A jornalista grávida, torturada, e o deputado cínico, debochado

Luiz Cláudio Cunha*

A jornalista Míriam Leitão chorou ao telefone, em sua casa no Rio de Janeiro, e o repórter que a entrevistava desde Brasília, o autor deste texto, também. Era o encerramento de uma longa, emotiva conversa de mais de uma hora em uma noite do final de julho de 2014.

Um mês antes, Míriam tinha conduzido uma notável entrevista, no canal da GloboNews, com o então ministro da Defesa do Governo Dilma, o diplomata Celso Amorim [leia aqui].

Principal colunista de economia do jornal O Globo, uma das mais importantes profissionais de imprensa do país, Míriam acabara de me contar o que nem seus filhos jornalistas sabiam: os detalhes chocantes de sua prisão em um quartel do Exército em Vila Velha, no Espírito Santo, entre dezembro de 1972 e fevereiro de 1973, no auge das violências da ditadura do Governo Médici.

Míriam tinha 19 anos e estava grávida de um mês ao ser presa. Quando foi liberada, com uma barriga de quatro meses, a jovem que entrou no quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército com 50 kg estava pesando apenas 39 kg. Nesse período de pavor, levou chutes, tapas, pancadas que a fizeram sangrar, foi acuada por ferozes cães pastores e passou horas ali, nua, na companhia solitária e apavorante de uma cobra jiboia, de mais de dois metros e 50 kg, mais pesada do que ela. A cobra era o brinquedo de terror do seu dono, o Dr. Pablo, codinome do coronel Paulo Malhães, um dos homens mais temidos do DOI-CODI da rua Barão de Mesquita, o centro de torturas do QG do I Exército (hoje Comando Militar do Leste).

Ao ver a entrevista da repórter, sempre segura e firme, diante de um ministro inseguro e gaguejante, estranhei a instabilidade do entrevistado. Entendi, então, que ele, ao responder sobre torturas, sabia que estava diante de uma jornalista brasileira torturada no regime militar. Lembrei então que o nome de Míriam estava registrado, de forma discreta, na nota de pé da página 39 do livro Brasil: Nunca Mais – um resumo escrito por Ricardo Kotscho e Frei Betto, a partir do histórico projeto original de 12 volumes editado em 1985 pelo Conselho Mundial de Igrejas sobre os horrores da ditadura brasileira. Ali, no capítulo “Castigo Cruel, Desumano e Degradante”, estão registrados os depoimentos de oito presos políticos sob a rubrica “Insetos e Animais”. Míriam é autora do quarto depoimento, registrado no livro nº 674, volume 3, páginas 782v-783 do projeto Brasil: Nunca Mais, citada na transcrição parcial do auto de qualificação e interrogatório da jornalista, já com 20 anos, e identificada como Míriam de Almeida Leitão Netto. Suas palavras, no resumo seco da Auditoria Militar:

[…] que, apesar de estar grávida na ocasião e disto ter ciência os seus torturadores […] ficou vários dias sem qualquer alimentação;

[…] que as pessoas que procediam os interrogatórios, soltavam cães e cobras para cima da interrogada; […]

Ligando os fatos – Amorim e Dr. Pablo, a cobra e as torturas, Míriam e o Brasil: Nunca Mais –, percebi que faltava apenas o depoimento da repórter para relacionar o terror e mostrar o caráter truculento daqueles tempos. Na minha primeira tentativa, com a elegância habitual, Míriam procurou se esquivar, alegando que sua história pessoal não tinha importância. “Outros presos viveram coisas piores, muitos nem sobreviveram. Aquele foi meu inferno, mas não quero me vitimizar”.

Mês de convencimento

Insisti, mandei novos e-mails, argumentei que a sua história pessoal, justamente por ser quem era, dava uma nova dimensão e atualidade para descrever a violência que cometia o regime militar e seus sequazes. O fato de a vítima, nesse caso, ser uma jornalista nacionalmente conhecida, que atravessava o cotidiano dos brasileiros pela TV, pelo rádio, pelo jornal e pela internet, tornava ainda mais urgente e necessário o seu depoimento. Sagaz e inteligente, Míriam percebeu que eu tinha razão – e, aos poucos, foi cedendo à minha insistência. Até que topou falar, no longo telefonema que nos encharcou de emoção pelas verdades reveladas e pelas lembranças revividas.

Esse longo processo de convencimento levou quase um mês, complementado pelo envio de fotos de seu arquivo pessoal. Em 2011, quando se aproximou a instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que tanto desconforto provocou nos generais e seus subordinados, Míriam tratou de avivar sua memória. Sem contar nada ao marido e aos filhos, ela fez uma furtiva viagem de volta ao passado e ao inferno de sua juventude.

Saiu do Rio de Janeiro e uma hora depois desembarcou em Vitória. Pegou um carro, atravessou a Terceira Ponte, que liga a capital à cidade de Vila Velha, do outro lado da baía, e seguiu em direção a um dos principais pontos turísticos do Estado: o morro da Penha, uma elevação de 150 metros de onde se admira uma bela paisagem. No alto está o velho Convento da Penha, com uma história de 454 anos. Ao pé do morro está outro monumento: o Forte de Piratininga, ali plantado em meados do século 16.

O inferno de Míriam Leitão na ditadura: o belo forte do 38º Batalhão de Infantaria em Vila Velha (ES) | Foto: Exército

Míriam não fazia um repentino programa de turista. Era uma dorida viagem interior ao cenário dos piores momentos que a jornalista passou em sua vida. “Quando o país começou a discutir a criação da Comissão da Verdade, por volta de 2011, decidi voltar lá. Eu quis fazer minha viagem pessoal, um retorno particular à minha história”, explicou Míriam, no emocionado desabafo que fez pela primeira vez, quatro décadas após o inferno que amargou naquele cenário hoje encantador. Desde o final da Primeira Guerra Mundial, o forte lá embaixo abriga um batalhão de infantaria subordinado ao Comando Militar do Leste (antigo I Exército), no Rio de Janeiro. A construção mais antiga, redonda [na foto, no alto à esquerda], é o prédio histórico da Fortaleza São Francisco Xavier de Piratininga, reformado no século 17. Foi ali que a Míriam quase adolescente de 1972, uma menina grávida de 19 anos, desceu ao submundo da repressão desatinada que marcava o auge da violência do governo mais truculento da ditadura, o do general Emílio Garrastazú Médici.

O essencial da memória

Foi lá que Míriam enfrentou a danação de um nome que resumia como ninguém a truculência do regime: o coronel Paulo Malhães, o temido “Dr. Pablo” do DOI-CODI, e sua cobra. Ao ver meses depois na TV o velho torturador de 76 anos depondo para a Comissão da Verdade, Míriam chegou a duvidar que fosse o mesmo e fogoso oficial de 34 anos e cabeleira negra e farta que comandou seu interrogatório. Mas ela recordava bem que os outros militares o chamavam de “Dr. Pablo”, o codinome que Malhães usava no DOI-CODI.

Na sua volta ao passado, Míriam fez questão do isolamento: “Fui sozinha, não queria ninguém junto comigo. Era uma jornada só minha. Entrei e não precisei que ninguém me mostrasse o caminho. Era esquisito, não tenho bom senso de orientação, mas eu conhecia aquele quartel como a palma da minha mão. Percebi algumas reformas, paredes que não existem mais, escadas que mudaram de lugar, salas que foram modificadas. Não me permitiram ir a alguns lugares, mas o essencial estava na minha memória”, me contou Míriam, com o tremor na voz que traía os demônios que assombraram aquele lugar.

Míriam em 2011: na sala onde passou a noite de 1972 com a jiboia | Foto: Arquivo pessoal

Ela posou para fotos junto à porta da cela onde ficou um tempo, tiradas pelo motorista que a acompanhava. E conseguiu voltar à sala grande onde passou a madrugada de horror com a jiboia. “O lugar agora é um anfiteatro, mas eu fui direto ao ponto onde me mantiveram de pé, nua, durante horas, antes e durante o tempo em que fiquei com a cobra. É uma imagem que não sai da minha cabeça. Ali eu fiz essa foto”, explicou, abrindo pela primeira vez seu arquivo pessoal.

Míriam, em meio a tanto sofrimento, lembra de um paradoxo que vivia na época: “Minha cela ficava na fortaleza. Quando eu saía de lá à noite e era levada para outro local de tortura, eu a contornava e passava pela escadaria. Saía desse belo prédio circular, às margens da baía – e que hoje, por ironia, o Exército aluga para festas –, e era levada para a parte nova do quartel onde funcionavam algumas seções administrativas do quartel. Olhava aquele lugar lindo, lindo até hoje, o convento lá em cima, e pensava o quanto nada daquilo fazia sentido. Era uma beleza que contrastava com a violência daquele lugar. Eu não conseguia entender isso. Não entendia naquela época, não entendo até hoje”, dizia Míriam, a voz embargada pela emoção da memória.

Míriam: entre a beleza do cenário e o terror do quartel | Foto: Arquivo pessoal

Apesar de todo o drama humano contido no relato corajoso e inédito que Míriam Leitão fez ao OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA em agosto de 2014, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), fiel aos padrões debochados da família, resolveu apelar de novo para sua fracassada verve humorística.

Contestando um tuíte de Míriam, onde ela dizia que o maior erro da terceira via era tratar Lula e Bolsonaro como iguais, já que “Bolsonaro é inimigo confesso da democracia”, Eduardo respondeu no Twitter no domingo (3) com sua piadinha infeliz e debochada: “Ainda com pena da cobra…”

O deputado jocoso no Twitter: com o brilho particular do serpentário dos Bolsonaro

Sem pena do deputado, parlamentares do PSOL, PCdoB e PT entraram na segunda-feira (4) com uma ação no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados pedindo a cassação de Eduardo Bolsonaro por quebra do decoro parlamentar e apologia ao ato criminoso da tortura.

Neste momento é útil reler o depoimento inédito e comovente que Míriam Leitão – que completa 69 anos nesta quinta-feira (7) – deu ao OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, publicado na edição 812 de 19 de agosto de 2014. É provável, daí, que os leitores, sempre mais sérios e sensatos, fiquem com pena do deputado –e não da cobra.

Este é o depoimento de Míriam Leitão:

“Eu sozinha e nua. Eu e a cobra. Eu e o medo”

[Depoimento a Luiz Cláudio Cunha]

Míriam, ou Amélia: fotografada no dia da prisão, um domingo do final de 1972, quando ia para a praia. A ficha foi descoberta pelo repórter Matheus Leitão, seu filho, que a emoldurou e deu de presente à mãe | Foto: IPM/1º Exército

Eu morava numa favela de Vitória, o Morro da Fonte Grande. Num domingo, 3 de dezembro de 1972, eu e meu companheiro na época, Marcelo Netto, estudante de Medicina, acordamos cedo para ir à praia do Canto, próxima ao centro da capital. Acordei para ir à praia e acabei presa na Prainha. É o bairro que abriga o Forte de Piratininga, essa construção bonita do século 17. Ali está instalado o quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército, do outro lado da baía.

Eu tinha dado quatro plantões seguidos na redação da rádio Espírito Santo e já tinha quase um ano de profissão. Eu vestia uma camisa branca larga, de homem, sobre o biquini vermelho. Caminhando pela Rua Sete em direção à praia, alguém gritou de repente:

– Ei, Marcelo?

Nos viramos e vimos dois homens correndo em nossa direção com armas. Eu reconheci um rosto que vira em frente à Polícia Federal. Meu ônibus sempre passava em frente à sede da PF e eu tentava guardar os rostos.

– É a Polícia Federal – avisei ao Marcelo

Em instantes estávamos cercados. Apareceram mais homens, mais um carro. Voltei a perguntar:

– O que está acontecendo?

Eles nos algemaram e empurraram o Marcelo para o camburão. Era uma camionete Veraneio, sem identificação. Eu tive uma reação curiosa: antes que me empurrassem sentei no chão da calçada e comecei a gritar, a berrar como louca, queria chamar a atenção das pessoas na rua. Mas ainda era cedo, manhã de domingo, havia pouca gente circulando. Achava que quanto mais gente visse aquela cena, mais chances eu teria de sair viva. Como eu berrava, me puxaram pelos cabelos, me agarraram para me colocar no carro. Eu, ainda com aquela coisa de Justiça na cabeça, reclamei:

– Moço, cadê a ordem de prisão?

O homem botou a metralhadora no meu peito e respondeu com outra pergunta:

– Esta serve?

As algemas eram diferentes, eram de plástico, e estavam muito apertadas, doíam no pulso. Viajamos sem capuz, eu e Marcelo, em direção a Vila Velha, onde fica o quartel do Exército. Eu ainda achava que não era nada comigo, que o alvo era o Marcelo. Ele estava no quarto ano de Medicina e tinha acabado de liderar a única greve de estudantes do país daquele ano, que trancou por dois dias as aulas na universidade de Vitória e paralisou os trabalhos no Hospital de Clínicas. Achei que estava presa só porque estava indo à praia com o Marcelo.

A Veraneio entrou no pátio do quartel, o batalhão de infantaria. Nos levaram por um corredor e nos separaram. Marcelo foi viver seu inferno, que durou 13 meses, e eu o meu. Sobre mim jogaram cães pastores babando de raiva. Eles ficavam ainda mais enfurecidos quando os soldados gritavam: “Terrorista, terrorista!”. Pareciam treinados para ficar mais bravos quando eram incitados pela palavra maldita. De repente, os soldados que me cercavam começaram a cantar aquela música do Ataulfo Alves: “Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia é que era mulher de verdade”. Só então percebi que minha prisão não era um engano. “Amélia” era o codinome que o meu chefe de ala no PCdoB tinha escolhido pra mim: “Você, a partir de agora, vai se chamar Amélia”. Quis reagir na hora, afinal não tenho nada de Amélia, mas não quis discordar logo na primeira reunião com o dirigente.

O comandante do batalhão era o coronel Sequeira [tenente-coronel Geraldo Cândido Sequeira, que exerceu o comando do 38º BI entre 10 de março de 1971 a 13 de março de 1973], que fingia que mandava, mas não via nada do que acontecia por lá. O homem que de fato mandava naquele lugar, naquele tempo, era o capitão Guilherme, o único nome que se conhecia dele. Ele era o chefe do S-2, o setor de inteligência do batalhão. Todos os interrogatórios e torturas estavam sob a coordenação dele. Ele pessoalmente nada fazia, mas a ele tudo era comunicado. Nesse primeiro dia me deu um bofetão só porque eu o encarei.

– Nunca mais me olhe assim! – avisou.

Coronel Geraldo Sequeira, comandante do 38º Batalhão de Infantaria: “mandava, mas não via nada”

Fui levada para uma grande sala vazia, sem móveis, com as janelas cobertas por um plástico preto. Com a luz acesa na sala, vi um pequeno palco elevado, onde me colocaram de pé e me mandaram não recostar na parede. Chegaram três homens à paisana, um com muito cabelo, preto e liso, um outro ruivo e um descendente de japonês. Mandaram eu tirar a roupa. Uma peça a cada cinco minutos. Tirei o chinelo. O de cabelo preto me bateu:

– A roupa! Tire toda a roupa.

Fui tirando, constrangida, cada peça. Quando estava nua, eles mandaram entrar uns 10 soldados na sala. Eu tentava esconder minha nudez com as mãos. O homem de cabelo preto falou:

– Posso dizer a todos eles para irem pra cima de você, menina. E aqui não tem volta. Quando começamos, vamos até o fim.

Os soldados ficaram me olhando e os três homens à paisana gritavam, ameaçando me atacar, um clima de estupro iminente. O tempo nessas horas é relativo, não sei quanto tempo durou essa primeira ameaça. Viriam outras.

Eles saíram e o homem de cabelo preto, que alguém chamou de Dr. Pablo, voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes que eu a visse direito apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a cobra. Eu não conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a cobra estava lá. A única coisa que lembrei naquele momento de pavor é que cobra é atraída pelo movimento. Então, fiquei estática, silenciosa, mal respirando, tremendo. Era dezembro, um verão quente em Vitória, mas eu tremia toda. Não era de frio. Era um tremor que vem de dentro. Ainda agora, quando falo nisso, o tremor volta. Tinha medo da cobra que não via, mas que era minha única companhia naquela sala sinistra. A escuridão, o longo tempo de espera, ficar de pé sem recostar em nada, tudo aumentava o sofrimento. Meu corpo doía.

Não sei quanto tempo durou esta agonia. Foram horas. Eu não tinha noção de dia ou noite na sala escurecida pelo plástico preto. E eu ali, sozinha, nua. Só eu e a cobra. Eu e o medo. O medo era ainda maior porque não via nada, mas sabia que a cobra estava ali, por perto. Não sabia se estava se movendo, se estava parada. Eu não ouvia nada, não via nada. Não era possível nem chorar, poderia atrair a cobra. Passei o resto da vida lembrando dessa sala de um quartel do Exército brasileiro. Lembro que quando aqueles três homens voltaram, davam gargalhadas, riam da situação. Eu pensava que era só sadismo. Não sabia que na tortura brasileira havia uma cobra, uma jiboia usada para aterrorizar e que além de tudo tinha o apelido de Míriam. Nem sei se era a mesma. Se era, talvez fosse esse o motivo de tanto riso. Míriam e Míriam, juntas na mesma sala. Essa era a graça, imagino.

Gargalhadas do “Dr.Pablo”, o dono de Míriam: a graça era a jiboia do DOI-CODI com sua xará em Vila Velha

Dr. Pablo voltou, depois, com os outros dois, e me encheu de perguntas. As de sempre: o que eu fazia, quem conhecia. Me davam tapas, chutes, puxavam pelo cabelo, bateram com minha cabeça na parede. Eu sangrava na nuca, o sangue molhou meu cabelo. Ninguém tratou de minha ferida, não me deram nenhum alimento naquele dia, exceto um copo de suco de laranja que, com a forte bofetada do capitão Guilherme, eu deixei cair no chão. Não recebi um único telefonema, não vi nenhum advogado, ninguém sabia o que tinha acontecido comigo, eu não sabia se as pessoas tinham ideia do meu desaparecimento. Só três dias após minha prisão é que meu pai recebeu, em Caratinga, um telefonema anônimo de uma mulher dizendo que eu tinha sido presa. Ele procurou muito e só conseguiu me localizar no fim daquele dezembro. Havia outros presos no quartel, mas só ao final de três semanas fui colocada na cela com a outras presas: Ângela, Badora, Beth, Magdalena, estudantes, como eu.

Fiquei 48 horas sem comer. Eu entrei no quartel com 50 kg de peso, saí três meses depois pesando 39 kg. Eu cheguei lá com um mês de gravidez, e tinha enormes chances de perder meu bebê. Foi o que médico me disse, quando saí de lá, com quatro meses de gestação. Eu estava deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol. Nada que uma mulher deve ser para proteger seu bebê na barriga. Se meu filho sobrevivesse, teria sequelas, me disse o médico.

– A má notícia eu já sei, doutor, vou procurar logo um médico que me diga o que fazer para aumentar as chances do meu filho.

Mas isso foi ao sair. Lá dentro achei que não havia chance alguma para nós. Eu era levada de uma sala para outra, numa área administrativa do quartel, onde passava por outras sessões de perguntas, sempre as mesmas, tudo aos gritos, para manter o clima de terror, de intimidação. Na noite seguinte, atravessei a madrugada com uma sessão de interrogatório pesado, o Dr. Pablo e os outros dois berrando, me ameaçando de estupro, dizendo que iam me matar. Um dia achei que iria morrer. Entraram no meio da noite na cela do forte para onde eu fui levada após esses dois dias. Falaram que seria o último passeio e me levaram para um lugar escuro, no pátio do quartel, para simular um fuzilamento. Vi minha sombra refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei: “Eu sou muito nova para morrer. Quero viver”.

Um dia, um outro militar, que não era nenhum daqueles três, botou um revólver na minha cabeça e falou: “Eu posso te matar”. E forçou aquele cano frio na minha testa. Me deu um sentimento enorme de solidão, de abandono. Eu me senti absolutamente só no mundo. Pela falta de notícias, imaginava que o Marcelo estava morto. Entendi que iria morrer também e que ninguém saberia da minha morte, pensei. Mas não quis demonstrar medo. Lembro que o homem do revólver tinha olhos azuis. Olhei nos seus olhos e respondi: “Sim, você pode pode me matar”. E repeti, falando ainda mais alto, com ar de desafio: “Sim, você pode!”

Um dos interrogatórios foi feito na sala do capitão Guilherme, o S-2 que mandava em todos ali. Era noite, ele não estava, e me interrogaram na sala dele. Lembro dela porque havia na parede um quadro com a imagem do Duque de Caxias. Estava ainda com o biquíni e a camisa, era a única roupa que eu tinha, que me protegia. Nessa noite, na sala, de novo fui desnudada e os homens passaram o tempo todo me alisando, me apalpando, me bolinando, brincando comigo. Um deles me obrigou a deitar com ele no sofá. Não chegaram a consumar nada, mas estavam no limite do estupro, divertindo-se com tudo aquilo.

Eu estava com um mês de gravidez, e disse isso a eles. Não adiantou. Ignoraram a revelação e minha condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro. Minha cabeça doía, com a pancada na parede, e o sangue coagulado na nuca incomodava. Eu não podia me lavar, não tinha nem roupa para trocar. Quando pensava em descansar e dormir um pouco, à noite, o lugar onde estava de repente era invadido, aos gritos, com um bando de pastores alemães latindo na minha cara. Não mordiam, mas pareciam que iam me estraçalhar, se escapassem da coleira. E, para enfurecer ainda mais os cães, os soldados gritavam a palavra que enlouquecia a cachorrada: “Terrorista, terrorista! …”

As primeiras três semanas que passei lá foram terríveis. Só melhorou quando o Dr. Pablo e seus dois companheiros foram embora. Entendi então que eles não pertenciam ao quartel de Vila Velha. Tinham vindo do Rio, é o que chegaram a conversar entre eles, em papos casuais: “E aí, quando voltarmos ao Rio, o que a gente vai fazer lá…” Isso fazia sentido, porque o quartel de Vila Velha integra o Comando do I Exército, hoje Comando do Leste, que tem o QG no Rio de Janeiro.

Quando o trio voltou para o Rio, a situação ficou menos ruim. Eles já não tinham mais nada para perguntar. Me tiraram da cela da fortaleza e me levaram para a cela coletiva. Foi melhor. Na cela do forte não havia janelas, a porta era inteiriça e minhas companhias eram apenas as baratas. Fiz uma foto minha, agora em 2011, ao lado da porta.

Míriam em 2011 na porta da cela de 1972: baratas | Foto: Arquivo pessoal

Até que chegou o dia de assinar a confissão, para dar início ao IPM, o inquérito policial-militar que acontecia lá mesmo, dentro do quartel. Me levaram para a sala do capitão Guilherme, o S-2, e levei um susto. Lá estava o Marcelo, que eu pensava estar morto. Os militares saíram da sala e nos deixaram sozinhos. Quando eu fui falar alguma coisa, o Marcelo me fez um sinal para ficar calada. Ele levantou, foi até a parede e levantou o quadro do Duque de Caxias. Estava cheio de fios e microfones lá atrás. Era tudo grampo.

Depois disso, o Marcelo foi levado para o Regimento Sampaio, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, e lá ficou nove meses numa solitária. Sem banho de sol, sem nada para ler, sem ninguém para conversar. Foi colocado lá para enlouquecer. Nove longos e solitários meses… Nós, todos os presos e os que já estavam soltos, nos encontramos mais ou menos em junho na 2ª Auditoria da Aeronáutica, para o que eles chamam de ‘sumário de culpa’, o único momento em que o réu fala. Eu com uma barriga de sete meses de gravidez. O processo, que envolvia 28 pessoas, a maioria garotos da nossa idade, nos acusava de tentativa de organizar o PCdoB no estado, de aliciamento de estudantes, de panfletagem e pichações. Ao fim, eu e a maioria fomos absolvidos. O Marcelo foi condenado a um ano de cadeia. Nunca pedi indenização, nem Marcelo. Gostaria de ouvir um pedido de desculpas, porque isso me daria confiança de que meus netos não viverão o que eu vivi. É preciso reconhecer o erro para não repeti-lo. As Forças Armadas nunca reconheceram o que fizeram.

Nunca mais vi o capitão Guilherme, o S-2 que comandou tudo aquilo. Uma vez ele apareceu no Superior Tribunal Militar como assessor de um ministro. Marcelo foi expulso do curso de Medicina, após a prisão, e virou jornalista. Fomos para Brasília em 1977. Por ironia do destino, Marcelo só conseguiu vaga de repórter para cobrir os tribunais. E lá no STM, um dia, ele reviu o capitão Guilherme. Depois disso, não soubemos mais dele. Nem sei se o S-2 ainda está vivo.

O que eu sei é que mantive a promessa que me fiz, naquela noite em que vi minha sombra projetada na parede, antes do fuzilamento simulado. Eu sabia que era muito nova para morrer. Sei que outros presos viveram coisas piores e nem acho minha história importante. Mas foi o meu inferno. Tive sorte comparado a tantos outros.

Sobrevivi e meu filho Vladimir nasceu em agosto forte e saudável, sem qualquer sequela. Ele me deu duas netas, Manuela (3 anos) e Isabel (1). Do meu filho caçula, Matheus, ganhei outros dois netos, Mariana (8) e Daniel (4). Eles são o meu maior patrimônio.

Minha vingança foi sobreviver e vencer. Por meus filhos e netos, ainda aguardo um pedido de desculpas das Forças Armadas. Não cultivo nenhum ódio. Não sinto nada disso. Mas, esse gesto me daria segurança no futuro democrático do país.

 * jornalista, foi consultor do GT Operação Condor na Comissão Nacional da Verdade e escreveu Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008). cunha.luizclaudio@gmail.com

 

RS ocupa o 4º lugar no “ranking do ódio”

Por Tiago Lobo

Durante três meses – de abril a junho de 2016 – o Comunica Que Muda (CQM), uma iniciativa da agência de publicidade nova/sb, monitorou dez tipos de intolerância nas redes sociais e lançou um dossiê. Foram analisadas 542.781 menções. Nos dez temas pesquisados, o percentual de abordagens negativas estava acima de 84%. A negatividade nos temas que tratam de racismo e política era de 97,6% e 97,4%, respectivamente.

A intolerância de maior audiência na época era a política (quase 274 mil menções), mais de três vezes superior à misoginia, que aparece em segundo lugar, com quase 80 mil menções. Vale lembrar que o país recém passara pelo processo de Impeachment da ex-presidente Dilma Roussef.

A quantidade em números absolutos colocava o Rio Grande do Sul em 4º lugar com 14.479 menções. Analisando a proporcionalidade em relação à sua população, que era de 11.247.972 segundo dados do IBGE de 2015, o estado gaúcho desce 2 posições, ficando em 6º mais intolerante na internet.

Imagine que o Facebook recebe, por dia, cerca de 1 milhão de denúncias de postagens de ódio ou conteúdo ilegal. Devido ao aumento dos casos, em fevereiro de 2016 ele inaugurou no Brasil a Central de Prevenção ao Bullying, que já existia em outros 50 países. Em maio do mesmo ano as gigantes Microsoft, Google, Twitter e Facebook assinaram um documento elaborado pela União Europeia para que o discurso de ódio fosse controlado com mais eficiência.

Desde 2006  A ONG SaferNet Brasil*, mantém um canal para receber denúncias relacionadas a crimes de ódio online. Já foram mais de 2 milhões de casos reportados. 28% são sobre racismo e 69% das vítimas que procuram ajuda são mulheres. E estes dados são apenas de uma iniciativa que monitora a surface web, a camada que todos nós navegamos.

De acordo com dados da ONG, entre 2010 e 2013 houve um aumento de mais de 200% no número de denúncias contra páginas que divulgaram conteúdos racistas, misóginos, homofóbicos, xenofóbicos, neonazistas, de intolerância religiosa, entre outras formas de discriminação contra minorias em geral.

“De maneira geral, o discurso de ódio costuma ser definido como manifestações que atacam e incitam ódio contra determinados grupos sociais baseadas em raça, etnia, gênero, orientação sexual, religiosa ou origem nacional”, diz o site da SaferNet Brasil.

Protegidas, pelo suposto anonimato, pessoas se sentem seguras para ofender, atacar, criar boatos e propagar preconceitos contra minorias. Isso é cyberbullying. Um crime. Mas como diria o escritor italiano Umberto Eco ao receber um título de doutor honoris causa em comunicação e cultura na Universidade de Turim, em junho de 2015, “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. Em alguma medida ele pode ter razão.

*Caso encontre imagens, vídeos, textos, músicas ou qualquer tipo de material que seja atentatório aos Direitos Humanos, faça a sua denúncia aqui.

Acompanhe as reportagens da série:

Repressão aos crimes virtuais desafia polícia gaúcha

Por Tiago Lobo

Ameaças inspiradas no atentado de Suzano pegaram as forças policiais do RS de surpresa. Desde junho de 2010, com a criação da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI), foi a primeira vez que a Polícia Civil Gaúcha teve que investigar possíveis tiroteios em massa no Estado. Com falta de efetivo e investimento em tecnologia, a Civil conseguiu reagir antes que o pior acontecesse.

Com aproximadamente 500 procedimentos abertos, entre inquéritos e termos circunstanciados, a pasta comandada a pouco mais de um mês pelo Delegado André Anicet, conta apenas com quatro policiais entre inspetores e escrivães. Apenas um deles possui formação em área relacionada: sistemas de informação.

A DRCI atua a partir de denúncias. Entre os principais casos estão golpes na internet (estelionato) e extorsão sexual – quando uma pessoa é chantageada por alguém de posse de fotos nuas, por exemplo.

As ameaças pelo estado vieram à tona a partir da repercussão de Suzano. Até então, segundo o delegado e o inspetor Amaral, que está há 3 anos na delegacia, ameaças de tiroteios em escolas não eram uma realidade no RS.

A escalada começou a partir do alerta à Rede Marista. A maioria das ameaças partiram de adolescentes passando trotes. A polícia segue recebendo e apurando denúncias, mas o volume vem caindo.

Os autores podem responder por apologia ao crime, ameaça, associação criminosa e até responder por ato terrorista. Mobilizar forças de segurança a partir de um mero trote e provocar alarde e pânico na sociedade também é crime.

O delegado revela, com certa cautela, que de todas as denúncias recebidas até agora, duas eram potencialmente mais preocupantes. Anicet ressalta que mensurar potencial é difícil, mas nestes dois casos os autores teriam meios para perpetrar um ataque – ambos já foram identificados e detidos.

“O caso do colégio Marista foi uma mera ameça, uma Fake News”, revela o delegado.

A apuração de crimes praticados na internet começa com algumas técnicas específicas de coleta de dados e informações. Em dado momento do inquérito ela se torna um trabalho de investigação tradicional.

Atualmente o próprio delegado pode solicitar à plataformas como Facebook, Twitter e outras redes sociais, assim como empresas de telefonia, dados cadastrais de um suspeito. Informações mais detalhadas que permitam o rastreio do endereço de IP de um computador, por exemplo, ainda requerem ordem judicial. O que é visto como um entrave em casos urgentes.

Apesar do efetivo reduzido, a DRCI não age sozinha. Além das delegacias locais da Polícia Civil que atuam nas investigações, ela conta com relatórios do Gabinete de Inteligência Estratégica e da Secretaria de Segurança Pública para fazer cruzamentos de dados e estabelecer, por exemplo, se as ameaças às escolas do estado possuem alguma conexão entre si.

Investigações em andamento, mas pelo tom do delegado não parece ser o caso.

A Polícia Civil do RS ainda não possui tecnologia para rastrear usuários na Deep Web, como no fórum Dogolachan, de onde já partiram algumas ameaças, por isso as investigações contam com a ajuda da população. Denúncias levam aos autores.

Apesar disso o Delegado ressalta que, ao contrário da crença popular, “não é verdade que a Deep Web é irrastreável. Não temos estrutura pra isso no momento, mas é possível”.

O WhatsApp, por exemplo, também não é invisível ao monitoramento da polícia. Ela não pode acessar o conteúdo de trocas de mensagens por conta da criptografia da ferramenta, mas consegue saber quem e quando um suspeito se comunicou com outro pelo aplicativo.

“Acredito que o futuro da criminalidade é digital”, afirma o delegado. Pelo visto o da investigação também: o inspetor Amaral, por exemplo, conta que pediu para integrar a DRCI após alguns anos na Homicídios. Ele realizou uma capacitação via Ministério da Justiça para operação de um software desenvolvido pela polícia Canadense para rastrear conteúdo pedófilo na surface (a internet que todos nós navegamos) e Deep Web.

O caso de maior repercussão nos últimos três anos da pasta foi gerado por desinformação:  “A Baleia azul se tornou potencialmente ofensiva por causa da mídia”, opina o Inspetor.

A exposição da imprensa levou o DRCI a instaurar um inquérito para investigar se havia organização criminosa nesse caso. Suspeitos foram monitorados, identificados e apurou-se que não havia crime.

O “jogo da Baleia Azul” foi um boato que chegou ao Brasil em 2017, com a ideia de que levaria crianças a cometerem suicídio, o que supostamente já havia acontecido na Rússia.

Mas fique tranquilo: tudo não passou de um boato que a imprensa repercutiu sem apurar devidamente. Em audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, o presidente da ONG Safernet, Thiago Tavarez, esclareceu que “essa notícia falsa que nasceu na Rússia e chegou ao Brasil de forma sensacionalista e alarmista acabou servindo de gatilho para um efeito de imitação”. Com a “Boneca Momo” (google it) não foi diferente.

Se apenas cinco servidores compõem uma das delegacias mais importantes em um momento de repercussão de tiroteios em massa planejados e incentivados pela Deep Web, o inspetor Amaral relata a sua surpresa ao se deparar com a estrutura da delegacia da mesma pasta no Rio de Janeiro, capital. 30 policiais, plantão 24h, atendimento especializado e estrutura qualificada.

“Eles estão anos-luz na nossa frente”, afirma Amaral.

Além de conduzir investigações, a delegacia ainda presta atendimento ao público: mas nem todas as pessoas que visitam a delegacia são vítimas ou deveriam estar lá… Muitas vezes não há crime: “Qual a legislação aplicável para lançar um site?”, “como deixar meu site seguro?”, “celulares que falam sozinhos” e etc despendem um tempo dos policiais para assuntos que não são trabalho de polícia.

Pergunto aos dois: com o atual efetivo da delegacia de repressão a crimes informáticos é possível dar conta? Eles não hesitam e despejam um “não” com certa frustração.

“Acho que o maior investimento em termos de Polícia e repressão deveria ser em tecnologia e pessoal. O caso Marielle, por exemplo, foi praticamente uma investigação cibernética”, defende o delegado. “Esperamos ter mais gente agora com um novo concurso. A equipe é pequena”.

“Há motivo para pânico?”, pergunto: “as pessoas tem que ter o cuidado de sempre e se suspeitarem de alguma coisa denunciarem”, é a recomendação do delegado Anicet.
Denuncia de ameaças de tiroteios em massa podem ser feitas pelo telefone 08005102828

Golbery: neto fez 102 votos, mas avô está mais vivo do que nunca

O reproduz abaixo artigo do jornalista Luiz Cláudio Cunha publicado originalmente no Observatório de Imprensa, em 2011. Antes, reportagem de Evandro Éboli, de O Globo, que entrevistou o candidato Golbery Neto sobre sua votação inexpressiva nas últimas eleições.

Impulsionado pela imagem negativa dos políticos e no contato diário com as demandas da população fluminense, Golbery do Couto e Silva Neto, de 41 anos, justificou assim sua entrada na política. Ele foi candidato a deputado estadual no Rio, pelo Democratas, o DEM, em outubro. Seu desempenho nas urnas, porém, deixou a desejar. Ele obteve apenas 102 votos e, entre os 1.846 postulantes a uma das vagas, terminou em 1.430º lugar. Neto do general Golbery do Couto e Silva, criador do Serviço Nacional de Informações (SNI) e considerado o ideólogo da doutrina de segurança nacional, Golbery Neto colou a imagem do avô na sua campanha eleitoral. Não aleatoriamente, escolheu como número de campanha 25.064. O 64 não está ali à toa.

— A escolha do número foi uma alusão ao que ocorreu a partir de 1964. Acho esta história bastante deturpada — explicou Golbery Neto.

No seu material de campanha, além do número com o qual concorreu, há uma foto sua e outro do avô. Seu slogan para conquistar os eleitores foi: “Para retomar os rumos do progresso”. Neto justifica a escolha do DEM para se lançar na política.

— Meu avô fez parte dos quadros do PDS. Por uma questão de coerência política me filiei ao DEM. Poderia ser o PP.

O candidato atribui sua baixa votação a questões burocráticas —a candidatura “demorou para se consolidar” — e à falta de doações (“não houve campanha efetivamente”). E reconhece:
— Estes fatos mostram o motivo do resultado da votação, que ficou longe de ser expressivo — disse.

Golbery Neto, que é filho de Golbery do Couto e Silva Júnior, já falecido, rejeita atribuir sua baixa votação à associação de seu nome com os fatos de 64 e o papel de seu avô no regime militar.

— Objetivamente, não tem relação. O deputado federal mais votado do Rio foi o Jair Bolsonaro (PP), que defende visceralmente tudo que se relacione com aquele episódio. Menos a abertura.
Para confrontar a versão de que Golbery do Couto e Silva foi o “mentor do golpe de 64”, o neto prepara um livro em defesa do legado do avô.

— Golbery, e parte dos militares com o qual trabalhava, queriam esperar o fim do governo de João Goulart para que novas eleições fossem procedidas… O país estava em pânico com a administração inconstante do senhor João Goulart — disse Golbery Neto, que é formado em Ciências Sociais e Relações Internacionais. Ele trabalha numa empresa de importação e exportação.
Ter exatamente o mesmo nome do avô já lhe causou dissabores no dia a dia. Mas ressalta que ouve críticas e elogios.

— Acho natural que isso ocorra. Nos tempos de universidade era mais intenso. Um ambiente acadêmico sempre aponta para um embate ideológico mais acirrado. Rapidamente percebi que a melhor resposta que poderia dar naquela situação era o trabalho. Alcançando boas notas passei a ser respeitado pelos professores e por meu colegas. Mas, na maior parte, sempre vi meu avô ser tratado como um dos homens mais sérios, cultos, honestos e competentes do país. (Evandro Éboli, em O Globo)

Jornalista revela quem foi Golbery

Luiz Cláudio Cunha*
“Me sinto extremamente ofendido, com o artigo do Sr. Luiz Cláudio Cunha. Em parte pela infantilidade que entorta os fatos rumo ao que se deseja, ou seja: Demagogia. Em parte pela covardia de ofender o caráter de quem já não pode mais defender-se. Obrigado. (Golbery do Couto e Silva Neto, e-mail ao Observatório da Imprensa, 9/9/2011)

General Golbery, em 1980
General Golbery, em 1980

O sr. Golbery Neto, compreensivelmente, não gostou do que foi publicado neste Observatório (ver “Golbery: benfeitor em Rio Grande, malfeitor no Brasil“) sobre o avô. Gastou quatro linhas e 44 palavras, sem nenhum argumento, para tentar desqualificar um texto de 221 linhas e 2.552 palavras calcado em fatos e na ficha do general gaúcho, inventor do golpe de 1964 e prestes a ser homenageado com um monumento em sua terra natal, Rio Grande.

Quase nada se sabe do neto, que diz residir no Rio de Janeiro e se identifica profissionalmente como ‘internacionalista’, seja lá o que isso possa significar. Mas muito se sabe do avô, que, aliás, sabia muito mais. Sabia quase tudo sobre todos nós, como criador e chefe primeiro do SNI, o Serviço Nacional de Informações que bisbilhotava a vida dos brasileiros em geral, e dos opositores em particular. A vida pregressa de Golbery do Couto e Silva (1911-1987) ganhou súbita atualidade em agosto passado, com a desastrada ideia dos vereadores e do prefeito de Rio Grande (RS) de homenagear o general no mês do centenário de seu nascimento, cravando um monumento na praça central da cidade.

A oferenda sangrou como uma estaca na memória dos brasileiros, especialmente dos gaúchos, que justamente nesse agosto festejavam o cinquentenário da Campanha da Legalidade – o movimento popular de 1961 liderado pelo governador Leonel Brizola em defesa da posse de João Goulart na presidência da República, vaga com a renúncia inesperada de Jânio Quadros.

A transição constitucional foi vetada pelos três ministros militares que leram um manifesto golpista redigido, ironicamente, pelo então coronel Golbery do Couto e Silva. Essa brutal contradição entre as poucas benfeitorias municipais e as muitas malfeitorias nacionais do general teve baixa repercussão na imprensa – com exceção de alguns blogs e opiniões isoladas, contra ou a favor – e nenhum eco entre os políticos brasileiros, desconectados com a coerência histórica e descomprometidos com a memória nacional.

O jovem prefeito de Rio Grande, Fábio Branco, de 39 anos, nem justificou a homenagem intempestiva: “Não vou fazer juízo da ditadura militar. Eu nem era nascido…”. O neto do general, talvez ainda mais jovem, também evita qualquer consideração sobre a obra política do avô, sob o infantil argumento de que seria “covarde” avaliar a biografia dos mortos. Sob este prisma obtuso, prefeito e neto se eximem, portanto, de julgar episódios como a escravidão e o nazismo ou de opinar sobre personalidades já finadas como Hitler, Stálin, Pinochet ou Médici.

Imprensa complacente
Esta omissão deliberada não contaminou os cidadãos mais conscientes, de Rio Grande ou não. Uma pesquisa online do jornal local, o Agora, mostrou que mais da metade (58,5%) da população discorda do monumento. Um abaixo-assinado na internetregistra mais de 1.600 assinaturas de todo o país condenando a homenagem. Indignados, movimentos de sindicatos, estudantes e populares de Rio Grande formaram uma Comissão “Ditadura Nunca Mais” e, na semana passada, entregaram às autoridades locais dois livros do jornalista Elio Gaspari: A Ditadura Escancarada foi ofertadaao prefeito sem juízo e A Ditadura Derrotada foi agraciada aos vereadores sem tino.

Nas duas obras, parte de uma magistral tetralogia de 2002 – portanto escrita quando o general, morto em 1987, já não podia mais se defender, para desencanto do neto – o feiticeiro Golbery refulge merecidamente como personagem central, dividindo a cena com o sacerdote Ernesto Geisel.

A mesma imprensa complacente de hoje com o passado tenebroso do general lembra muito a imprensa conivente de ontem com o general golpista de sempre. Golbery carrega na sua ficha a proeza de ter derrubado Jango duas vezes do poder. A primeira, em 1954, quando redigiu o manifesto de 82 coronéis e tenentes-coronéis que levou à demissão de João Goulart, então ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, criticado pelos militares pelo aumento de 100% do salário mínimo.

A segunda, dez anos mais tarde, quando depôs Jango da presidência da República no golpe vitorioso de 1964, resultado final de uma científica, pensada e cara conspiração civil-militar que juntou o grande empresariado nacional e multinacional com a direita dos quartéis sob a fachada do dissimulado IPES, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. O coordenador do IPES, que deu em 1964 o troco no golpe frustrado em 1961 pela brava resistência dos seus conterrâneos gaúchos, era o incorrigível Golbery.

Seria útil que o jovem neto de Golbery aprendesse sobre os fatos da tortuosa carreira do avô lendo um livro, pelo menos um livro, o clássico1964: a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe (Editora Vozes, 1981), do professor uruguaio René Armand Dreifuss (1945-2003).

Ali, em 814 páginas irrespondíveis, Dreifuss desentorta os fatos para revelar ao neto distraído, com documentos do próprio IPES, a lenta, gradual e segura conspirata do vovô Golbery para derrocar um governo democrático e botar no seu lugar uma ditadura de 21 anos sob o rodízio de cinco generais-presidentes – três deles (Castelo Branco, Geisel e Figueiredo) tendo o próprio Golbery como inquilino e feiticeiro-mor no Palácio do Planalto.

O IPES nasceu em novembro de 1961, três meses após a vitória popular da Legalidade – quando nem o prefeito de Rio Grande, nem o neto do general, haviam nascido. Parecia um inocente clube de homens de negócios. Entretanto, na sua face oculta, sob siglas e codinomes, o IPES concentrava a execução metódica de um pensado plano da burguesia nacional para combater de forma clandestina os seus três principais inimigos: o governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e o comunismo, que aparentemente resumia tudo aquilo.

O braço político ostensivo do IPES de Golbery era o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apesar do nome tinha ligações com o MAC, Movimento Anticomunista, e com a organização da direita católica Opus Dei. O fundador do IBAD em 1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, uma agência de publicidade que promovia o lobby do IBAD e seu braço parlamentar, a ADP – Ação Democrática Popular, um núcleo conservador de 160 parlamentares da centro-direita no Congresso Nacional reunido em torno da UDN, PSD e PSP. Segundo Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela estação no Rio de Janeiro da CIA, a agência de inteligência americana focada em campanhas políticas e grupos de pressão.
Assalto sincronizado

Homens da mesma linha de pensamento e com igual propósito juntaram, a partir de 1962, as duas entidades: nascia o complexo IPES/IBAD, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que sustentou o regime militar. O IPES operava como centro estratégico e o IBAD, como uma unidade tática. O monstro crescia junto com a conspiração. Em 1963, os 80 membros originais do IPES pularam para 500. Eram sócios 26 dos 36 líderes da FIESP, a maior federação industrial do país. A entidade se espalhava pelas capitais do país.

A articulação dos empresários com os militares era feita pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC) do IPES, comandado pelo general Golbery, que atuava sobre o I (Rio) e III (Porto Alegre) Exércitos. A “ordem de serviço com calendário” do GLC, que definia a estratégia de ação, tinha uma edição limitada de 12 exemplares, que não eram registrados nas atas do IPES. A equipe de Golbery distribuía nos quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem citação da fonte, avaliando a atividade “comunista” no país, apontando o dedo para subversivos infiltrados no governo e mapeando suas ações.

Só no Rio de Janeiro o clandestino GLC de Golbery tinha três mil telefones ilegalmente grampeados. O grupo dirigente do general ocupava quatro das 13 salas que o IPES havia alugado no 27° andar do edifício Avenida Central, na Avenida Rio Branco, então o prédio mais moderno no centro da cidade. A conta do telefone era faturada em nome do general da reserva Henrique Geisel, irmão de Ernesto, futuro sacerdote no Planalto.

O GLC do vovô Golbery escrutinava a produção diária da imprensa do país, um total de 14 mil edições no ano, e produzia mensalmente cerca de 500 artigos, disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras. O Grupo de Atuação Parlamentar (GAP) do IPES tinha vergonha do que fazia. Proibia qualquer menção à sigla, que era camuflada como “Escritório de Brasília”. Ele coordenava a campanha anti-Jango na capital, mas quem aparecia publicamente era o IBAD e o fazendeiro baiano João Mendes, deputado udenista e líder ostensivo da Ação Democrática Parlamentar.

O plano era simples e mortal: o IPES de Golbery, por intermédio do IBAD e da ADP, emparedava o governo no Congresso, criando um beco sem saída parlamentar e um ponto morto do Executivo. A inércia legislativa levaria ao clamor popular pelo poder “moderador” das Forças Armadas, única instituição capaz de tirar o país daquele atoleiro fabricado pela conspiração urdida pelo general no Parlamento.

Neste trabalho era fundamental manipular a opinião da sociedade. Na dura expressão de René Dreifuss, “o IPES conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública” pela relação especial com os principais veículos da mídia nacional. O objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do IPES era disseminar seus objetivos na imprensa falada e escrita.

Dissimulado, o grupo evitava o nome “opinião pública”, preferindo as expressões “divulgação” e “promoção”. José Luís Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, dizia que “conquistar a opinião pública” era a essência da ação política do grupo. O principal articulador do GOP era um ex-comissário de polícia, José Fonseca, que começou na vida como “tira” no 16° Distrito Policial de São Cristóvão, um subúrbio operário da zona norte do Rio, no réveillon de 1952.

Conspiração sem twitter

Em 1958, trocou a delegacia por um cargo de relações públicas da Light, a empresa americana de energia que se tornaria uma das líderes do IPES e da conspiração. Em 1963, um ano antes do golpe, o ex-comissário José Rubem Fonseca deu aos 38 anos seu primeiro tiro certeiro na literatura: lançou o livro de contos Os prisioneiros com o nome literário de Rubem Fonseca. O festejado autor de Feliz Ano Novo, A grande arte e Bufo & Spallanzani tornou-se nas décadas seguintes o maior contista vivo do país, ganhador em 2003 do Prêmio Camões, uma espécie de Nobel para escritores da língua portuguesa.

Outros destaques do GOP no Rio eram os jornalistas Glauco Carneiro e Wilson Figueiredo, este do corpo editorial do Jornal do Brasil.Em São Paulo, o GOP atuava com Geraldo Alonso, dono da Norton Propaganda, e nomes ilustres de O Estado de S.Paulo, como Ênio Pesce e Flávio Galvão. Contava ainda com Jorge Sampaio e Alves de Castro, os dois nomes centrais do Repórter Esso da TV Tupi, o equivalente ao Jornal Nacional da Rede Globo de hoje, patrocinado pela Esso do Brasil, membro importante do IPES do vovô Golbery.

Em tempos sem e-mail ou twitter, o GOP se valia da tecnologia da época: enviava milhares de cartas e telegramas e fazia chamadas telefônicas, antecipando em décadas o odiado telemarketing. Em novembro de 1962 chegava a três mil nomes a lista de organizações de rádio e TV mobilizada pelo GOP. Aliado a ele funcionava o GPE, Grupo de Publicações/Editorial, que disseminava material impresso pelo país.

Esta campanha de guerra psicológica era tarefa do ex-comissário e contista Rubem Fonseca, que incluía intelectuais respeitados como Augusto Frederico Schmidt, Odylo Costa Filho e Rachel de Queiroz, prima do general Castelo Branco, líder do golpe que derrubou Jango. Rachel foi presa no golpe do Estado Novo, em 1937, acusada de subversiva, e teve seus livros queimados.

Um quarto de século depois, a comunista de Fortaleza era uma intelectual engajada na equipe de propaganda de direita de Rubem Fonseca no IPES. O primo Castelo Branco, já ex-presidente, morreu num acidente aéreo em 1967 quando retornava de um passeio à fazenda da prima Rachel.

Os propagandistas do GOP atuavam em três frentes: artigos para jornais e revistas, panfletos para circular entre estudantes, militares e operários, e livros que comparavam a democracia com a empresa privada. Em comum, eram todos anticomunistas, antitrabalhistas e antinacionalistas – a tríade que embalava o cérebro do vovô Golbery. Nomes fortes do mercado editorial, como Saraiva, Cia. Editora Nacional e GRD Editora, colaboravam na publicação da chamada “literatura democrática”.

Balcão de deputados

A escolha dos candidatos agraciados com o apoio financeiro pelo IPES de Golbery obedecia a uma regra rígida, quase um contrato de compra e venda. Quem se habilitava a integrar a lista de “democratas convictos e anticomunistas de primeira ordem” passava pelo crivo dos analistas do complexo IPES/IBAD.

Mais importante do que a filiação partidária era a orientação das ideias. Cada candidato era compelido a assinar um “ato de compromisso ideológico”, pelo qual prometiam lealdade ao IBAD acima da fidelidade ao seu partido, prometendo ainda lutar contra o comunismo e a defender o investimento estrangeiro.

Mas a mercadoria custava caro. O chefe do GAP (Grupo de Ação Parlamentar) do IPES, o banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores, avaliava os candidatos pelo coeficiente eleitoral. De início, ele calculava que cada deputado “custaria” cerca de 6 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 317 mil), mas percebeu que esta seria a conta de nomes da Paraíba e outros Estados menores.
O preço aumentava no Ceará e ainda mais na Bahia. Os candidatos de Rio e São Paulo eram mais caros, explicou Mello Flores, avaliando a contaper capita dos deputados no balcão do IPES do vovô Golbery: 15 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 792 mil).

O orçamento de um candidato pouco conhecido e de limitada agressividade eleitoral incluía despesas com equipamento de som, 40 mil cartazes, 600 faixas, fotografias, espaço em jornais, mensagens no rádio e TV, discos de jingle, gasolina, correspondência e pessoal de apoio… Tudo isso ao custo de uns 10 milhões de cruzeiros, o que não era pouca coisa. Dez milhões, que hoje valem R$ 528 mil, equivaliam então à renda diária de 20 mil trabalhadores de salário mínimo, número de votos atualmente suficientes para eleger vereador em capital.
O IPES de Golbery recebeu apoio financeiro de 297 corporações americanas. Passavam o chapéu entre empresas britânicas, suecas, alemãs. A Fundação Konrad Adenauer, órgão do Partido Democrata Cristão alemão, canalizava recursos pelo sólido complexo siderúrgico Mannesmann e pela gigante Mercedes Benz. O neto certamente não sabia, mas o vovô Golbery encarregou-se pessoalmente do contato com o presidente da Mercedes.

Grampo na Casa Branca

Os amigos do general estavam ativos, também, em Washington. Na segunda-feira, 30 de julho de 1962, o presidente John Kennedy entrou no Salão Oval e ligou pela primeira vez seu novo brinquedinho, instalado no fim de semana: o sistema secreto de gravação de voz da Casa Branca.

A estreia prometia: era uma conversa cabeluda de Kennedy com o seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, parceiro de Golbery no caminho para o golpe militar que derrubaria João Goulart dois anos depois. Começava pelo gasto não contabilizado de US$ 8 milhões nas eleições de 1962, adubando secretamente candidatos apoiados pela CIA e simpáticos aos EUA.

A conexão americana do mundo político brasileiro com os militares golpistas era feita por outro amigo do peito de Golbery – o discreto adido militar da embaixada, coronel Vernon Walters, que chegaria a vice-diretor da CIA no auge do Caso Watergate que derrubou Nixon, em 1974.

A transcrição das fitas foi revelada no livro do jornalista americano Tim Weiner, Legado de Cinzas – Uma história da CIA (Ed.Record, 2008), outra leitura instrutiva que poderia iluminar a cabeça de Golbery Neto. Ela mostra, numa frase de Gordon para Kennedy, que o alvo central da conspiração era o mesmo de Golbery – o próprio Jango:

– Para expulsá-lo, se necessário – disse o embaixador, esclarecendo – O posto da CIA no Brasil deixará claro, discretamente, que não somos necessariamente hostis a qualquer tipo de ação militar, em absoluto, se ficar claro que o motivo da ação militar é…

–… contra a esquerda – completou o presidente Kennedy, dando o sinal verde para o golpe que aconteceria vinte meses depois.

Na véspera da eleição de 1962, a Promotion de Ivan Hasslocher, líder do IBAD, arrendou o jornal carioca A Noite por 90 dias, ao custo mensal de 2 milhões de cruzeiros (cerca de R$ 100 mil no câmbio atual) para propaganda direta. A revista Repórter Sindical também era operada pela entidade.

O órgão oficial do IBAD, Ação Democrática, circulava mensalmente com 250 mil exemplares e textos de gente graúda como o economista Eugênio Gudin e o líder udenista Aliomar Baleeiro. Era gratuita e, ainda assim, não tinha um único anúncio. No início de 1963, um manifesto de 500 profissionais de prestígio, organizados pelo Centro Democrático de Engenheiros, ligado ao IPES, foi publicado no Jornal do Brasil e em O Estado de S.Paulo.

Manifestos variados, todos “democráticos”, proliferavam na imprensa e eram retransmitidos pela dupla IPES/IBAD. Eles tinham uma agência de notícias, a Planalto, que redistribuía o material a 800 emissoras de rádio e jornais do país. Tudo gratuito, tudo pela pátria, tudo pela “democracia”. Um milhão de cópias da Cartilha para o Progresso, feita pelo IPES, exaltando os benefícios da Aliança para o Progresso do governo americano, foi encartada como suplemento da Fatos&Fotos, revista na época de grande circulação da Editora Bloch.

O extremista do Estadão

Num país de elevado analfabetismo, o esperto vovô Golbery percebeu a importância do rádio e da nascente televisão. O IPES gastou 10 milhões de cruzeiros para produzir 15 programas de TV para três canais diferentes. Eram entrevistas de questionários preparados pela entidade, com jornalistas de confiança e gente selecionada para responder sobre reforma agrária, custo de vida, democracia.

Estavam escalados nesse time alguns ilustres conterrâneos de Golbery, como o senador Mem de Sá (presenteado com a cadeira de ministro da Justiça no governo Castelo Branco), os deputados Daniel Faraco, Egydio Michaelsen e Raul Pilla, o prefeito de Porto Alegre Loureiro da Silva e o arcebispo dom Vicente Scherer.

Em 1962, o IBAD operava diariamente mais de 300 programas de rádio no horário nobre das principais cidades do país. A rede de mais de 100 estações ligadas a ele formava a “Cadeia da Democracia”, sob o comando do senador João Calmon, dos Diários Associados, que tinha o cuidado de ir ao ar no mesmo horário das transmissões do líder trabalhista Leonel Brizola, que derrotara Golbery um ano antes com a “Cadeia da Legalidade”.

O maior produtor de filmes comerciais do país, Jean Manzon, foi contratado por Golbery para produzir filmes como Que é a democracia, Deixem o estudante estudar, Uma economia estrangulada, Criando homens livres. Eram filmetes de 10 minutos, projetados antes do vibrante faroeste exibido nas matinês do interior do país, onde se espalhavam três mil salas de cinema.

Quando a plateia não aparecia, o cinema ia até o público. O IPES montou o projeto do “cinema ambulante” em caminhões abertos e ônibus com chassis especiais, que percorriam favelas, bairros populares e cidades distantes. Era um mutirão democrático: a Mesbla fornecia os projetores, a Mercedes Benz emprestava os caminhões e a CAIO montava a carroceria dos ônibus.

Na medida em que avançava a conspiração, crescia a presença militar sobre a base parlamentar. Era hora de sair do discurso para a prática. O IBAD cede seu lugar de destaque para outra sigla – a ESG, a Escola Superior de Guerra, de onde provinham Golbery e o núcleo fardado do golpe.

O novo complexo IPES/ESG alinhava 330 oficiais, de majores a generais de Exército, fazendo a ligação do mundo empresarial com os quartéis. Sempre sob a liderança do vovô Golbery, lá estavam nomes que, mais tarde, fariam parte do poder revolucionário, como ministros ou até presidentes. Orlando Geisel, Mário Andreazza e Walter Pires formulavam planos com Castello Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo.

Um grupo que Dreifuss nomeia como “Extremistas de Direita” juntava fanáticos anticomunistas com adeptos da modernização industrial conservadora. Curiosamente, o grupo era mais ligado ao jornalista Júlio de Mesquita Neto, expoente da “linha dura” paulista que pregava uma forte mensagem anticorrupção e contra a esquerda. Com Mesquita estavam seu irmão Ruy e os deputados Abreu Sodré e Paulo Egydio Martins, mais tarde governadores indiretos de São Paulo indicados pelos quartéis.

Os três ministros militares que Golbery transformou em locutores de seu manifesto no golpe frustrado de 1961 – o marechal Odylio Denys, o almirante Sílvio Heck e o brigadeiro Grun Moss – mandaram emissários da conspiração a São Paulo para um encontro, no início de 1962, com Júlio Mesquita Filho, a quem entregaram um documento sobre as normas que iriam orientar o governo militar após a queda de Jango. O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel, foi mais explícito com o dono do Estadão: o regime discricionário teria de ficar no poder por pelo menos cinco anos.

Animado com a conversa, Mesquita chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro ministério revolucionário. Com o jurista Vicente Rao, advogado da mineradora americana Hanna, Mesquita chegou a fazer o rascunho de um Ato Institucional para fechar Senado, Câmara e Assembleias e cassar mandatos – o mesmo instrumento de força que a ditadura anos depois faria seu jornal engolir com o AI-5, na forma de versos e receita de bolo.

Ciência e violência

No Rio Grande do Sul, quartel-general do III Exército, a maior concentração de tropa terrestre do país e foco principal da resistência de Brizola na Campanha da Legalidade, dois terços da oficialidade já estavam engajados na rebelião. O coronel da Brigada Militar Peracchi Barcelos (PSD), eleito deputado pela máquina do IPES do general Golbery, tratava de sublevar a força pública do estado.

O general Armando Cattani – que comandou no período 1958-59 a poderosa 6ª Divisão de Exército em Porto Alegre, exatamente quando Brizola deixava a prefeitura da capital gaúcha para assumir o governo do estado – organizava grandes fazendeiros no interior do Rio Grande do Sul em unidades paramilitares que seriam acionadas na hora precisa do golpe.

O general Cattani era tão amigo do general Golbery que foi selecionado por ele para assumir como interventor a prefeitura de sua terra natal, Rio Grande. O posto ficou vago de repente graças à quartelada de março de 1964, que transformou a cidade portuária em “área de segurança nacional” e cassou o mandato do prefeito do PTB, Farydo Salomão, no cargo havia apenas três meses.

Não é a juventude, mas a alienação, que pode explicar o desconhecimento que o atual prefeito de Rio Grande e o neto do general têm sobre as violências praticadas pela ditadura de Golbery e seus comparsas nos primeiros dias do golpe exatamente na cidade onde ele nasceu.

Golbery, evidentemente, não tem nenhum envolvimento pessoal com as truculências na sua terra. Mas o general tem tudo a ver com o regime de força que permitiu esses abusos. Como porto e área estratégica no extremo sul do país, Rio Grande coordenava a repressão ali pela SOPS-RG, a Seção de Ordem Política e Social que unia forças do 6º Grupamento de Artilharia de Campanha (GAC) do Exército, o Batalhão de Polícia Motorizada, a Polícia Federal e a Polícia Civil, que cobriam seis municípios da região, de Pelotas a Chuí.

A SOPS era subordinada ao DOPS de Porto Alegre, onde brilhava o nome mais importante do aparato repressivo gaúcho, o delegado Pedro Seelig. Foi pelo Chuí que ele devolveu à ditadura uruguaia os ativistas Lilian Celiberti e Universindo Diaz, sequestrados em Porto Alegre em novembro de 1978 por um comando binacional da Operação Condor, integrado por agentes de Seelig e militares enviados por Montevidéu. A SOPS de Rio Grande e o DOPS de Seelig eram todos membros fraternais da “comunidade de informações”, gerenciada desde Brasília pelo SNI criado pelo grande-irmão Golbery.

O neto ainda não deve saber, mas as brutalidades do regime não poupavam nem os conterrâneos do avô. Um bom exemplo foi relatado por Leandro Braz da Costa, mestrando em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, num trabalho sobre repressão publicado este ano na Jornada de Estudos sobre Ditadura e Direitos Humanos, do Arquivo Público do Rio Grande do Sul.

O historiador ouviu em 2009 um inspetor lotado em Rio Grande, na década de 1970, na 7ª Delegacia Regional da Polícia Civil, dotada de celas especiais com pau-de-arara e choque elétrico para a prática de torturas. A sofreguidão por informações do preso excitava a criatividade, como revela o inspetor:

[…] quando o delegado exigia que obtivéssemos rapidamente uma confissão ou uma informação, tínhamos que apertar o cara ainda mais… levávamos o indivíduo vendado e sem roupa lá pra praia do Cassino, na madrugada. Daí amarrávamos as mãos e os pés dele com uma corda e entrávamos com ele no mar. Afogávamos o cara… contávamos a passagem de seis ou sete ondas e depois retirávamos ele da água. Repetíamos isso várias vezes, até quase ele não aguentar mais. Se mesmo depois disso ele não falasse nada, nós eletrocutávamos ele com os fios ligados no dínamo [do motor] do Opala. Isso sempre funcionava […]

Tortura no mar

Na terra de Golbery, o terror vinha do mar. Em 28 de março de 1964, três dias antes do golpe, o NHi Canopus (H22), um navio hidrográfico da Marinha de 1.800 toneladas e 78 metros de comprimento, concluiu seu trabalho científico de 30 meses para o levantamento da costa sul brasileira desde Torres até Chuí.

Missão cumprida, tomou o caminho de Rio Grande, onde ancorou ao largo do porto. Era comandado pelo capitão-de-fragata Maximiano da Fonseca, que na década de 1980 seria colega de ministério de Golbery, como almirante e ministro da Marinha do governo Figueiredo. Levava a bordo 116 tripulantes, um helicóptero e 14 cientistas. Mas, naqueles dias agitados dos idos de março, o barco abrigou uma carga inesperada: presos políticos.

Transformado em navio-prisão, o Canopus de Maximiano virou o cativeiro do prefeito cassado Farydo Salomão, ali submetido a torturas por ser amigo de Brizola e Jango. A violência é denunciada no livro Centenário do Colégio Lemos Júnior, escrito pelo jornalista Willy Cesar, riograndino como Golbery e que hoje defende o preito ao general. Outro depoimento, ainda mais forte, é do ex-capitão da Brigada Militar Athaídes Rodrigues, vereador e aliado do prefeito.

No dia 7 de abril de 1964, 50 homens cercaram sua casa e o levaram preso, ainda de pijama, num jipe que rodou pela cidade até chegar à Capitania dos Portos. Dali, o vereador trocou o jipe por uma lancha e foi transportado à prisão flutuante do Canopus, onde se juntou a vários ferroviários detidos, incluindo o presidente do sindicato, Miguel Gomes.

Incorporado à Marinha em 1958, seis anos antes do golpe, o Canopus sobreviveu ao regime, aposentando-se doze anos após a queda da ditadura, em 1997. Nesse período, passou 3.342 dias no mar e navegou mais de um milhão de quilômetros, o suficiente para 26 voltas ao mundo. A longa, impecável ficha funcional do Canopus ficou manchada, contudo, pelo desvio de rota ética que o imobilizou no porto de Rio Grande, abandonando por uns tempos a ciência das águas para lançar âncora na violência das mágoas políticas.

O navio-prisão na terra de Golbery era um resumo preciso do país-presídio a que Golbery e sua conspiração reduziram a terra dos brasileiros. O cativeiro temporário do Canopus em Rio Grande não era uma exclusividade do sul, mas uma fatalidade que se reproduzia em outras águas, em outras terras.

No maior porto do país, Santos, no litoral paulista, estava fundeado o caso mais notório de navio-prisão do país, o Raul Soares. Era um velho transatlântico alemão construído em 1900, comprado pelo Lloyd Brasileiro em 1925 e transformado em navio de carga e passageiro para a rota Santos-Manaus.

Faca para o bife

Quase duas vezes maior que o Canopus, com 125 metros de comprimento, o Raul Soarestinha 110 tripulantes e acomodação para 580 passageiros. Os 80 da primeira classe tinham cabine reservada, salão de jantar e orquestra a bordo com pista de dança.

Os outros 500 se acomodavam em redes e cobertas nos quatro porões, e comiam ali mesmo, disputando espaço com a carga – homens na proa, mulheres na popa. No espaço de dez anos, o Raul Soares navegou ao sabor das marés da história: serviu de prisão para os comunistas da fracassada rebelião de 1935 e trouxe para casa em 1945 os pracinhas da FEB que, aliados aos comunistas da União Soviética, derrotaram o Eixo nazifascista.

Em 24 de abril de 1964, o navio lúgubre de casco negro e uma enorme chaminé fumegante foi rebocado pela nova ordem militar até um banco de areia na ilha do Barnabé, em Santos. Cinco dias depois recebeu ali sua primeira leva de passageiros compulsórios: 40 sargentos do Exército que se opuseram ao golpe.

Outros mais – militares e civis, sindicalistas e suspeitos em geral – chegariam depois, num total de quase 500 presos políticos, todos sem processo legal, sem direito a cabine reservada, nem orquestra, nem pista de dança. Ousaram desafiar a partitura desafinada da ditadura e foram jogados como carga nos seus porões infectos.

O Raul Soares tinha três calabouços, batizados pelos presos com nomes de boates famosas da época. O “El Morocco”, um salão metálico sem janelas, ventilação ou luz ao lado da caldeira, tinha uma atmosfera irrespirável de mais de 50 graus. O “Night and Day”, colado à geladeira, era uma sala menor onde os presos ficavam com água gelada na altura do joelho.

O “Casablanca”, talvez o pior deles, era o depósito de fezes, onde a elas se misturavam os presos que precisavam ter a resistência quebrada, pela humilhação ou pelo mau cheiro. Este era o fedor institucional e jurídico emanado pela desordem militar manipulada no caldeirão malcheiroso do vovô Golbery.

Os detalhes escabrosos dessa história foram publicados em 1979 pelo repórter Mauri Alexandrino no jornal Preto no Branco, da Cooperativa dos Jornalistas de Santos. A desordem gerada pela prepotência da nova ordem foi percebida no dia em que 16 presos receberam uma boa notícia: haviam recebido habeas-corpus do juiz da 2ª Vara Criminal de Santos, Antônio Granda.

À noite, aliviados, embarcaram na lancha e deixaram para trás aquele inferno. Foram direto para a sala do capitão dos Portos de São Paulo, Júlio de Sá Bierrenbach, encarregado dos inquéritos policiais na área sindical e política. O capitão chamou a imprensa, autorizou fotos, dispensou os jornalistas e, a sós com os presos, avisou:

“Quero comunicar que vocês estão soltos. Agora que estão em liberdade, estou dando nova voz de prisão. Vocês saíram do processo da Aeronáutica, mas ainda não enfrentaram o da Marinha. Estou abrindo novo inquérito.”

Os soldados reconduziram os presos para a lancha que os devolveu ao inferno. Muitos deles choravam, afogados num sentimento que mesclava tristeza e ódio. Jornalistas só tinham acesso ao Raul Soares como prisioneiros ou pelo filtro rigoroso do servilismo. Certo dia, dois jornalistas da Gazeta de Santos, escolhidos a dedo pelos militares, foram convidados a visitar a prisão flutuante. Elogiaram muito os comandantes pelas “ótimas condições carcerárias” e, na edição do dia seguinte do jornal, lembraram-se de uma única queixa dos prisioneiros: “Não existiam facas para cortar os bifes”, anotaram.

Caneta e metralhadora

Um jornalista subiu a bordo a contragosto: Nelson Gatto, repórter policial dos Diários Associados, penou ali 43 dias encarcerado. Sobreviveu para contar seu martírio em 1965 num livro – Navio Presídio – que ninguém leu. Foi apreendido pelo DOPS antes de alcançar as livrarias. A Justiça mandou liberar, a Aeronáutica mandou apreender de novo. No Superior Tribunal Militar (STM), Gatto ganhou por 10 a 0, com voto do ministro Olympio Mourão Filho, o general de Juiz de Fora que botou os tanques na rua em 31 de março.

O movimento militar desfechado em nome da santa hierarquia se convertera, naqueles dias agitados, num constrangedor foco de subversão: os oficiais-generais da suprema corte militar do país mandaram liberar o livro, um reles oficial da Aeronáutica fez exatamente o contrário.

O coronel-aviador Francisco Renato de Melo invadiu a gráfica, recolheu toda a edição e a jogou no mar. Escapou um único exemplar. O coronel da Aeronáutica justificou assim a truculência: “Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras”. Em 1967, cumprindo a maldição do capitão Bierrenbach, Gatto foi preso novamente para responder sobre o livro que nunca circulou.

Os defensores de Golbery, sem a ingenuidade do neto, lembram sempre o seu papel na distensão e na abertura do regime executadas pelos dois generais – Ernesto Geisel e João Figueiredo – que lhe deram o longo reinado de sete anos como poderoso ministro da Casa Civil, entre 1974 e 1981. É verdade. No entanto, indulgentes, esquecem-se de dizer que Golbery estava também na outra ponta do processo político, fechando o ciclo democrático em 1964 e inaugurando uma ditadura que sobreviveria 21 anos.

A diástole que descontraía o sistema, segundo seu cardíaco pensamento político, foi antecedida pela contração da sístole. O general que comandou a sístole de 1964 não conseguiu pilotar a diástole de 1984, que acelerou com a hipertensão popular das multidões nas praças e avenidas das Diretas-Já e terminou com o surto de Tancredo Neves em pleno Colégio Eleitoral. Os amigos não lembram, e o neto não diz, mas é sempre bom repetir que o candidato de vovô Golbery no colégio era Paulo Maluf, confirmando sua teimosa vocação para estar sempre do lado oposto aos interesses populares.

Príncipes do bruxo

O teórico da “doutrina da segurança nacional” instaurou, por ardis, aparatos e artimanhas, uma rotina de insegurança pessoal que sacramentou o medo e a delação num país intimidado pela repressão e assustado pela síndrome da intriga, do grampo, da denúncia. Essa inclinação para o mal, como já deve ter suspeitado o jovem Golbery Neto, reforça a tese de que o avô tinha forte inclinação por dois príncipes – o de Maquiavel e o de Lampedusa.

O ardiloso general tinha a consciência da fortuna, a idéia romana de sorte, definida pelo gênio florentino como algo inevitável, que pode levar alguém ao poder ou tirá-lo de lá. Como se sabe, uma obsessão muito golberyana. E, como o autor de O Leopardo, o generaltentava “tudo mudar para que tudo ficasse como está”. A desastrada campanha de Maluf no Colégio Eleitoral mostra que Golbery tentava “mudar para preservar”, dando uma sobrevida civil ao regime militar que definhou como a aristocracia siciliana do século 19 desenhada por Lampedusa.
Maluf, na cabeça de Golbery, era o meio que justificava – ou adiava – o fim.

Golbery Neto provavelmente era nascido em 1977, quando o vovô Golbery cometeu sua derradeira bruxaria bem sucedida, o “Pacote de Abril”. Como de hábito, contra o povo. Sob o comando do sacerdote Geisel, o feiticeiro e meia dúzia de áulicos cozinharam uma sulfúrica emenda constitucional e seis decretos leis que, em resumo, dissolviam a vontade popular, um estorvo permanente aos planos de Golbery.

Fecharam o Congresso para ruminar em paz seus feitiços, cancelaram a eleição direta de 1978 para governadores, inventaram um monstrengo sem voto (o senador-biônico), ampliaram para seis anos o mandato do sucessor de Geisel e aumentaram o peso de Estados menos populosos e politizados no Congresso Nacional.

Era Golbery, de novo, num surto de Lampedusa.

Mito na granja

Dois anos depois vovô Golbery recrudesceu, cada vez mais assustado com o crescimento do MDB, que pela força do voto emparedava a ARENA, a sigla da ditadura. Era preciso mudar o quadro partidário, implodindo a frente oposicionista, para que tudo ficasse como estava.
A ARENA virou PDS (o povo não esquece) e o MDB virou um caco, rachado entre cinco legendas: o PMDB de Ulysses, o PTB de Ivete Vargas, o PP de Tancredo Neves, o PDT de Leonel Brizola e o PT de Lula. A fortuna do mago florentino sorria para o bruxo riograndino. O marido de Ivete, Paulo Martins, trabalhava com Golbery no Gabinete Civil.
Ivete, que tinha o apoio de Golbery para arrebatar o PTB das mãos de Brizola, foi chamada em 1979 à Granja do Ipê, residência do general em Brasília, para ouvir este satânico raciocínio do feiticeiro:
– Precisamos trazer o Brizola de volta para o Brasil, porque ele está se tornando um mito muito forte fora do país. É melhor que ele volte e dispute eleição, porque assim perderá prestígio político.
O ex-deputado federal Sinval Boaventura, um radical arenista mineiro, foi lá na granja conferir a ideia com Golbery. O general ampliou sua tese, apostando num nome:
–A estratégia é estimular a imprensa para projetar Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula, um grande líder metalúrgico de São Paulo, uma liderança inteligente e expressiva. Ele precisa ser preparado para ser o anti-Brizola.
Todo esse prontuário de Golbery passou em branco pela grande imprensa, que não abriu espaço para a atrevida homenagem ensaiada em Rio Grande. Um historiador da terra, Chico Cougo, 24 anos, portanto bem mais jovem que o alienado prefeito de sua cidade, nasceu dois anos após a queda da ditadura. Nem por isso deixa de abastecer seu blogpara emitir seu juízo ferino sobre o conterrâneo general, alinhando textos inteligentes, devastadores numa série imperdível sobre “Golbery e a cidade surreal”.

Outra exceção à regra do silêncio é o jornalista e escritor Juremir Machado da Silva, que acaba de lançar o livro Vozes da Legalidade, tem programa na rádio Guaíba e coluna noCorreio do Povo, onde provocou:

“Rio Grande quer homenagear o ‘Rasputin’ nacional. Por que não uma estátua para os ministros militares que tentaram dar o golpe em 1961?… O mais incrível é que [o prefeito] Fábio Branco pertence ao PMDB, que se orgulha de ter combatido a ditadura… Resta uma hipótese radical: Branco quer expor Golbery às pombas da praça Tamandaré…”

A maior corrupção

Duas vozes expressivas da imprensa gaúcha discordam. Lasier Martins, âncora da RBS TV, o principal grupo de comunicação do sul, acha que a homenagem é parte da democracia. Indaga: “É tão difícil assim entender isso?”. É, é muito difícil entender, considerando que nenhuma democracia deve exaltar quem conspirou contra a democracia.

O experiente jornalista Érico Valduga, dono do Periscópio, um respeitado blog político do sul, acha que a homenagem “é uma questão local legítima” em que “a sociedade de Rio Grande preferiu ver no conterrâneo o governante que beneficiou a cidade com obras públicas importantes”.

Há dois graves problemas nesse raciocínio. A sociedade riograndina, pelo que se vê na pesquisa do jornal local, vê mais as malfeitorias nacionais do que as benfeitorias municipais, condenando como ilegítima a homenagem por maioria de quase 60%. A proposta ainda foi aprovada por menos da metade dos vereadores da Câmara, apenas seis em 13 representantes.

Valduga arrisca uma tese mais ousada para condenar os que se opõem ao louvor a Golbery: “É uma irresponsabilidade diversionista, que contribuirá para desfocar as lutas contra a corrupção”. O jornalista esquece que não há maior exemplo de corrupção do que um golpe que fecha o Parlamento, castra a vontade popular pelo veto ao voto, cassa mandatos políticos, censura, prende, tortura e mata, impondo ao país uma treva de 21 anos, consagrando a impunidade e estimulando a corrupção. Foi o louvado Golbery quem pensou esta irresponsabilidade que nos privou da democracia por duas décadas.

Nada mais diversionista.

O que espanta, de fato, não é a voz condescendente de alguns jornalistas, mas a afonia das principais lideranças do PMDB gaúcho, herdeiro do mais aguerrido e mais atingido MDB do país, que lutou e sangrou contra a ditadura gestada pelo general Golbery. O autor da proposta indecente é vereador do PMDB de Rio Grande, Renato Albuquerque, que viu seu PLV (projeto de lei de vereador) nº 93/2009 aprovado pela minoria da casa na sessão de 21 de dezembro de 2009. Cinco dos 13 vereadores estavam ausentes, só seis (menos da metade) aprovaram, contra dois votos.
O prefeito Fábio Branco, também do PMDB, apôs sua assinatura na lei nº 6.835 exatos dez dias depois, em 31 de dezembro, quando a cidade e o país, desatentos, só estão preocupados com o réveillon damadrugada. Cobrado pela homenagem ao general, o prefeito que veio ao mundo em 1972 evocou o calendário para se eximir de um juízo sobre a ditadura de 1964: “Eu não era nascido…”

Tributo à treva

Não se conhece nenhum juízo, qualquer manifestação pública ou privada das principais lideranças, dos nomes históricos do PMDB gaúcho – todos nascidos e crescidos bem antes das malfeitorias antidemocráticas de Golbery. O Congresso Nacional, três vezes fechado e pesadamente mutilado pelo golpe engendrado pelo general desde os idos de 1961, recebeu a decisão de Rio Grande com um atordoante silêncio. À esquerda e à direita, nenhum dos 513 deputados, nenhum dos 81 senadores emitiu uma palavra, um só discurso, um mísero aparte, a favor ou contra.
Do PMDB nacional não se podia esperar nada de mais. Afinal, o MDB velho de guerra que um dia foi comandado por gente como Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, Tancredo Neves, Alencar Furtado, Itamar Franco, Mário Covas, José Richa e Franco Montoro hoje é um PMDB rebaixado a gente como José Sarney (o último presidente do PDS, que o povo não esquece), Michel Temer, Renan Calheiros, Romero Jucá, Jáder Barbalho, Henrique Eduardo Alves, Newton Cardoso, por aí.

O alheamento do Parlamento a uma questão moralmente tão grave mostra o grau de desmemória a que se relegou a política brasileira, talvez o derradeiro legado do general Golbery para um país que não preza sua história e não consegue nem identificar os malfeitores da democracia.

O desastrado, debochado ensaio de louvor a Golbery do Couto e Silva no sul coincide com a criação de uma Comissão da Verdade em Brasília que, em tese, irá dissecar a obra mais monstruosa do general: a ditadura de 21 anos. Um país que se recusa a discutir um tributo infeliz ao mentor da mais longa escuridão da República pode estar, na prática, erigindo um mausoléu da decência, da justiça, da consciência política.

Golbery Neto, antes de se ofender com um simples artigo baseado na história, devia ler e estudar um pouco mais para entender a real dimensão de seu avô, um contumaz cérebro do arbítrio que deve ser conhecido, debatido e lembrado pelos brasileiros – jamais exaltado.

Afinal, se a omissão paralisa até a sociedade politicamente organizada, essa sanção moral ficará por conta dos pombos da praça Tamandaré.

* Luiz Cláudio Cunha é jornalista.