Miguel Ángel Furci parecia ainda mais só e desamparado na pequena sala do Tribunal Oral Federal 1, no final da tarde de quinta-feira 26, em Buenos Aires.

Furci continuou impassível, mesmo quando ouviu o juiz que lia a sentença, Oscar Ricardo Amirante, pronunciar seu nome e sua pena: 25 anos de prisão como autor de 67 prisões ilegais e 62 denúncias de tortura, na condição de agente civil da SIDE, a Secretaria de Inteligência do Estado, o órgão da ditadura argentina (1976-1983) que controlava a repressão. Foi a maior condenação do dia, que os outros 17 réus, todos presos, ausentes do tribunal, preferiram não ouvir.

Mas, milhares viram e ouviram pela TV e pela Internet a sentença histórica da Argentina, o único país das Américas que reconheceu e julgou a Operação Condor, condenando pela primeira vez os militares e agentes de uma organização de terror de Estado sem precedentes no mundo. Um juízo que, por tabela, escancara as culpas e o cinismo do Brasil. Na década de 1970, as ditaduras de seis países do Cone Sul — Chile, Argentina, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Brasil — se juntaram clandestinamente para perseguir, torturar, matar e desaparecer os que se opunham aos regimes militares.

Ninguém investigou esse crime transnacional com a obstinação e a agudeza da Justiça argentina. A Causa Condor, que chegou ao seu final naquela quinta-feira, apurou durante três anos os crimes praticados na região contra 109 pessoas — apenas 14 delas argentinas. As outras 91 eram do Uruguai, Chile, Paraguai e Bolívia. Nenhum brasileiro entre eles. Foram ouvidas 222 testemunhas, 133 delas do exterior — apenas uma era brasileira. Só na Argentina, existem 457 casos de vítimas da Condor na Justiça. No Brasil, nenhum.

Mais de 600 militares argentinos já foram processados, condenados e agora cumprem pena pelos crimes da ditadura. No Brasil, apesar dos 21 anos de arbítrio, nenhum militar foi para a cadeia. Os cinco presidentes militares acantonados no Palácio do Planalto a partir de 1964 — Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo — morreram impunes, embora todos tenham sido responsabilizados pelos crimes da ditadura no contundente relatório final de 2014 da Comissão Nacional da Verdade, indiciados como comandantes supremos dos 377 agentes do Estado apontados como autores de crimes de lesa-humanidade na ditadura brasileira.

Generais na cadeia

Ao contrário, na Argentina, os presidentes militares sentaram nos bancos dos réus. Jorge Rafael Videla, o general mais emblemático da ditadura, que liderou o golpe de 1976, morreu na cadeia em maio de 2013, aos 87 anos, onde cumpria duas penas de prisão perpétua, além de outra de 50 anos de detenção pelo desaparecimento de bebês de presas políticas. Morreu do coração numa sexta-feira, três dias após recusar-se a depor na Causa Condor. Em 2011, na cadeia, falou durante 20 horas ao jornalista Ceferino Reato, que publicou no ano seguinte seu relato estarrecedor no livro Disposión Final, uma sutil referência à genocida ‘solução final’ do III Reich hitlerista. Ali, o velho general admitiu o tamanho do seu assassinato em massa: “Digamos que eram umas sete ou oito mil as pessoas que deveriam morrer para ganhar a guerra contra a subversão”. Videla foi modesto. A Comissão Sábato que investigou a ditadura contabilizou cerca de 10 mil mortos, os familiares dos presos e desaparecidos insistem em contar 30 mil vítimas fatais.

Assim como o primeiro, o último presidente argentino da ditadura também está preso — mas ainda vivo. O general de exército Reynaldo Bignone, 88 anos, que caiu com o regime em 1983, não teve a coragem do agente Furci e não quis ouvir pessoalmente na quinta-feira sua condenação a 20 anos de prisão. Não fará muita diferença no pouco que lhe resta de vida: Bignone já tinha sido condenado a outros 25 anos de prisão, em 2010, por 56 casos de prisão ilegal, sequestro, roubo e torturas no complexo militar de Campo de Mayo, o maior quartel do país. Em 12 de março de 2013, o general ganhou sua segunda pena de prisão perpétua. No dia seguinte, a mulher, Nilda, companheira de 60 anos, morreu fulminada por um ataque cardíaco.

O coração inconfiável dos torturadores e o tempo implacável do processo reduziram a bancada dos réus. Quando o juízo iniciou, três anos atrás, os acusados eram 31. Restaram ainda vivos os 18 réus condenados na semana passada. O mais idoso é o general de divisão Santiago Omar Riveros, com 92 anos, que recebeu a pena mais alta, como Furci: 25 anos de prisão. Já tinha duas penas perpétuas: uma na Argentina e outra na Itália, pelo desaparecimento de três cidadãos italianos em Buenos Aires. Riveros foi o primeiro general a reconhecer suas vítimas da ditadura: “Não houve desaparecidos, apenas terroristas aniquilados no marco de uma guerra revolucionária e, por tanto, irregular”.

Riveros: o general em 1977... ... o condenado em 2016... ... e o hospital de El Campito: bebês roubados
Riveros: o general em 1977, o condenado em 2016 (ao centro) e o hospital de El Campito: bebês roubados | Fotos: Página12, Página12, Arquivo Memória Abierta

Seu pior crime foi o comando de El Campito, o maior CCD (centro clandestino de detenção) entre os 380 campos montados no país pela repressão, instalado dentro do principal quartel argentino, o de Campo de Mayo, em Buenos Aires.

Ali passaram 5 mil presos, apenas 43 sobreviveram ao inferno de Riveros.

O leite que vaza

Ao hospital militar de El Campito eram levadas as presas grávidas, onde eram alojadas no prédio do Serviço de Epidemiologia, sempre vigiadas por homens armados. Apesar da gravidez, as mulheres eram mantidas com algemas e capuz na cabeça. Os partos, realizados por profissionais civis e militares no serviço de Ginecologia e Obstetrícia, eram na sua maioria induzidos por cesarianas. Os nascidos eram logo separados e muitas mães sequer sabiam o sexo de seus filhos. Os bebês permaneciam na área de Neonatologia até serem ‘presenteados’ às famílias dos repressores e as mães, de volta à Epidemiologia, recebiam uma medicação para evitar a produção de leite, já que não podiam amamentar seus filhos. As mulheres entravam no hospital como NN (no nombradas), onde eram atendidas por enfermeiras e monjas, e não deixavam registros, até retornar à prisão original, onde desapareciam para sempre. Um livro de nascimentos encontrado nos arquivos do hospital indica que, entre 1976 e 1978, no auge da ‘guerra suja’ na Argentina, só em El Campito foram registrados 1.274 partos — 352 deles sem qualquer histórico clínico.

Com a contribuição da fábrica infernal de bebês roubados do general Riveros, a Argentina registra ainda hoje cerca de 500 bebês apropriados pela repressão. Deles, até agora, apenas 199 foram identificados, recuperados e encaminhados aos avós sobreviventes.

Um dos casos mais simbólicos desse drama humano é o do jovem uruguaio Simón António Riquelo, desaparecido com a mãe, Sara Méndez, na noite de 13 de julho de 1976, em Buenos Aires, onde a professora vivia exilada. Pelo padrão paranoico da repressão, o jovem era um perigoso comunista, apesar de seus tenros 22 dias de vida: Simón era um bebê, e foi arrebatado do peito da mãe pelo major de artilharia uruguaio José Nino Gavazzo, chefe de operações do SID, o temido Serviço de Informações de Defesa da ditadura de Montevidéu.

— La guerra no es contra niños ! — avisou o major a Sara, quando arrancou o bebê de seus braços. Gavazzo levou Sara para uma antiga oficina mecânica no bairro portenho de Floresta, onde o SIDE do agente Furci, agora condenado, montou um centro binacional e clandestino de tortura que virou sinônimo da Condor: a Automotores Orletti.

Ali passaram mais de 300 presos, metade deles uruguaios. Poucos, como Sara, sobreviveram. Apartada do filho, Sara, encapuzada e algemada pelas costas, foi suspensa por um gancho como um pedaço de carne no açougue. Levou choques elétricos, que ganhavam intensidade quando ela conseguia tocar o chão molhado com a ponta dos pés. Em dado momento, um dos torturadores perguntou a Gavazzo porque o chão estava esbranquiçado.

Es leche! — foi a resposta. Leite que vazava do seio de Sara, leite negado a Simón, expropriado por Gavazzo, usurpado pela Orletti, sequestrado pela Condor.

Dez dias depois, Sara foi transferida clandestinamente a Montevidéu, junto com outros 23 uruguaios presos na capital argentina. O bebê desapareceu, embora aquela guerra não fosse contra ele. A forçada mãe adotiva de Simón era prima-irmã da mulher de um coronel uruguaio, António Buratti, envolvido em sequestros e ex-chefe de Gavazzo. Sara perdeu o leite, mas não a esperança. Sobreviveu a cinco anos de prisão e, em liberdade, procurou o filho roubado durante quase três décadas, até que o reencontrou em Buenos Aires em 2002.

Sara já não vertia leite. Apenas lágrimas. De alegria.

 

Simón: roubado em 1976... ...com a mãe e o filho Juanito em 2007... ...e Rodríguez, o repórter
Simón: roubado em 1976, com a mãe e o filho Juanito em 2007 (ao centro) e Rodríguez, o repórter | Fotos: La Diaria

No rastro da Condor

O Simón de 26 anos foi localizado graças à investigação de um jornalista e de um senador, ambos uruguaios.

O jornalista Roger Rodríguez, 56 anos, é o mais temido e destemido repórter do Uruguai, reconhecido e premiado internacionalmente pelo jornalismo contundente que faz sobre as ditaduras e crimes contra os direitos humanos no seu país e no Cone Sul. Detentor, entre outros, do prêmio Vladimir Herzog de 1984, concedido pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, e do prêmio Liberdade de Expressão Iberoamericana da Casa América Catalunha, de Barcelona, em 2011, Rodríguez é uma figura singular do país: foi o último preso da longa ditadura (1973-1985) e o primeiro anistiado da democracia. No crepúsculo do regime dos generais, foi processado pela Justiça Militar por denunciar maus tratos às presas políticas da penitenciária de Punta de Ríeles e, condenado, passou 20 dias encarcerado pela ditadura moribunda, até ser anistiado pela democracia nascente.

As mais notáveis reportagens sobre o regime militar no Uruguai levam a assinatura de Rodríguez, que em 2001 descobriu o Segundo Vuelo, o translado clandestino em aviões da Força Aérea de uruguaios presos e torturados pela Condor em Buenos Aires e desaparecidos em Montevidéu. Seu faro de sabujo e a obstinação de repórter puro-sangue permitiram que ele localizasse em 2002, na capital argentina, o jovem Simón Riquelo, devolvido 26 anos depois ao peito da mãe, Sara. Com a sabedoria que deve ser útil a todo repórter e essencial para os inertes juízes brasileiros, Rodrígues ensina: “Cuando se sabe la verdad, se exige la justicia. La verdad es, la historia puede ser“.

O senador que localizou Simón, Rafael Michelini, era igualmente uma vitima da Condor. Dois meses antes do sequestro de Sara e seu bebê, o também senador Zelmar Michelini, pai de Rafael e fundador da coalizão de esquerda Frente Ampla, foi sequestrado em maio de 1976 em Buenos Aires junto com Héctor Gutiérrez Ruiz, ex-presidente da Câmara dos Deputados, ambos refugiados na capital argentina e odiados opositores da ditadura uruguaia. Foram os presos que inauguraram a crônica de horrores da Orletti. Os corpos dos dois foram encontrados três dias mais tarde, com marcas de tortura e tiros na cabeça, no porta-malas de uma camionete, sob um viaduto a dez quilômetros da Casa Rosada, o palácio presidencial ocupado então pela junta do general Videla, que dois meses antes derrubara Isabelita Perón.

Margarita e Rafael no Parque da Memória... ...e o pai, senador Zelmar Michelini: sequestrado e morto pela Condor
Margarita e Rafael no Parque da Memória e o pai (à direta), senador Zelmar Michelini: sequestrado e morto pela Condor | Fotos: Redacción Rosario, Arquivo Frente Amplio

O poeta e a neta

Havia um único estrangeiro entre os 18 condenados da Condor na semana passada. Era o coronel uruguaio Manuel Cordero Piacentini, 78 anos. Integrava a equipe de Gavazzo na central de torturas da Orletti e participou das operações de sequestro e translado ilegais de uruguaios presos em Buenos Aires e levados para Montevidéu. Recebeu a maior pena, 25 anos de prisão, como o agente Furci e o general Riveros.

Cordero foi extraditado do Brasil para a Argentina em 2010, após uma longa batalha judicial no Supremo Tribunal Federal, em Brasília, enredado nas manhas da Lei da Anistia de 1979 que estende a impunidade aos torturadores. O relator do caso, ministro Marco Aurélio, bradava que ninguém podia ficar desaparecido por tanto tempo e, assim, os crimes imputados ao coronel estariam prescritos. O reaparecimento de Simón Riquelo desmontou a tese do ministro. O ministro César Peluzo pediu vistas, reconheceu a tese do desaparecimento forçado, o que justificava o crime continuado, e a extradição acabou concedida por 6 votos a 2 em agosto de 2009. Assim, liberando Cordero para julgamento por crimes de lesa-humanidade na Condor, o STF adotou um juízo curioso, que vale para a Argentina, mas não vale para o Brasil.

Cordero não estava no tribunal para ouvir sua sentença, por isso não cruzou com uma de suas vítimas, Macarena Gelman, 39 anos, que estava lá como testemunha do caso. A mãe, Maria Cláudia, e o pai, Marcelo, filho do renomado poeta argentino Juan Gelman (1930-2014), foram presos pela Condor e torturados na Orletti de Cordero. O casal foi transferido para Montevidéu e Maria Cláudia, grávida, deu à luz uma menina ainda na prisão clandestina, em 1977. Os pais, mortos pela tortura, desapareceram na cova anônima de um quartel uruguaio e o bebê foi criado por repressores. Com o sonho indomável de poeta, Juan Gelman buscou sem cessar sua neta e acabou encontrando Macarena só em 2000, quando ela tinha já 23 anos, antecipando assim em dois anos o feliz reencontro de Sara e Simón.

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Macarena e Gelman: a poesia do encontro da neta com o avô e o coronel Cordero (à dir.): encontro com a justiça | Fotos: AFP, Página12

Um herói brasileiro

Cordero, o torturador uruguaio que levou à morte os pais de Macarena, só estava sentado no banco dos réus graças à determinação de um brasileiro. Procurado pela justiça uruguaia por crimes na ditadura, o coronel fugiu do país em julho de 2004. Passou por São Paulo, onde se submeteu a uma cirurgia, e desapareceu. Parecia esquecido por todos, menos por seu implacável perseguidor: o ativista brasileiro Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH). Ainda forte e rijo aos 77 anos, dono de uma ondulada cabeleira branca imponente como sua voz grave, esse gaúcho de Porto Alegre tornou-se o mais respeitado especialista em Condor do país, graças à sua incansável militância de mais de 40 anos.

Krischke é um improvável herói brasileiro, mais conhecido e reconhecido fora do que dentro do Brasil por abraçar uma causa que o País ainda trata com desleixo e desdém: os direitos humanos e os crimes de lesa-humanidade das ditaduras no Cone Sul, temas que o tornam presença indispensável em seminários e encontros de especialistas em Buenos Aires, Santiago, Montevidéu, e outras capitais angustiadas pelo drama da Operação Condor. Sua ONG, instalada numa sala apertada do nono andar de um edifício na avenida Borges de Medeiros, no coração da capital gaúcha, sobrevive com a contribuição mensal de seus poucos militantes. Pelo estatuto, o MJDH não pode receber verbas públicas. “Somos pobres, mas limpinhos”, brinca Krischke. Apesar disso, tem o mais relevante arquivo sobre a Condor no Brasil, aberto permanentemente a jornalistas e pesquisadores, em sua maioria do exterior.

A autoridade moral de Krischke não depende dos documentos secretos que armazena, mas da história de coragem e luta que o caracteriza. Nos anos mais duros da repressão nos anos 1970, refugiados de países vizinhos só tinham nele a mão amiga para sobreviver. Fugiam de seus algozes no Uruguai, Argentina, Chile ou Paraguai para buscar a liberdade na Europa. A escala obrigatória era Porto Alegre. Krischke fazia os contatos, arranjos burocráticos e translados para o Rio de Janeiro, muitos escoltados pessoalmente por ele para o escritório carioca do ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) que providenciava o salvo-conduto para quem recebia asilo de nações europeias. Cerca de 2.000 pessoas escaparam da morte e ganharam a liberdade graças às mãos solidárias de Krischke.

Em certo sentido, ele é uma inusitada mescla brasileira de Schindler, o salvador, e Wiesenthal, o caçador.

Jair Krischke, um herói brasileiro: salvando, como Schindler... ...caçando, como Wiesenthal
Jair Krischke, um herói brasileiro: salvando como Schindler, caçando como Wiesenthal |Fotos: Antônio Augusto, Ag. Câmara, Arquivo Centro Wiesenthal

O industrial alemão Oskar Schindler (1908-1974) foi espião da Abwehr, o serviço secreto do Exército de Hitler, e membro do Partido Nazista. Essas conexões permitiram que ele livrasse 1.200 judeus das câmaras de gás ao empregá-los em suas fábricas de esmalte e munição na Polônia e República Checa. A artimanha salvadora transformou-se em uma história de dignidade em meio ao horror da II Guerra Mundial popularizada no filme A lista de Schindler, de Steven Spielberg. Ganhou de Israel o título de ‘Justo entre as Nações’, concedido a gentios que arriscaram suas vidas para salvar judeus do Holocausto. É o único membro do Partido Nazista honrado com uma sepultura em Jerusalém, capital israelense.

O arquiteto austríaco Simon Wiesenthal (1908-2005), embora nascido no mesmo ano de Schindler, estava do outro lado. Passou por cinco campos de concentração, onde morreram 89 pessoas de sua família, e tentou o suicídio cortando os pulsos para escapar do trabalho escravo. Era um dos 85 mil sobreviventes judeus do campo de Mauthausen, na Áustria, onde os nazistas mataram 300 mil pessoas por exaustão. Dali, o último campo liberado pelos Aliados, em maio de 1945, Wiesenthal saiu aos 37 anos pesando apenas 41 kg para emergir no pós-guerra como o mais importante caçador de nazistas do mundo. Recolheu seu caderno de anotações, com os nomes de oficiais e soldados que conheceu no cativeiro, e auxiliou o Exército dos Estados Unidos a montar os processos do juízo nazista em Nuremberg. Mais de 1.100 criminosos foram identificados, localizados e presos com a ajuda de suas informações — incluindo Adolf Eichmann, o executor-chefe do III Reich, e Franz Stangl, comandante do campo de concentração de Treblinka, preso no Brasil em 1967.

A burocracia denuncia

O lado caçador de Krischke, ao melhor estilo Wiesenthal, aflorou na perseguição implacável e solitária que fez ao coronel uruguaio da Condor. Fugitivo da justiça de Montevidéu, Cordero havia se escondido em Santana do Livramento, cidade gaúcha na fronteira, separada da uruguaia Rivera por uma única avenida. Com faro de repórter e rigor espartano, Krischke procurou descobrir a fonte de renda que sustentava o coronel na clandestinidade brasileira. Soube que, para receber regularmente sua aposentadoria como militar retirado, Cordero precisava firmar mensalmente um documento chamado ‘certificado de vida’. Com este fio de meada, o Wiesenthal gaúcho chegou no início de 2005 ao endereço de uma casa discreta no número 1.007 da rua Uruguai, na cidade de Livramento, o esconderijo de Cordero no Brasil. Horas depois, em Porto Alegre, Krischke repassou oficialmente a informação ao cônsul da Argentina, onde o juiz Guillermo Montenegro comandava uma caçada internacional ao coronel denunciado na Causa Condor.

Escorregadio, Cordero desapareceu outra vez e sumiu por dois anos. Até que reapareceu, distraído, no consulado uruguaio de Livramento, às 12h40 de uma quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007. Estava lá para firmar o ‘certificado de vida’ que daria à filha, em Montevidéu, o direito de receber sua aposentadoria. Duas horas depois, Krischke recebeu essa informação crucial da própria vice-chanceler do Uruguai, Belela Herrera, que telefonava da capital uruguaia pedindo sua ajuda. Na manhã seguinte, sexta, Krischke acionou a Interpol em Brasília. À tarde, instruído por ele, o cônsul em Livramento despistou o advogado de Cordero, que cobrava o certificado, adiando mais algumas horas a entrega do documento. Na tarde de segunda-feira, 26, desavisado, o coronel foi à delegacia fronteiriça da Polícia Federal para supostamente assinar o seu pedido formal de refúgio no Brasil, quando recebeu voz de prisão, informado ali que o STF tinha aprovado, três dias antes, sua extradição para a Argentina. O dia terminava, às 20h30, quando a vice-chanceler Belela ligou emocionada, de Montevidéu, para agradecer ao Wiesenthal brasileiro. Após muitos recursos junto ao STF, Cordero foi afinal extraditado para a Argentina, em janeiro de 2010, até acabar na inédita bancada de réus de Buenos Aires.

O vexame verde-amarelo

A gang de carrascos nazistas da Condor só caiu nas garras da justiça graças a um portentoso esforço de investigação, multinacional como a organização terrorista que estava julgando. Do Paraguai, vieram 4 milhões de fotogramas do ‘Arquivo do Terror’ descoberto após a queda da ditadura de Stroessner. Dos Estados Unidos, vieram milhares de registros desclassificados do Departamento de Estado, mostrando o papel da CIA e do FBI na sustentação das ditaduras de Pinochet e Videla. Do Chile, chegaram os informes da Vicaria de Solidariedade de Santiago. Do Brasil, vieram papéis da Comissão da Verdade. Da própria Argentina, brotaram 90 dossiês das Forças Armadas e 72 relatórios de órgãos de segurança interna da ditadura dos generais.

O papel dos Estados Unidos na sustentação e apoio às ditaduras da região ficou comprovado pela remessa de Washington à Causa Condor de 48 mil documentos sobre a repressão no Chile (1973-1990) e sobre a ‘guerra suja’ na Argentina (1976-1983). É uma humilhante comparação com os parcos arquivos cedidos pelo Governo americano ao brasileiro. O Itamaraty repassou à Comissão da Verdade míseros 68 documentos do Departamento de Estado, produzidos no período entre 1967 e 1977, que abrange apenas três dos cinco generais da ditadura (Costa e Silva, Médici e Geisel). Considerando que a ditadura brasileira durou três vezes mais (21 anos contra sete), o Brasil recebeu um arquivo quase 60 vezes menor do que a Argentina. A comparação é ainda mais deprimente com o Chile, uma ditadura de 17 anos, mais breve que a brasileira, que recebeu 44 mil documentos de Washington, uma quantidade 650 vezes maior do que remetida a Brasília. Essa relação desproporcional ficará ainda mais vergonhosa, para o Brasil, após a solene declaração de Barack Obama, três meses atrás, de que vai liberar a Buenos Aires mais documentos desclassificados dos arquivos militares e de inteligência, como parte da “responsabilidade moral” que os Estados Unidos têm para com a Argentina.

Obama fez a promessa em Buenos Aires, diante do presidente, Maurício Macri, com quem se encontrou em 23 de março passado, véspera dos 40 anos do golpe de 1976 do general Videla. A coincidência da data enfureceu as entidades ligadas às famílias das vítimas, mas a visita de Obama ao Parque de La Memória teve um forte significado de reparação histórica. Ali, o presidente americano reconheceu as “verdades incômodas” e a “dívida com o passado” pelo apoio dos Estados Unidos à ditadura na década de 1970.

A pressa assassina

Diante das quatro paredes de concreto com os nomes, por ordem alfabética, de 10.700 homens, mulheres e bebês mortos ou desaparecidos pelo terror de Estado, Obama declarou-se emocionado por estar no parque: “Este é um tributo à memória, mas também uma homenagem à valentia e à perseverança dos que recordam e se recusam a abandonar seus esforços na busca da verdade e da justiça. Que se cumpra a promessa de Nunca Más“, disse ele, fazendo uma menção às Avós da Plaza de Mayo, que se fizeram ostensivamente ausentes do ato, como forma de protesto. Obama teve o cuidado de não mencionar a Operação Condor.

Kissinger dá luz verde a Guzzetti e a Videla para matar na Argentina: "Se há coisas a fazer, devem fazê-las rápido!"
Kissinger dá luz verde a Guzzetti e a Videla para matar na Argentina: “Se há coisas a fazer, devem fazê-las rápido!” | Fotos: AP , Página12, Clarín

Nenhuma mesura de Obama às vítimas poderá apagar, na verdade, as digitais americanas na mortandade desatada pelos generais da Argentina com a indulgência e o apoio dos Estados Unidos, sob os governos Nixon (1969-74) e Ford (1974-77), quando a política externa de Washington tinha a inspiração satânica de um radical anticomunista, Henry Kissinger. Em 10 de junho de 1976, apenas dois meses e meio após o golpe de Videla, o chanceler e almirante César Guzzetti teve um encontro em Santiago do Chile com Kissinger, já secretário de Estado de Nixon.

O almirante entrou de coturno na conversa: “Nosso principal problema na Argentina é o terrorismo”, reclamou. O chanceler estadunidense sacou rápido, dando sem muxoxo o sinal verde para o terror de Estado, disfarçado numa frase de perfídia diplomática que, com a mesma eficácia do biquíni, ocultava o essencial sem deixar de mostrar tudo: “Se existem coisas a fazer, devem fazê-las rápido”, ensinou Kissinger, finalizando com um conselho digno de seu estilo cínico: “Mas, deveriam voltar logo que possível aos procedimentos normais”. Como se sabe, nem Videla e seus generais voltaram logo à normalidade democrática, nem Kissinger reclamou da violência prolongada — nem mesmo quando a Condor criou asas e decolou sob a indulgência plenária e os bons ventos soprados por Washington.

O garoto das águas

Como é praxe nas visitas presidenciais, Macri e Obama foram até a murada do parque para jogar flores nas águas geladas e barrentas do rio da Prata, transformado pela ditadura em depósito clandestino de presos que ali eram jogados, muitos deles ainda vivos. Um dos mais jovens era uma criança de 14 anos, um jovem magro de cabelos morenos cobrindo as orelhas, chamado Pablo Miguez. Foi preso com a mãe, membro do grupo guerrilheiro ERP, por um grupo armado do Exército que invadiu sua casa no bairro de Avellaneda em 12 de maio de 1977. Foi torturado com choques elétricos diante da mãe no centro clandestino El Vesubio e depois levado para a Escola de Mecânica da Armada, a notória ESMA, centro de torturas onde sobreviveram apenas 100 dos 4 mil presos que passaram por lá — entre eles não estava Pablo. A jornalista Lila Pastoriza, que saiu viva da ESMA, ficou um mês e meio ao lado de Pablo, que não era interrogado por ninguém. “Veja a que nos dedicamos agora”, comentou um carcereiro da ESMA, zombando da pouca idade do preso. “Um dia, um dos guardas o pegou pela mão e nunca mais soube dele”, contou a jornalista no tribunal.

Obama e Macri: flores nas águas do Prata, onde Pablo Miguez, 14 anos, desapareceu para sempre no 'voo da morte'
Obama e Macri: flores nas águas do Prata, onde Pablo Miguez, 14 anos, desapareceu para sempre no ‘voo da morte’ | Fotos: Página12

A imagem de Pablo ficou flutuando para sempre na consciência nacional e nas águas do Prata, onde ele parece caminhar na impactante estátua em aço polido da artista plástica Cláudia Fontes, que esculpiu no Parque de La Memória a figura de um garoto, com as mãos para trás, olhando o horizonte sem fim do grande rio onde se afogaram tantas vidas e esperanças. A obra está colocada de costa para a praia, a uns 50 metros da murada que recebeu Obama e Macri, e produz um forte efeito emocional em quem a vê. A dois quilômetros de distância está a ESMA, onde um dia Pablo viveu os últimos momentos de sua curta vida. Uma coisa rápida, como pedia Kissinger aos generais.

Pablo começou a morrer quando recebeu uma injeção anestésica que o deixou grogue, sonolento. Homens da Marinha, sem uniforme, descaracterizados com tênis, jeans e camiseta, o levaram para o Aeroparque, aeroporto doméstico a apenas 4 km da ESMA, e o embarcaram num Skyvan, um bimotor turboélice irlandês conhecido como ‘caixa de sapatos voadora’. Transportava 19 passageiros, era curto, bojudo e muito apreciado pela rampa traseira que facilitava a descarga de mercadoria. A ditadura argentina achou uma boa finalidade nesse avião para descartar suas ‘mercadorias’ humanas: decolava com sua carga de presos do Aeroparque até a altitude de 6 mil metros, a 300 km por hora, e de lá jogava sua carga no Prata. Antes de virar estátua, Pablo desapareceu assim, da mesma forma que outras 4.400 pessoas despejadas por ordem direta do almirante Emílio Massera, o nome mais sanguinário da junta militar.

A entrevista errada

Vários corpos teimaram em reaparecer, a partir de maio de 1976, nas praias argentinas e uruguaias do Prata. Os restos com marcas de torturas localizados 300 km ao sul de Buenos Aires foram rapidamente sepultados como NN (no nombrados) no cemitério de General Lavalle, uma localidade rural às margens do rio, com pouco mais de 3 mil habitantes. Autópsias posteriores identificaram entre eles três fundadoras do grupo das Mães da Plaza de Mayo — Esther Ballestrino, Maria Eugenia Ponce de Blanco e Azuzena Villaflor.

Os corpos que ressurgiam nas praias distante do cabo Polônio — já na costa uruguaia do Atlântico, 260 km acima de Montevidéu — de certa forma voltavam para casa. Eram uruguaios exilados na Argentina, sequestrados pela Condor, torturados na Automotores Orletti do agente Furci e do coronel Cordero e arrojados das alturas no Prata. Deveriam desaparecer, mas ressurgiam teimosamente nas manchetes dos jornais, todos censurados, que se limitavam a informar sobre os achados macabros, sem avançar nos motivos e identidade dos assassinos. Apesar disso, todos sabiam ou imaginavam do que se tratava. Os detalhes só foram conhecidos uma década depois, em 1995, quando o capitão de corveta Adolfo Scilingo, hoje com 69 anos, contou ao jornalista Horácio Verbitsky a verdade sobre os vuelos de la muerte, que ele coordenou como integrante da ESMA. O depoimento virou um livro, El Vuelo, e o sucesso garantiu ao capitão um convite da TV estatal da Espanha para uma entrevista bombástica.

Os mortos reaparecem nos jornais, após o voo final no Skyvan: o capitão Scilingo e seus 4.400 fantasmas jogados no Prata
Os mortos reaparecem nos jornais, após o voo final no Skyvan: o capitão Scilingo e seus 4.400 fantasmas jogados no Prata | Fotos: Reprodução, Arquivo da Marinha, Página 12

Quando desembarcou em Madrid, em outubro de 1997, em vez do festejado apresentador da TVE Carlos Herrera, o capitão da ESMA foi desviado do estúdio para ser entrevistado num tribunal por outro espanhol: o juiz Baltazar Garzón, que ganharia renome mundial um ano mais tarde ao determinar a prisão do general Pinochet pelos crimes da Condor. Scilingo confirmou ao juiz os pormenores dos voos assassinos e nunca mais retornou à Argentina. Pelos crimes de lesa humanidade, a morte de 30 pessoas e a detenção ilegal e torturas em outras 256, o capitão foi condenado pela Suprema Corte espanhola a 1.084 anos de prisão.

A tragédia da Operação Condor, enfim julgada e condenada em Buenos Aires, mostra que Argentina e Brasil, agora, mostram uma inesperada convergência — para pior, no plano sensível dos direitos humanos.

O Brasil tem fracassado miseravelmente no seu acerto de contas com o passado. Enquanto os países mais importantes da região instalavam suas Comissões da Verdade no mesmo ano em que caíam suas ditaduras (Argentina em 1983, Uruguai em 1985 e Chile em 1990), o Brasil da eterna conciliação viu o último general deixar o Palácio do Planalto em 1985 e ainda esperou longos, insuportáveis 27 anos para implantar sua comissão.

Cinco presidentes civis — José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva — passaram omissos diante do tema, que só foi atacado em 2012 no governo de Dilma Rousseff, o único governante entre eles que carregava a condição de ex-guerrilheira, presa política e torturada na ditadura. Dilma teve o mérito de instalar a Comissão Nacional da Verdade (CNV), mas o demérito de não defendê-la contra a persistente sabotagem dos comandos militares, que ao longo de seu governo mostraram desdém, desatenção e clara hostilidade aos trabalhos de investigação.

Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo: responsáveis pela ditadura | Fotomontagem: Arquivo Presidência
Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo: responsáveis pela ditadura | Fotomontagem: Arquivo Presidência

Os generais ignoraram ostensivamente os fatos, nomes e datas de centros de torturas e mortes comprovadas em um minucioso requerimento que a CNV apresentou aos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Na resposta evasiva, desleixada, que deram ao requerimento, os generais chegaram ao requinte de ignorar até as torturas de 22 dias a que submeteram a guerrilheira Dilma Rousseff, em 1970, no mais afamado centro de violências do Exército, o DOI-CODI da rua Tutoia, administrada pelo II Exército (atual Comando Militar do Sudeste), em São Paulo. Apesar do deboche explícito, nem o passivo ministro da Defesa, Celso Amorim, nem a torturada Dilma Rousseff — a comandante suprema das Forças Armadas — fizeram valer a sua autoridade. Engoliram a afronta em seco. A cínica ditadura brasileira fingiu, sempre, que não participou da fundação da Operação Condor em Santiago do Chile, em novembro de 1975.

O coronel chileno Manuel Contreras, chefe da temida DINA de Pinochet, queria um encontro da cúpula da repressão regional em seu país. Mandou o vice-chefe da DINA, o coronel da Força Aérea Mário Jahn, percorrer as capitais do Cone Sul para entregar o convite em mãos. Quase 30 anos depois, quando depôs ao juiz Juan Guzmán, o primeiro do Chile que ousou processar o intocável Pinochet, o coronel Jahn não lembrava onde e a quem entregou os convites. Só lembrou de um destinatário: “João Batista Figueiredo, persona que conocía de un viaje anterior que hice a Brasil“. Figueiredo, então chefe do SNI, só não decolou de Brasília porque foi contido pelo presidente Ernesto Geisel, que não queria dar tanto prestígio a Pinochet. Ele ordenou que outros fossem no lugar de Figueiredo.

Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma: omissos na democracia
Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma: omissos na democracia | Fotos: Arquivo Presidência

Os 44 mil documentos do Departamento de Estado que poderiam esclarecer o assunto nunca informaram quais eram os brasileiros. Intrigado com essa lacuna, investiguei durante dois anos, nas entranhas da ditadura, para concluir meu livro sobre a Operação Condor (*), lançado em 2008. Então, revelei os nomes dos dois brasileiros autorizados por Geisel e indicados por Figueiredo para representar o Brasil no encontro: o coronel Flávio de Marco e o major Thaumaturgo Sotero Vaz, ambos do Centro de Informações do Exército (CIE) e veteranos do combate à guerrilha do Araguaia. A dupla viajou com uma ordem estrita de Geisel: participar apenas como observadores, sem autorização para assinar a ata de fundação da Condor. Eles foram, viram, ouviram, falaram e participaram, fingindo que não estavam ali. O Brasil saiu à francesa do evento histórico da Condor.

O coronel De Marco morreu de infarto aos 52 anos, em 1984, quando exercia o cargo de diretor-administrativo do Palácio do Planalto no Governo Figueiredo. O major Thaumaturgo, hoje general da reserva, sobreviveu a tudo e trabalhava em 2012 como assessor parlamentar do Comando Militar da Amazônia (CMA). Conforme a página 223 do Capítulo 6 do relatório final da CNV, dedicado às ‘Conexões Internacionais: a aliança repressiva no Cone Sul e a Operação Condor’, o general Thaumatugo alegou razões de saúde e recusou duas convocações da CNV para cumprir seu dever para com a Pátria e revelar o que sabe na condição de testemunha ocular da história da Condor.

Nem o comandante do Exército, nem o ministro da Defesa, nem a presidente Dilma mostraram qualquer contrariedade com a falta de colaboração do general que viu a serpente sair do ovo. E engoliram em seco o desaforo. A CNV fez a sua parte e a presidente guerrilheira, não.

A primeira das 29 medidas propostas pela CNV em seu relatório final pede o reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade nas torturas e violências cometidas durante o regime de arbítrio — uma impossibilidade prática enquanto prevalecer a inércia dos comandantes militares e a apatia dos presidentes civis. A segunda recomendação da CNV, que se impõe como dever histórico e exigência de cortes internacionais, é a revogação da Lei de Anistia que a ditadura desenhou com esmero, em agosto de 1979, para beneficiar os seus torturadores com o privilégio da impunidade.

Ao Executivo inerte se somou a omissão crônica do Legislativo. Num Parlamento brasileiro com 513 deputados e 81 senadores, existem apenas duas propostas para revisar esta obscena ‘lei de autoanistia’ que os militares fizeram aprovar por apenas cinco votos (206 a 201) num Congresso emasculado pelos atos institucionais — tudo para garantir à força a hegemonia na Câmara dos Deputados do partido da ditadura, a ARENA (221 cadeiras), sobre a frente de oposições abrigada no MDB (186). Um projeto da deputada Luiza Erundina (então PSB-SP) e outro do senador Randolfe Rodrigues (hoje REDE-AP), ambos pedindo a revisão da Anistia de 1979 para permitir a punição aos torturadores, são as únicas manifestações parlamentares que confirmam a omissão e o desinteresse de um Congresso conservador, desatento à História e aos seus compromissos éticos para com a verdade.

Nenhum avanço pela punição aconteceu no governo da ex-guerrilheira Dilma, nada certamente acontecerá no retrógrado governo interino de seu sucessor. O regressista Michel Temer mostrou em apenas três semanas de poder trepidante um dos mais desastrados inícios de administração da história da República, graças a uma notável equipe de nítido conteúdo conservador, claras convicções de retrocesso, forte índole reacionária e controversa integridade na sensível área da moralidade pública. Temer não lembrou de nenhuma ‘representante do mundo feminino” para integrar seu ministério num país onde 103 milhões (51,4%) da população são mulheres. Descobriu para a rebaixada Secretaria das Mulheres uma crente evangélica que é contra o aborto até mesmo em casos de estupro, contrariando o que diz a lei. Retirou o status de ministério da Secretaria de Direitos Humanos e, pior, ressuscitou o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), disfarçado como Secretaria.

O general quatro estrelas, Sérgio Etchegoyen, 64 anos, é um militar de fortes ligações familiares com a linha dura de duas ditaduras. Foi assessor especial do ministro Nelson Jobim no Governo Lula e chefe do Estado Maior do Exército (EME) no Governo Dilma O avô de Etchegoyen, Alcides, foi chefe de polícia do Estado Novo (1937-45) do ditador Vargas, substituindo o notório Filinto Muller. O pai, Léo, era major e chefe da polícia gaúcha em Porto Alegre, logo após o golpe de 1964, quando recebeu com estilo o agente americano Dan Mitrione. Em junho, ele posou para fotos na escadaria do Palácio da Polícia com o ilustre visitante, especialista em torturas que dava seu know-how à repressão no Rio, como responsável no Brasil do Office Public Safety (OPS), braço da CIA que atuava na América Latina sob a fachada da USAID. Mitrione foi transferido em 1969 para o Uruguai, para disseminar suas habilidades. Lá foi sequestrado pelos Tupamaros e executado na prisão da guerrilha em 1970.

Os generais Etchegoyen: o filho, Sérgio... ...e o pai, Léo (esq), em 1964, com Dan Mitrione (dir).
Os generais Etchegoyen: o filho, Sérgio… …e o pai, Léo (esq), em 1964, com Dan Mitrione a sua direita | Fotos: Sul21, Arquivo MJDH

Em 1979, já general em São Paulo, Leo Etchegoyen era chefe do Estado-Maior do II Exército e, como tal, responsável direto pelo DOI-CODI, o centro de suplícios onde atuou o coronel Brilhante Ustra, o torturador festejado pelo deputado Jair Bolsonaro no seu polêmico voto na sessão da Câmara que admitiu o processo de impeachment que afastou Dilma Rousseff provisoriamente do Planalto. Um tio, Cyro Etchegoyen, foi apontado pelo coronel Paulo Malhães em depoimento à CNV como a autoridade responsável pela ‘Casa da Morte’, centro clandestino de tortura e morte montado pelo DOI-CODI do I Exército na cidade serrana de Petrópolis.

O general Sérgio não falou do tio, mas se incomodou pelo pai, citado no relatório final da CNV de dezembro de 2014 como um dos 377 agentes do Estado brasileiro responsáveis por crimes na ditadura. Na condição de único general da ativa a confrontar publicamente a CNV, ele a acusou de ‘leviana’ em nota oficial. “No seu patético esforço para reescrever a história, a CNV apontou um culpado para um crime que não identifica”, protestou o general, em nome da mãe e quatro irmãos. Levou de volta no mesmo dia uma dura resposta da CNV, que lembrou fatos que o general Etchegoyen esquecia sobre o pai. Além da acolhida ao torturador Mitrione, que o general não lembrou, a CNV cita que Léo, em 28 de dezembro de 1979, “na qualidade de chefe do Estado-Maior e supervisor das atividades do DOI-CODI, fez calorosos elogios aos serviços prestados pelo tenente-coronel Dalmo Lúcio Muniz Cyrilo, chefe do DOI-CODI/II Exército”. Para refrescar a memória do Etchegoyen filho, a CNV lembrou que Cyrillo atuou “como chefe de equipes de interrogatório do DOI-CODI, tendo desempenhado a função de subcomandante nos períodos de Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel” — os dois coronéis, por sinal, citados na lista dos 377 agentes da ditadura, ao lado do tio e do pai do general Etchegoyen.

A CNV pisou mais fundo, relembrando na sua resposta: “Em 1980, quando Léo Etchegoyen era chefe do EM do II Exército, seu comando esteve vinculado ao planejamento da prisão coletiva de sindicalistas e lideranças dos metalúrgicos da região metropolitana de São Paulo conhecida como ABCD, bem como do sequestro de integrantes de organizações de direitos humanos que prestavam solidariedade a esses trabalhadores, como os advogados José Carlos Dias — então presidente da Comissão Justiça e Paz (CJP) da Arquidiocese de São Paulo — e Dalmo Dallari — ex-presidente da CJP—, prisões efetuadas com violência, sem mandado de prisão e sem a devida comunicação às suas famílias”. O general não rebateu a nota da CNV.

Apesar desses antecedentes, ou por causa deles, o general Sérgio Etchegoyen é um dos notáveis do novo governo, indicado pelo presidente interino para assumir a Secretaria de Segurança Institucional.

Assim, enquanto a Argentina faz história na inédita condenação dos criminosos da Condor, o Brasil marca passo e retrocede. Depois de cinco generais-presidentes responsabilizados pela violência da ditadura, Brasília abrigou, em sequência, seis presidentes civis omissos diante da impunidade dos torturadores. E chega ao fundo do poço, agora, com o inesperado e exasperante Governo Temer.

Que vergonha, Brasil!

 

Golbery: neto fez 102 votos, mas avô está mais vivo do que nunca

O reproduz abaixo artigo do jornalista Luiz Cláudio Cunha publicado originalmente no Observatório de Imprensa, em 2011. Antes, reportagem de Evandro Éboli, de O Globo, que entrevistou o candidato Golbery Neto sobre sua votação inexpressiva nas últimas eleições.

Impulsionado pela imagem negativa dos políticos e no contato diário com as demandas da população fluminense, Golbery do Couto e Silva Neto, de 41 anos, justificou assim sua entrada na política. Ele foi candidato a deputado estadual no Rio, pelo Democratas, o DEM, em outubro. Seu desempenho nas urnas, porém, deixou a desejar. Ele obteve apenas 102 votos e, entre os 1.846 postulantes a uma das vagas, terminou em 1.430º lugar. Neto do general Golbery do Couto e Silva, criador do Serviço Nacional de Informações (SNI) e considerado o ideólogo da doutrina de segurança nacional, Golbery Neto colou a imagem do avô na sua campanha eleitoral. Não aleatoriamente, escolheu como número de campanha 25.064. O 64 não está ali à toa.

— A escolha do número foi uma alusão ao que ocorreu a partir de 1964. Acho esta história bastante deturpada — explicou Golbery Neto.

No seu material de campanha, além do número com o qual concorreu, há uma foto sua e outro do avô. Seu slogan para conquistar os eleitores foi: “Para retomar os rumos do progresso”. Neto justifica a escolha do DEM para se lançar na política.

— Meu avô fez parte dos quadros do PDS. Por uma questão de coerência política me filiei ao DEM. Poderia ser o PP.

O candidato atribui sua baixa votação a questões burocráticas —a candidatura “demorou para se consolidar” — e à falta de doações (“não houve campanha efetivamente”). E reconhece:
— Estes fatos mostram o motivo do resultado da votação, que ficou longe de ser expressivo — disse.

Golbery Neto, que é filho de Golbery do Couto e Silva Júnior, já falecido, rejeita atribuir sua baixa votação à associação de seu nome com os fatos de 64 e o papel de seu avô no regime militar.

— Objetivamente, não tem relação. O deputado federal mais votado do Rio foi o Jair Bolsonaro (PP), que defende visceralmente tudo que se relacione com aquele episódio. Menos a abertura.
Para confrontar a versão de que Golbery do Couto e Silva foi o “mentor do golpe de 64”, o neto prepara um livro em defesa do legado do avô.

— Golbery, e parte dos militares com o qual trabalhava, queriam esperar o fim do governo de João Goulart para que novas eleições fossem procedidas… O país estava em pânico com a administração inconstante do senhor João Goulart — disse Golbery Neto, que é formado em Ciências Sociais e Relações Internacionais. Ele trabalha numa empresa de importação e exportação.
Ter exatamente o mesmo nome do avô já lhe causou dissabores no dia a dia. Mas ressalta que ouve críticas e elogios.

— Acho natural que isso ocorra. Nos tempos de universidade era mais intenso. Um ambiente acadêmico sempre aponta para um embate ideológico mais acirrado. Rapidamente percebi que a melhor resposta que poderia dar naquela situação era o trabalho. Alcançando boas notas passei a ser respeitado pelos professores e por meu colegas. Mas, na maior parte, sempre vi meu avô ser tratado como um dos homens mais sérios, cultos, honestos e competentes do país. (Evandro Éboli, em O Globo)

Jornalista revela quem foi Golbery

Luiz Cláudio Cunha*
“Me sinto extremamente ofendido, com o artigo do Sr. Luiz Cláudio Cunha. Em parte pela infantilidade que entorta os fatos rumo ao que se deseja, ou seja: Demagogia. Em parte pela covardia de ofender o caráter de quem já não pode mais defender-se. Obrigado. (Golbery do Couto e Silva Neto, e-mail ao Observatório da Imprensa, 9/9/2011)

General Golbery, em 1980
General Golbery, em 1980

O sr. Golbery Neto, compreensivelmente, não gostou do que foi publicado neste Observatório (ver “Golbery: benfeitor em Rio Grande, malfeitor no Brasil“) sobre o avô. Gastou quatro linhas e 44 palavras, sem nenhum argumento, para tentar desqualificar um texto de 221 linhas e 2.552 palavras calcado em fatos e na ficha do general gaúcho, inventor do golpe de 1964 e prestes a ser homenageado com um monumento em sua terra natal, Rio Grande.

Quase nada se sabe do neto, que diz residir no Rio de Janeiro e se identifica profissionalmente como ‘internacionalista’, seja lá o que isso possa significar. Mas muito se sabe do avô, que, aliás, sabia muito mais. Sabia quase tudo sobre todos nós, como criador e chefe primeiro do SNI, o Serviço Nacional de Informações que bisbilhotava a vida dos brasileiros em geral, e dos opositores em particular. A vida pregressa de Golbery do Couto e Silva (1911-1987) ganhou súbita atualidade em agosto passado, com a desastrada ideia dos vereadores e do prefeito de Rio Grande (RS) de homenagear o general no mês do centenário de seu nascimento, cravando um monumento na praça central da cidade.

A oferenda sangrou como uma estaca na memória dos brasileiros, especialmente dos gaúchos, que justamente nesse agosto festejavam o cinquentenário da Campanha da Legalidade – o movimento popular de 1961 liderado pelo governador Leonel Brizola em defesa da posse de João Goulart na presidência da República, vaga com a renúncia inesperada de Jânio Quadros.

A transição constitucional foi vetada pelos três ministros militares que leram um manifesto golpista redigido, ironicamente, pelo então coronel Golbery do Couto e Silva. Essa brutal contradição entre as poucas benfeitorias municipais e as muitas malfeitorias nacionais do general teve baixa repercussão na imprensa – com exceção de alguns blogs e opiniões isoladas, contra ou a favor – e nenhum eco entre os políticos brasileiros, desconectados com a coerência histórica e descomprometidos com a memória nacional.

O jovem prefeito de Rio Grande, Fábio Branco, de 39 anos, nem justificou a homenagem intempestiva: “Não vou fazer juízo da ditadura militar. Eu nem era nascido…”. O neto do general, talvez ainda mais jovem, também evita qualquer consideração sobre a obra política do avô, sob o infantil argumento de que seria “covarde” avaliar a biografia dos mortos. Sob este prisma obtuso, prefeito e neto se eximem, portanto, de julgar episódios como a escravidão e o nazismo ou de opinar sobre personalidades já finadas como Hitler, Stálin, Pinochet ou Médici.

Imprensa complacente
Esta omissão deliberada não contaminou os cidadãos mais conscientes, de Rio Grande ou não. Uma pesquisa online do jornal local, o Agora, mostrou que mais da metade (58,5%) da população discorda do monumento. Um abaixo-assinado na internetregistra mais de 1.600 assinaturas de todo o país condenando a homenagem. Indignados, movimentos de sindicatos, estudantes e populares de Rio Grande formaram uma Comissão “Ditadura Nunca Mais” e, na semana passada, entregaram às autoridades locais dois livros do jornalista Elio Gaspari: A Ditadura Escancarada foi ofertadaao prefeito sem juízo e A Ditadura Derrotada foi agraciada aos vereadores sem tino.

Nas duas obras, parte de uma magistral tetralogia de 2002 – portanto escrita quando o general, morto em 1987, já não podia mais se defender, para desencanto do neto – o feiticeiro Golbery refulge merecidamente como personagem central, dividindo a cena com o sacerdote Ernesto Geisel.

A mesma imprensa complacente de hoje com o passado tenebroso do general lembra muito a imprensa conivente de ontem com o general golpista de sempre. Golbery carrega na sua ficha a proeza de ter derrubado Jango duas vezes do poder. A primeira, em 1954, quando redigiu o manifesto de 82 coronéis e tenentes-coronéis que levou à demissão de João Goulart, então ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, criticado pelos militares pelo aumento de 100% do salário mínimo.

A segunda, dez anos mais tarde, quando depôs Jango da presidência da República no golpe vitorioso de 1964, resultado final de uma científica, pensada e cara conspiração civil-militar que juntou o grande empresariado nacional e multinacional com a direita dos quartéis sob a fachada do dissimulado IPES, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. O coordenador do IPES, que deu em 1964 o troco no golpe frustrado em 1961 pela brava resistência dos seus conterrâneos gaúchos, era o incorrigível Golbery.

Seria útil que o jovem neto de Golbery aprendesse sobre os fatos da tortuosa carreira do avô lendo um livro, pelo menos um livro, o clássico1964: a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe (Editora Vozes, 1981), do professor uruguaio René Armand Dreifuss (1945-2003).

Ali, em 814 páginas irrespondíveis, Dreifuss desentorta os fatos para revelar ao neto distraído, com documentos do próprio IPES, a lenta, gradual e segura conspirata do vovô Golbery para derrocar um governo democrático e botar no seu lugar uma ditadura de 21 anos sob o rodízio de cinco generais-presidentes – três deles (Castelo Branco, Geisel e Figueiredo) tendo o próprio Golbery como inquilino e feiticeiro-mor no Palácio do Planalto.

O IPES nasceu em novembro de 1961, três meses após a vitória popular da Legalidade – quando nem o prefeito de Rio Grande, nem o neto do general, haviam nascido. Parecia um inocente clube de homens de negócios. Entretanto, na sua face oculta, sob siglas e codinomes, o IPES concentrava a execução metódica de um pensado plano da burguesia nacional para combater de forma clandestina os seus três principais inimigos: o governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e o comunismo, que aparentemente resumia tudo aquilo.

O braço político ostensivo do IPES de Golbery era o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apesar do nome tinha ligações com o MAC, Movimento Anticomunista, e com a organização da direita católica Opus Dei. O fundador do IBAD em 1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, uma agência de publicidade que promovia o lobby do IBAD e seu braço parlamentar, a ADP – Ação Democrática Popular, um núcleo conservador de 160 parlamentares da centro-direita no Congresso Nacional reunido em torno da UDN, PSD e PSP. Segundo Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela estação no Rio de Janeiro da CIA, a agência de inteligência americana focada em campanhas políticas e grupos de pressão.
Assalto sincronizado

Homens da mesma linha de pensamento e com igual propósito juntaram, a partir de 1962, as duas entidades: nascia o complexo IPES/IBAD, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que sustentou o regime militar. O IPES operava como centro estratégico e o IBAD, como uma unidade tática. O monstro crescia junto com a conspiração. Em 1963, os 80 membros originais do IPES pularam para 500. Eram sócios 26 dos 36 líderes da FIESP, a maior federação industrial do país. A entidade se espalhava pelas capitais do país.

A articulação dos empresários com os militares era feita pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC) do IPES, comandado pelo general Golbery, que atuava sobre o I (Rio) e III (Porto Alegre) Exércitos. A “ordem de serviço com calendário” do GLC, que definia a estratégia de ação, tinha uma edição limitada de 12 exemplares, que não eram registrados nas atas do IPES. A equipe de Golbery distribuía nos quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem citação da fonte, avaliando a atividade “comunista” no país, apontando o dedo para subversivos infiltrados no governo e mapeando suas ações.

Só no Rio de Janeiro o clandestino GLC de Golbery tinha três mil telefones ilegalmente grampeados. O grupo dirigente do general ocupava quatro das 13 salas que o IPES havia alugado no 27° andar do edifício Avenida Central, na Avenida Rio Branco, então o prédio mais moderno no centro da cidade. A conta do telefone era faturada em nome do general da reserva Henrique Geisel, irmão de Ernesto, futuro sacerdote no Planalto.

O GLC do vovô Golbery escrutinava a produção diária da imprensa do país, um total de 14 mil edições no ano, e produzia mensalmente cerca de 500 artigos, disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras. O Grupo de Atuação Parlamentar (GAP) do IPES tinha vergonha do que fazia. Proibia qualquer menção à sigla, que era camuflada como “Escritório de Brasília”. Ele coordenava a campanha anti-Jango na capital, mas quem aparecia publicamente era o IBAD e o fazendeiro baiano João Mendes, deputado udenista e líder ostensivo da Ação Democrática Parlamentar.

O plano era simples e mortal: o IPES de Golbery, por intermédio do IBAD e da ADP, emparedava o governo no Congresso, criando um beco sem saída parlamentar e um ponto morto do Executivo. A inércia legislativa levaria ao clamor popular pelo poder “moderador” das Forças Armadas, única instituição capaz de tirar o país daquele atoleiro fabricado pela conspiração urdida pelo general no Parlamento.

Neste trabalho era fundamental manipular a opinião da sociedade. Na dura expressão de René Dreifuss, “o IPES conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública” pela relação especial com os principais veículos da mídia nacional. O objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do IPES era disseminar seus objetivos na imprensa falada e escrita.

Dissimulado, o grupo evitava o nome “opinião pública”, preferindo as expressões “divulgação” e “promoção”. José Luís Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, dizia que “conquistar a opinião pública” era a essência da ação política do grupo. O principal articulador do GOP era um ex-comissário de polícia, José Fonseca, que começou na vida como “tira” no 16° Distrito Policial de São Cristóvão, um subúrbio operário da zona norte do Rio, no réveillon de 1952.

Conspiração sem twitter

Em 1958, trocou a delegacia por um cargo de relações públicas da Light, a empresa americana de energia que se tornaria uma das líderes do IPES e da conspiração. Em 1963, um ano antes do golpe, o ex-comissário José Rubem Fonseca deu aos 38 anos seu primeiro tiro certeiro na literatura: lançou o livro de contos Os prisioneiros com o nome literário de Rubem Fonseca. O festejado autor de Feliz Ano Novo, A grande arte e Bufo & Spallanzani tornou-se nas décadas seguintes o maior contista vivo do país, ganhador em 2003 do Prêmio Camões, uma espécie de Nobel para escritores da língua portuguesa.

Outros destaques do GOP no Rio eram os jornalistas Glauco Carneiro e Wilson Figueiredo, este do corpo editorial do Jornal do Brasil.Em São Paulo, o GOP atuava com Geraldo Alonso, dono da Norton Propaganda, e nomes ilustres de O Estado de S.Paulo, como Ênio Pesce e Flávio Galvão. Contava ainda com Jorge Sampaio e Alves de Castro, os dois nomes centrais do Repórter Esso da TV Tupi, o equivalente ao Jornal Nacional da Rede Globo de hoje, patrocinado pela Esso do Brasil, membro importante do IPES do vovô Golbery.

Em tempos sem e-mail ou twitter, o GOP se valia da tecnologia da época: enviava milhares de cartas e telegramas e fazia chamadas telefônicas, antecipando em décadas o odiado telemarketing. Em novembro de 1962 chegava a três mil nomes a lista de organizações de rádio e TV mobilizada pelo GOP. Aliado a ele funcionava o GPE, Grupo de Publicações/Editorial, que disseminava material impresso pelo país.

Esta campanha de guerra psicológica era tarefa do ex-comissário e contista Rubem Fonseca, que incluía intelectuais respeitados como Augusto Frederico Schmidt, Odylo Costa Filho e Rachel de Queiroz, prima do general Castelo Branco, líder do golpe que derrubou Jango. Rachel foi presa no golpe do Estado Novo, em 1937, acusada de subversiva, e teve seus livros queimados.

Um quarto de século depois, a comunista de Fortaleza era uma intelectual engajada na equipe de propaganda de direita de Rubem Fonseca no IPES. O primo Castelo Branco, já ex-presidente, morreu num acidente aéreo em 1967 quando retornava de um passeio à fazenda da prima Rachel.

Os propagandistas do GOP atuavam em três frentes: artigos para jornais e revistas, panfletos para circular entre estudantes, militares e operários, e livros que comparavam a democracia com a empresa privada. Em comum, eram todos anticomunistas, antitrabalhistas e antinacionalistas – a tríade que embalava o cérebro do vovô Golbery. Nomes fortes do mercado editorial, como Saraiva, Cia. Editora Nacional e GRD Editora, colaboravam na publicação da chamada “literatura democrática”.

Balcão de deputados

A escolha dos candidatos agraciados com o apoio financeiro pelo IPES de Golbery obedecia a uma regra rígida, quase um contrato de compra e venda. Quem se habilitava a integrar a lista de “democratas convictos e anticomunistas de primeira ordem” passava pelo crivo dos analistas do complexo IPES/IBAD.

Mais importante do que a filiação partidária era a orientação das ideias. Cada candidato era compelido a assinar um “ato de compromisso ideológico”, pelo qual prometiam lealdade ao IBAD acima da fidelidade ao seu partido, prometendo ainda lutar contra o comunismo e a defender o investimento estrangeiro.

Mas a mercadoria custava caro. O chefe do GAP (Grupo de Ação Parlamentar) do IPES, o banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores, avaliava os candidatos pelo coeficiente eleitoral. De início, ele calculava que cada deputado “custaria” cerca de 6 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 317 mil), mas percebeu que esta seria a conta de nomes da Paraíba e outros Estados menores.
O preço aumentava no Ceará e ainda mais na Bahia. Os candidatos de Rio e São Paulo eram mais caros, explicou Mello Flores, avaliando a contaper capita dos deputados no balcão do IPES do vovô Golbery: 15 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 792 mil).

O orçamento de um candidato pouco conhecido e de limitada agressividade eleitoral incluía despesas com equipamento de som, 40 mil cartazes, 600 faixas, fotografias, espaço em jornais, mensagens no rádio e TV, discos de jingle, gasolina, correspondência e pessoal de apoio… Tudo isso ao custo de uns 10 milhões de cruzeiros, o que não era pouca coisa. Dez milhões, que hoje valem R$ 528 mil, equivaliam então à renda diária de 20 mil trabalhadores de salário mínimo, número de votos atualmente suficientes para eleger vereador em capital.
O IPES de Golbery recebeu apoio financeiro de 297 corporações americanas. Passavam o chapéu entre empresas britânicas, suecas, alemãs. A Fundação Konrad Adenauer, órgão do Partido Democrata Cristão alemão, canalizava recursos pelo sólido complexo siderúrgico Mannesmann e pela gigante Mercedes Benz. O neto certamente não sabia, mas o vovô Golbery encarregou-se pessoalmente do contato com o presidente da Mercedes.

Grampo na Casa Branca

Os amigos do general estavam ativos, também, em Washington. Na segunda-feira, 30 de julho de 1962, o presidente John Kennedy entrou no Salão Oval e ligou pela primeira vez seu novo brinquedinho, instalado no fim de semana: o sistema secreto de gravação de voz da Casa Branca.

A estreia prometia: era uma conversa cabeluda de Kennedy com o seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, parceiro de Golbery no caminho para o golpe militar que derrubaria João Goulart dois anos depois. Começava pelo gasto não contabilizado de US$ 8 milhões nas eleições de 1962, adubando secretamente candidatos apoiados pela CIA e simpáticos aos EUA.

A conexão americana do mundo político brasileiro com os militares golpistas era feita por outro amigo do peito de Golbery – o discreto adido militar da embaixada, coronel Vernon Walters, que chegaria a vice-diretor da CIA no auge do Caso Watergate que derrubou Nixon, em 1974.

A transcrição das fitas foi revelada no livro do jornalista americano Tim Weiner, Legado de Cinzas – Uma história da CIA (Ed.Record, 2008), outra leitura instrutiva que poderia iluminar a cabeça de Golbery Neto. Ela mostra, numa frase de Gordon para Kennedy, que o alvo central da conspiração era o mesmo de Golbery – o próprio Jango:

– Para expulsá-lo, se necessário – disse o embaixador, esclarecendo – O posto da CIA no Brasil deixará claro, discretamente, que não somos necessariamente hostis a qualquer tipo de ação militar, em absoluto, se ficar claro que o motivo da ação militar é…

–… contra a esquerda – completou o presidente Kennedy, dando o sinal verde para o golpe que aconteceria vinte meses depois.

Na véspera da eleição de 1962, a Promotion de Ivan Hasslocher, líder do IBAD, arrendou o jornal carioca A Noite por 90 dias, ao custo mensal de 2 milhões de cruzeiros (cerca de R$ 100 mil no câmbio atual) para propaganda direta. A revista Repórter Sindical também era operada pela entidade.

O órgão oficial do IBAD, Ação Democrática, circulava mensalmente com 250 mil exemplares e textos de gente graúda como o economista Eugênio Gudin e o líder udenista Aliomar Baleeiro. Era gratuita e, ainda assim, não tinha um único anúncio. No início de 1963, um manifesto de 500 profissionais de prestígio, organizados pelo Centro Democrático de Engenheiros, ligado ao IPES, foi publicado no Jornal do Brasil e em O Estado de S.Paulo.

Manifestos variados, todos “democráticos”, proliferavam na imprensa e eram retransmitidos pela dupla IPES/IBAD. Eles tinham uma agência de notícias, a Planalto, que redistribuía o material a 800 emissoras de rádio e jornais do país. Tudo gratuito, tudo pela pátria, tudo pela “democracia”. Um milhão de cópias da Cartilha para o Progresso, feita pelo IPES, exaltando os benefícios da Aliança para o Progresso do governo americano, foi encartada como suplemento da Fatos&Fotos, revista na época de grande circulação da Editora Bloch.

O extremista do Estadão

Num país de elevado analfabetismo, o esperto vovô Golbery percebeu a importância do rádio e da nascente televisão. O IPES gastou 10 milhões de cruzeiros para produzir 15 programas de TV para três canais diferentes. Eram entrevistas de questionários preparados pela entidade, com jornalistas de confiança e gente selecionada para responder sobre reforma agrária, custo de vida, democracia.

Estavam escalados nesse time alguns ilustres conterrâneos de Golbery, como o senador Mem de Sá (presenteado com a cadeira de ministro da Justiça no governo Castelo Branco), os deputados Daniel Faraco, Egydio Michaelsen e Raul Pilla, o prefeito de Porto Alegre Loureiro da Silva e o arcebispo dom Vicente Scherer.

Em 1962, o IBAD operava diariamente mais de 300 programas de rádio no horário nobre das principais cidades do país. A rede de mais de 100 estações ligadas a ele formava a “Cadeia da Democracia”, sob o comando do senador João Calmon, dos Diários Associados, que tinha o cuidado de ir ao ar no mesmo horário das transmissões do líder trabalhista Leonel Brizola, que derrotara Golbery um ano antes com a “Cadeia da Legalidade”.

O maior produtor de filmes comerciais do país, Jean Manzon, foi contratado por Golbery para produzir filmes como Que é a democracia, Deixem o estudante estudar, Uma economia estrangulada, Criando homens livres. Eram filmetes de 10 minutos, projetados antes do vibrante faroeste exibido nas matinês do interior do país, onde se espalhavam três mil salas de cinema.

Quando a plateia não aparecia, o cinema ia até o público. O IPES montou o projeto do “cinema ambulante” em caminhões abertos e ônibus com chassis especiais, que percorriam favelas, bairros populares e cidades distantes. Era um mutirão democrático: a Mesbla fornecia os projetores, a Mercedes Benz emprestava os caminhões e a CAIO montava a carroceria dos ônibus.

Na medida em que avançava a conspiração, crescia a presença militar sobre a base parlamentar. Era hora de sair do discurso para a prática. O IBAD cede seu lugar de destaque para outra sigla – a ESG, a Escola Superior de Guerra, de onde provinham Golbery e o núcleo fardado do golpe.

O novo complexo IPES/ESG alinhava 330 oficiais, de majores a generais de Exército, fazendo a ligação do mundo empresarial com os quartéis. Sempre sob a liderança do vovô Golbery, lá estavam nomes que, mais tarde, fariam parte do poder revolucionário, como ministros ou até presidentes. Orlando Geisel, Mário Andreazza e Walter Pires formulavam planos com Castello Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo.

Um grupo que Dreifuss nomeia como “Extremistas de Direita” juntava fanáticos anticomunistas com adeptos da modernização industrial conservadora. Curiosamente, o grupo era mais ligado ao jornalista Júlio de Mesquita Neto, expoente da “linha dura” paulista que pregava uma forte mensagem anticorrupção e contra a esquerda. Com Mesquita estavam seu irmão Ruy e os deputados Abreu Sodré e Paulo Egydio Martins, mais tarde governadores indiretos de São Paulo indicados pelos quartéis.

Os três ministros militares que Golbery transformou em locutores de seu manifesto no golpe frustrado de 1961 – o marechal Odylio Denys, o almirante Sílvio Heck e o brigadeiro Grun Moss – mandaram emissários da conspiração a São Paulo para um encontro, no início de 1962, com Júlio Mesquita Filho, a quem entregaram um documento sobre as normas que iriam orientar o governo militar após a queda de Jango. O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel, foi mais explícito com o dono do Estadão: o regime discricionário teria de ficar no poder por pelo menos cinco anos.

Animado com a conversa, Mesquita chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro ministério revolucionário. Com o jurista Vicente Rao, advogado da mineradora americana Hanna, Mesquita chegou a fazer o rascunho de um Ato Institucional para fechar Senado, Câmara e Assembleias e cassar mandatos – o mesmo instrumento de força que a ditadura anos depois faria seu jornal engolir com o AI-5, na forma de versos e receita de bolo.

Ciência e violência

No Rio Grande do Sul, quartel-general do III Exército, a maior concentração de tropa terrestre do país e foco principal da resistência de Brizola na Campanha da Legalidade, dois terços da oficialidade já estavam engajados na rebelião. O coronel da Brigada Militar Peracchi Barcelos (PSD), eleito deputado pela máquina do IPES do general Golbery, tratava de sublevar a força pública do estado.

O general Armando Cattani – que comandou no período 1958-59 a poderosa 6ª Divisão de Exército em Porto Alegre, exatamente quando Brizola deixava a prefeitura da capital gaúcha para assumir o governo do estado – organizava grandes fazendeiros no interior do Rio Grande do Sul em unidades paramilitares que seriam acionadas na hora precisa do golpe.

O general Cattani era tão amigo do general Golbery que foi selecionado por ele para assumir como interventor a prefeitura de sua terra natal, Rio Grande. O posto ficou vago de repente graças à quartelada de março de 1964, que transformou a cidade portuária em “área de segurança nacional” e cassou o mandato do prefeito do PTB, Farydo Salomão, no cargo havia apenas três meses.

Não é a juventude, mas a alienação, que pode explicar o desconhecimento que o atual prefeito de Rio Grande e o neto do general têm sobre as violências praticadas pela ditadura de Golbery e seus comparsas nos primeiros dias do golpe exatamente na cidade onde ele nasceu.

Golbery, evidentemente, não tem nenhum envolvimento pessoal com as truculências na sua terra. Mas o general tem tudo a ver com o regime de força que permitiu esses abusos. Como porto e área estratégica no extremo sul do país, Rio Grande coordenava a repressão ali pela SOPS-RG, a Seção de Ordem Política e Social que unia forças do 6º Grupamento de Artilharia de Campanha (GAC) do Exército, o Batalhão de Polícia Motorizada, a Polícia Federal e a Polícia Civil, que cobriam seis municípios da região, de Pelotas a Chuí.

A SOPS era subordinada ao DOPS de Porto Alegre, onde brilhava o nome mais importante do aparato repressivo gaúcho, o delegado Pedro Seelig. Foi pelo Chuí que ele devolveu à ditadura uruguaia os ativistas Lilian Celiberti e Universindo Diaz, sequestrados em Porto Alegre em novembro de 1978 por um comando binacional da Operação Condor, integrado por agentes de Seelig e militares enviados por Montevidéu. A SOPS de Rio Grande e o DOPS de Seelig eram todos membros fraternais da “comunidade de informações”, gerenciada desde Brasília pelo SNI criado pelo grande-irmão Golbery.

O neto ainda não deve saber, mas as brutalidades do regime não poupavam nem os conterrâneos do avô. Um bom exemplo foi relatado por Leandro Braz da Costa, mestrando em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, num trabalho sobre repressão publicado este ano na Jornada de Estudos sobre Ditadura e Direitos Humanos, do Arquivo Público do Rio Grande do Sul.

O historiador ouviu em 2009 um inspetor lotado em Rio Grande, na década de 1970, na 7ª Delegacia Regional da Polícia Civil, dotada de celas especiais com pau-de-arara e choque elétrico para a prática de torturas. A sofreguidão por informações do preso excitava a criatividade, como revela o inspetor:

[…] quando o delegado exigia que obtivéssemos rapidamente uma confissão ou uma informação, tínhamos que apertar o cara ainda mais… levávamos o indivíduo vendado e sem roupa lá pra praia do Cassino, na madrugada. Daí amarrávamos as mãos e os pés dele com uma corda e entrávamos com ele no mar. Afogávamos o cara… contávamos a passagem de seis ou sete ondas e depois retirávamos ele da água. Repetíamos isso várias vezes, até quase ele não aguentar mais. Se mesmo depois disso ele não falasse nada, nós eletrocutávamos ele com os fios ligados no dínamo [do motor] do Opala. Isso sempre funcionava […]

Tortura no mar

Na terra de Golbery, o terror vinha do mar. Em 28 de março de 1964, três dias antes do golpe, o NHi Canopus (H22), um navio hidrográfico da Marinha de 1.800 toneladas e 78 metros de comprimento, concluiu seu trabalho científico de 30 meses para o levantamento da costa sul brasileira desde Torres até Chuí.

Missão cumprida, tomou o caminho de Rio Grande, onde ancorou ao largo do porto. Era comandado pelo capitão-de-fragata Maximiano da Fonseca, que na década de 1980 seria colega de ministério de Golbery, como almirante e ministro da Marinha do governo Figueiredo. Levava a bordo 116 tripulantes, um helicóptero e 14 cientistas. Mas, naqueles dias agitados dos idos de março, o barco abrigou uma carga inesperada: presos políticos.

Transformado em navio-prisão, o Canopus de Maximiano virou o cativeiro do prefeito cassado Farydo Salomão, ali submetido a torturas por ser amigo de Brizola e Jango. A violência é denunciada no livro Centenário do Colégio Lemos Júnior, escrito pelo jornalista Willy Cesar, riograndino como Golbery e que hoje defende o preito ao general. Outro depoimento, ainda mais forte, é do ex-capitão da Brigada Militar Athaídes Rodrigues, vereador e aliado do prefeito.

No dia 7 de abril de 1964, 50 homens cercaram sua casa e o levaram preso, ainda de pijama, num jipe que rodou pela cidade até chegar à Capitania dos Portos. Dali, o vereador trocou o jipe por uma lancha e foi transportado à prisão flutuante do Canopus, onde se juntou a vários ferroviários detidos, incluindo o presidente do sindicato, Miguel Gomes.

Incorporado à Marinha em 1958, seis anos antes do golpe, o Canopus sobreviveu ao regime, aposentando-se doze anos após a queda da ditadura, em 1997. Nesse período, passou 3.342 dias no mar e navegou mais de um milhão de quilômetros, o suficiente para 26 voltas ao mundo. A longa, impecável ficha funcional do Canopus ficou manchada, contudo, pelo desvio de rota ética que o imobilizou no porto de Rio Grande, abandonando por uns tempos a ciência das águas para lançar âncora na violência das mágoas políticas.

O navio-prisão na terra de Golbery era um resumo preciso do país-presídio a que Golbery e sua conspiração reduziram a terra dos brasileiros. O cativeiro temporário do Canopus em Rio Grande não era uma exclusividade do sul, mas uma fatalidade que se reproduzia em outras águas, em outras terras.

No maior porto do país, Santos, no litoral paulista, estava fundeado o caso mais notório de navio-prisão do país, o Raul Soares. Era um velho transatlântico alemão construído em 1900, comprado pelo Lloyd Brasileiro em 1925 e transformado em navio de carga e passageiro para a rota Santos-Manaus.

Faca para o bife

Quase duas vezes maior que o Canopus, com 125 metros de comprimento, o Raul Soarestinha 110 tripulantes e acomodação para 580 passageiros. Os 80 da primeira classe tinham cabine reservada, salão de jantar e orquestra a bordo com pista de dança.

Os outros 500 se acomodavam em redes e cobertas nos quatro porões, e comiam ali mesmo, disputando espaço com a carga – homens na proa, mulheres na popa. No espaço de dez anos, o Raul Soares navegou ao sabor das marés da história: serviu de prisão para os comunistas da fracassada rebelião de 1935 e trouxe para casa em 1945 os pracinhas da FEB que, aliados aos comunistas da União Soviética, derrotaram o Eixo nazifascista.

Em 24 de abril de 1964, o navio lúgubre de casco negro e uma enorme chaminé fumegante foi rebocado pela nova ordem militar até um banco de areia na ilha do Barnabé, em Santos. Cinco dias depois recebeu ali sua primeira leva de passageiros compulsórios: 40 sargentos do Exército que se opuseram ao golpe.

Outros mais – militares e civis, sindicalistas e suspeitos em geral – chegariam depois, num total de quase 500 presos políticos, todos sem processo legal, sem direito a cabine reservada, nem orquestra, nem pista de dança. Ousaram desafiar a partitura desafinada da ditadura e foram jogados como carga nos seus porões infectos.

O Raul Soares tinha três calabouços, batizados pelos presos com nomes de boates famosas da época. O “El Morocco”, um salão metálico sem janelas, ventilação ou luz ao lado da caldeira, tinha uma atmosfera irrespirável de mais de 50 graus. O “Night and Day”, colado à geladeira, era uma sala menor onde os presos ficavam com água gelada na altura do joelho.

O “Casablanca”, talvez o pior deles, era o depósito de fezes, onde a elas se misturavam os presos que precisavam ter a resistência quebrada, pela humilhação ou pelo mau cheiro. Este era o fedor institucional e jurídico emanado pela desordem militar manipulada no caldeirão malcheiroso do vovô Golbery.

Os detalhes escabrosos dessa história foram publicados em 1979 pelo repórter Mauri Alexandrino no jornal Preto no Branco, da Cooperativa dos Jornalistas de Santos. A desordem gerada pela prepotência da nova ordem foi percebida no dia em que 16 presos receberam uma boa notícia: haviam recebido habeas-corpus do juiz da 2ª Vara Criminal de Santos, Antônio Granda.

À noite, aliviados, embarcaram na lancha e deixaram para trás aquele inferno. Foram direto para a sala do capitão dos Portos de São Paulo, Júlio de Sá Bierrenbach, encarregado dos inquéritos policiais na área sindical e política. O capitão chamou a imprensa, autorizou fotos, dispensou os jornalistas e, a sós com os presos, avisou:

“Quero comunicar que vocês estão soltos. Agora que estão em liberdade, estou dando nova voz de prisão. Vocês saíram do processo da Aeronáutica, mas ainda não enfrentaram o da Marinha. Estou abrindo novo inquérito.”

Os soldados reconduziram os presos para a lancha que os devolveu ao inferno. Muitos deles choravam, afogados num sentimento que mesclava tristeza e ódio. Jornalistas só tinham acesso ao Raul Soares como prisioneiros ou pelo filtro rigoroso do servilismo. Certo dia, dois jornalistas da Gazeta de Santos, escolhidos a dedo pelos militares, foram convidados a visitar a prisão flutuante. Elogiaram muito os comandantes pelas “ótimas condições carcerárias” e, na edição do dia seguinte do jornal, lembraram-se de uma única queixa dos prisioneiros: “Não existiam facas para cortar os bifes”, anotaram.

Caneta e metralhadora

Um jornalista subiu a bordo a contragosto: Nelson Gatto, repórter policial dos Diários Associados, penou ali 43 dias encarcerado. Sobreviveu para contar seu martírio em 1965 num livro – Navio Presídio – que ninguém leu. Foi apreendido pelo DOPS antes de alcançar as livrarias. A Justiça mandou liberar, a Aeronáutica mandou apreender de novo. No Superior Tribunal Militar (STM), Gatto ganhou por 10 a 0, com voto do ministro Olympio Mourão Filho, o general de Juiz de Fora que botou os tanques na rua em 31 de março.

O movimento militar desfechado em nome da santa hierarquia se convertera, naqueles dias agitados, num constrangedor foco de subversão: os oficiais-generais da suprema corte militar do país mandaram liberar o livro, um reles oficial da Aeronáutica fez exatamente o contrário.

O coronel-aviador Francisco Renato de Melo invadiu a gráfica, recolheu toda a edição e a jogou no mar. Escapou um único exemplar. O coronel da Aeronáutica justificou assim a truculência: “Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras”. Em 1967, cumprindo a maldição do capitão Bierrenbach, Gatto foi preso novamente para responder sobre o livro que nunca circulou.

Os defensores de Golbery, sem a ingenuidade do neto, lembram sempre o seu papel na distensão e na abertura do regime executadas pelos dois generais – Ernesto Geisel e João Figueiredo – que lhe deram o longo reinado de sete anos como poderoso ministro da Casa Civil, entre 1974 e 1981. É verdade. No entanto, indulgentes, esquecem-se de dizer que Golbery estava também na outra ponta do processo político, fechando o ciclo democrático em 1964 e inaugurando uma ditadura que sobreviveria 21 anos.

A diástole que descontraía o sistema, segundo seu cardíaco pensamento político, foi antecedida pela contração da sístole. O general que comandou a sístole de 1964 não conseguiu pilotar a diástole de 1984, que acelerou com a hipertensão popular das multidões nas praças e avenidas das Diretas-Já e terminou com o surto de Tancredo Neves em pleno Colégio Eleitoral. Os amigos não lembram, e o neto não diz, mas é sempre bom repetir que o candidato de vovô Golbery no colégio era Paulo Maluf, confirmando sua teimosa vocação para estar sempre do lado oposto aos interesses populares.

Príncipes do bruxo

O teórico da “doutrina da segurança nacional” instaurou, por ardis, aparatos e artimanhas, uma rotina de insegurança pessoal que sacramentou o medo e a delação num país intimidado pela repressão e assustado pela síndrome da intriga, do grampo, da denúncia. Essa inclinação para o mal, como já deve ter suspeitado o jovem Golbery Neto, reforça a tese de que o avô tinha forte inclinação por dois príncipes – o de Maquiavel e o de Lampedusa.

O ardiloso general tinha a consciência da fortuna, a idéia romana de sorte, definida pelo gênio florentino como algo inevitável, que pode levar alguém ao poder ou tirá-lo de lá. Como se sabe, uma obsessão muito golberyana. E, como o autor de O Leopardo, o generaltentava “tudo mudar para que tudo ficasse como está”. A desastrada campanha de Maluf no Colégio Eleitoral mostra que Golbery tentava “mudar para preservar”, dando uma sobrevida civil ao regime militar que definhou como a aristocracia siciliana do século 19 desenhada por Lampedusa.
Maluf, na cabeça de Golbery, era o meio que justificava – ou adiava – o fim.

Golbery Neto provavelmente era nascido em 1977, quando o vovô Golbery cometeu sua derradeira bruxaria bem sucedida, o “Pacote de Abril”. Como de hábito, contra o povo. Sob o comando do sacerdote Geisel, o feiticeiro e meia dúzia de áulicos cozinharam uma sulfúrica emenda constitucional e seis decretos leis que, em resumo, dissolviam a vontade popular, um estorvo permanente aos planos de Golbery.

Fecharam o Congresso para ruminar em paz seus feitiços, cancelaram a eleição direta de 1978 para governadores, inventaram um monstrengo sem voto (o senador-biônico), ampliaram para seis anos o mandato do sucessor de Geisel e aumentaram o peso de Estados menos populosos e politizados no Congresso Nacional.

Era Golbery, de novo, num surto de Lampedusa.

Mito na granja

Dois anos depois vovô Golbery recrudesceu, cada vez mais assustado com o crescimento do MDB, que pela força do voto emparedava a ARENA, a sigla da ditadura. Era preciso mudar o quadro partidário, implodindo a frente oposicionista, para que tudo ficasse como estava.
A ARENA virou PDS (o povo não esquece) e o MDB virou um caco, rachado entre cinco legendas: o PMDB de Ulysses, o PTB de Ivete Vargas, o PP de Tancredo Neves, o PDT de Leonel Brizola e o PT de Lula. A fortuna do mago florentino sorria para o bruxo riograndino. O marido de Ivete, Paulo Martins, trabalhava com Golbery no Gabinete Civil.
Ivete, que tinha o apoio de Golbery para arrebatar o PTB das mãos de Brizola, foi chamada em 1979 à Granja do Ipê, residência do general em Brasília, para ouvir este satânico raciocínio do feiticeiro:
– Precisamos trazer o Brizola de volta para o Brasil, porque ele está se tornando um mito muito forte fora do país. É melhor que ele volte e dispute eleição, porque assim perderá prestígio político.
O ex-deputado federal Sinval Boaventura, um radical arenista mineiro, foi lá na granja conferir a ideia com Golbery. O general ampliou sua tese, apostando num nome:
–A estratégia é estimular a imprensa para projetar Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula, um grande líder metalúrgico de São Paulo, uma liderança inteligente e expressiva. Ele precisa ser preparado para ser o anti-Brizola.
Todo esse prontuário de Golbery passou em branco pela grande imprensa, que não abriu espaço para a atrevida homenagem ensaiada em Rio Grande. Um historiador da terra, Chico Cougo, 24 anos, portanto bem mais jovem que o alienado prefeito de sua cidade, nasceu dois anos após a queda da ditadura. Nem por isso deixa de abastecer seu blogpara emitir seu juízo ferino sobre o conterrâneo general, alinhando textos inteligentes, devastadores numa série imperdível sobre “Golbery e a cidade surreal”.

Outra exceção à regra do silêncio é o jornalista e escritor Juremir Machado da Silva, que acaba de lançar o livro Vozes da Legalidade, tem programa na rádio Guaíba e coluna noCorreio do Povo, onde provocou:

“Rio Grande quer homenagear o ‘Rasputin’ nacional. Por que não uma estátua para os ministros militares que tentaram dar o golpe em 1961?… O mais incrível é que [o prefeito] Fábio Branco pertence ao PMDB, que se orgulha de ter combatido a ditadura… Resta uma hipótese radical: Branco quer expor Golbery às pombas da praça Tamandaré…”

A maior corrupção

Duas vozes expressivas da imprensa gaúcha discordam. Lasier Martins, âncora da RBS TV, o principal grupo de comunicação do sul, acha que a homenagem é parte da democracia. Indaga: “É tão difícil assim entender isso?”. É, é muito difícil entender, considerando que nenhuma democracia deve exaltar quem conspirou contra a democracia.

O experiente jornalista Érico Valduga, dono do Periscópio, um respeitado blog político do sul, acha que a homenagem “é uma questão local legítima” em que “a sociedade de Rio Grande preferiu ver no conterrâneo o governante que beneficiou a cidade com obras públicas importantes”.

Há dois graves problemas nesse raciocínio. A sociedade riograndina, pelo que se vê na pesquisa do jornal local, vê mais as malfeitorias nacionais do que as benfeitorias municipais, condenando como ilegítima a homenagem por maioria de quase 60%. A proposta ainda foi aprovada por menos da metade dos vereadores da Câmara, apenas seis em 13 representantes.

Valduga arrisca uma tese mais ousada para condenar os que se opõem ao louvor a Golbery: “É uma irresponsabilidade diversionista, que contribuirá para desfocar as lutas contra a corrupção”. O jornalista esquece que não há maior exemplo de corrupção do que um golpe que fecha o Parlamento, castra a vontade popular pelo veto ao voto, cassa mandatos políticos, censura, prende, tortura e mata, impondo ao país uma treva de 21 anos, consagrando a impunidade e estimulando a corrupção. Foi o louvado Golbery quem pensou esta irresponsabilidade que nos privou da democracia por duas décadas.

Nada mais diversionista.

O que espanta, de fato, não é a voz condescendente de alguns jornalistas, mas a afonia das principais lideranças do PMDB gaúcho, herdeiro do mais aguerrido e mais atingido MDB do país, que lutou e sangrou contra a ditadura gestada pelo general Golbery. O autor da proposta indecente é vereador do PMDB de Rio Grande, Renato Albuquerque, que viu seu PLV (projeto de lei de vereador) nº 93/2009 aprovado pela minoria da casa na sessão de 21 de dezembro de 2009. Cinco dos 13 vereadores estavam ausentes, só seis (menos da metade) aprovaram, contra dois votos.
O prefeito Fábio Branco, também do PMDB, apôs sua assinatura na lei nº 6.835 exatos dez dias depois, em 31 de dezembro, quando a cidade e o país, desatentos, só estão preocupados com o réveillon damadrugada. Cobrado pela homenagem ao general, o prefeito que veio ao mundo em 1972 evocou o calendário para se eximir de um juízo sobre a ditadura de 1964: “Eu não era nascido…”

Tributo à treva

Não se conhece nenhum juízo, qualquer manifestação pública ou privada das principais lideranças, dos nomes históricos do PMDB gaúcho – todos nascidos e crescidos bem antes das malfeitorias antidemocráticas de Golbery. O Congresso Nacional, três vezes fechado e pesadamente mutilado pelo golpe engendrado pelo general desde os idos de 1961, recebeu a decisão de Rio Grande com um atordoante silêncio. À esquerda e à direita, nenhum dos 513 deputados, nenhum dos 81 senadores emitiu uma palavra, um só discurso, um mísero aparte, a favor ou contra.
Do PMDB nacional não se podia esperar nada de mais. Afinal, o MDB velho de guerra que um dia foi comandado por gente como Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, Tancredo Neves, Alencar Furtado, Itamar Franco, Mário Covas, José Richa e Franco Montoro hoje é um PMDB rebaixado a gente como José Sarney (o último presidente do PDS, que o povo não esquece), Michel Temer, Renan Calheiros, Romero Jucá, Jáder Barbalho, Henrique Eduardo Alves, Newton Cardoso, por aí.

O alheamento do Parlamento a uma questão moralmente tão grave mostra o grau de desmemória a que se relegou a política brasileira, talvez o derradeiro legado do general Golbery para um país que não preza sua história e não consegue nem identificar os malfeitores da democracia.

O desastrado, debochado ensaio de louvor a Golbery do Couto e Silva no sul coincide com a criação de uma Comissão da Verdade em Brasília que, em tese, irá dissecar a obra mais monstruosa do general: a ditadura de 21 anos. Um país que se recusa a discutir um tributo infeliz ao mentor da mais longa escuridão da República pode estar, na prática, erigindo um mausoléu da decência, da justiça, da consciência política.

Golbery Neto, antes de se ofender com um simples artigo baseado na história, devia ler e estudar um pouco mais para entender a real dimensão de seu avô, um contumaz cérebro do arbítrio que deve ser conhecido, debatido e lembrado pelos brasileiros – jamais exaltado.

Afinal, se a omissão paralisa até a sociedade politicamente organizada, essa sanção moral ficará por conta dos pombos da praça Tamandaré.

* Luiz Cláudio Cunha é jornalista.